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quarta-feira, abril 17, 2024

CARMEN,UMA NOVELA MULTIMIDIA

1. Introdução

Nosso trabalho foi o de pesquisar as várias adaptações dessa novela de Prosper Mérimée. Podemos dizer que uma das razões do sucesso foi à simplicidade e a força do enredo, no qual sobressaiu-se a personagem central, a cigana Carmen. A história de uma mulher cercada de mistério, praticante de magia, sedutora, nos pareceu também ter uma grande capacidade de seduzir. E essa capacidade manteve-se intocada quando da transposição para outros sistemas semióticos.

Mérimée iniciou o texto com um curioso artifício retórico: o narrador afirmou ter ido para a Espanha apenas para estudar uma famosa batalha do tempo dos romanos. Ele expõe sua teoria a respeito da batalha com veemência, para em seguida narrar, como causo, divertissement, a história de Carmen. O tema da batalha dos romanos é um falso enredo. O texto dissimula, faz-se de maroto, imitando a própria personagem. Não foi só olhar dessa Fênix cigana que teve algo de traiçoeiro.

O estilo do texto de Mérimée nada teve de rebuscado. A narrativa vai diretamente ao ponto, não faz complexos exercícios de estilo, concentrando-se em narrar à ação. Afinal, a maior parte do texto foi uma narrativa dentro de uma narrativa. A narrativa de Don José foi à narrativa de condenado à morte. A correlação entre as narrativas e a morte já foi notada desde as Mil e Uma Noites, da princesa Sherezeade e a Odisséia de Homero.

Carmen talvez tenha feito sucesso por ter como protagonista uma mulher cheia de vontade de potência. Quem sabe daí o fascínio de Nietzsche, tantalizado por sua Salomé e necessitado de forças desmesuradas tropicais para opor aos homens temperados e nórdicos, esses Parsifals cantados por Wagner, esse Wagner que, da mesma idade do pai de Nietzsche, parece-nos ter se transformado numa imago paterna negada. Nietzsche escreveu contra a liberação feminina, mas precisamos prestar muita atenção àquilo que Nietzsche combateu. Com freqüência, Nietzsche encontrou seus inimigos dentro de si mesmo e naquilo que ele admirava. Nietzsche ironizou e desdenhou da luta pela liberação feminina, desprezando-a, opondo-se a ela, mas sabia que se opunha a uma tendência forte; para Nietzsche, Darwin não está com a razão e nem sempre são os fortes que vencem. O cristianismo, religião combatida por ele como platonismo para o povo, propugnadora de uma moral de rebanho, ou seja, de fracos, de ovelhas, de vítimas, resiste bravamente dois mil anos de história.

Se, do final do século XIX em diante, ocorreu à liberação das mulheres e a sua subida a um protagonismo antes inalcançável socialmente, isso com certeza foi uma das forças ocultas que impulsionou Carmen, essa maga-cigana-hispana. Uma protagonista mulher passou a ser algo essencial, algo chamativo, senão ilustrativo de uma época em que as mulheres passaram de dominadas a dominadoras. Ou melhor, passaram a ter a possibilidade de exercer formas de dominação, ainda que imaginárias e ilusórias.

Carmen, mulher finalmente dona de si mesma, liberada, esfinge com segredo, indecifrável devoradora de homens. Seus olhos eram olhos de gato que quando observavam o forasteiro desavisado adquiriram aquele aspecto de olhos de gato olhando um pardal, ou seja, olhos de um universo oposto, olhos hostis, interessados em aniquilar seu opositor, ameaçadores. A cigana mágica olhou o homem como uma presa, com um olhar da mesma natureza daquele com que o senhor olha o escravo, o burguês olha o proletário, o mais forte olha o mais fraco.

O simples olhar do gato para o pardal bastou para assustá-lo e fazê-lo movimentar-se. Tivemos a oportunidade de, num sítio, verificar o olhar de um gato diante de um pardal, experiência sugerida por Mérimée para que pudéssemos entender o olhar de Carmen diante do incauto forasteiro, claramente atraído por seus encantos carnais e sobrenaturais. O gato, que simplesmente passava próximo a uma fonte de água onde bebericavam os pardais, ao vê-los prontamente movimentou os olhos e o pescoço num movimento brusco. Há um brusco interesse que acompanha cada movimento atentamente. O olhar irradia tal força que os pardais, ao se sentirem fixados por ele, prontamente afastam-se instintivamente. Trata-se de instinto provocando instinto; o olhar do gato é a linguagem do predador e a esquiva dos pardais é o pressentimento da vítima. Os pardais temem entrar no raio de ação do predador. O narrador escapou por pouco de entrar no raio de ação de Carmen, de tornar-se mais de seus homens seduzidos e vitimados. Por isso seu relato foi tão potente, trata-se do relato de um sobrevivente, que se apropria, por afinidade, do relato de uma vítima marcada de morte, Don José. O narrador, que andou pelo fio da lâmina, sente na carne a lâmina que irá matar Don José.

Podemos também dizer que Carmen foi uma mulher que inverteu a tendência predatória do homem em relação à mulher. O predador é um ser que destrói outro ser vivo violentamente, matando e consumindo esse ser como forma de obter energia vital. A atitude aproxima-se da atitude de pilhar, roubar, rapinar, extorquir, consumir. As relações de dominação do homem em relação à mulher passam por atitudes desse tipo, como parte de uma relação de dominação estabelecida na pré-história, com base na força bruta. Invertendo essa relação, mostrou o narrador, desencadeou forças que não pode controlar. A metáfora do pássaro retornou na ópera, de forma transformada. Carmen foi à portadora de um amor que foi como um pássaro rebelde que ninguém poderia aprisionar. Carmen, de gata devoradora de pássaros passou a ser a emissora de um ser semelhante ao pássaro, o amor. Um ser análogo.

Há também a comparação do olhar da cigana com o olhar do lobo. O lobo é outra metáfora de um predador que essa mulher que inverteu os papéis encarnou. Ao realizar essa inversão, caracteristicamente, foi vítima da repressão, primeiro social, acusada na fábrica de perturbar a moral burguesa, digamos assim, depois punida com a morte pela ousadia de trocar um homem por outro, ou seja, consumir um e passar adiante, decidindo sugar a energia vital de outro, ou seja, comportar-se como os homens com freqüência se comportam. A metáfora do pássaro retornou no libreto de Bizet, mas com Carmen no papel de pássaro que quer ser livre, ou seja, vítima em potencial da escravidão e do encarceramento. Carmen foi lido como um elogio ao feminismo, mas também encerrou uma dura repressão, com o assassinato final da cigana, uma dura lição contra a mulher que inverteu o papel a ela reservado na sociedade. Fênix, espanhola, toureira, representou e firmou uma certa imagem da mulher latina, mediterrânea, cheia de vitalidade e capaz de romper tabus e enfrentar o mundo masculino naquilo que ele teve de mais marcial, o soldado. Afinal, nas guerras o homem tem papel preponderante. Seus poderes mágicos não foram suficientes para derrotar as razões que a razão desconhece.

2. A ÓPERA

A atualidade de Carmen é o fator preponderante para este êxito estrondoso. Nos dez primeiros anos, Carmen foi representada mil vezes, um recorde invejável. Bizet adaptou a novela de Prosper Mérimée. O ballet adaptado pelo compositor soviético Ridion Chedrin, que fez o trabalho para sua mulher, a primeira bailarina do Bolshoi de Moscou, Maia Plistskaya, uma das mais célebres bailarinas do mundo.O bailado seguiu a ópera famosíssima, de mesmo nome, de autoria de Georges Bizet, que teve sua estréia no Ópera-Comique, em Paris, em 3 de março de 1875. A ópera é um dos mais estrondosos sucessos musicais de todos os tempos, embora tivesse fracassado na estréia. A história da cigana e seu destino terrível já foi apresentada de todas as maneiras possíveis, e em todas as artes.

O bailado estreou em Moscou em 1970. Chedrin utilizou as magníficas melodias, com uma orquestração excepcional, utilizando principalmente cordas e muita percussão.

O prelúdio da ópera começa com o vigoroso ritmo refletindo a festiva atmosfera da tourada do último ato. Então, soa o vibrante refrão da famosíssima canção do Toreador.

Esta é seguida pelo sombrio motivo do destino. Justamente aí há um crescimento orquestral que é seguido por um coro explosivo.

Os personagens do Ballet são os mesmo da ópera, destacando-se Carmen, Toureador e Don José. O bailado, que dura 45 minutos, em contraposição às duas horas e meia da ópera, apresenta as seguintes partes:

• Introdução;
• Dança;
• Primeiro Intermezzo;
• Rendição da Guarda;
• Entrada de Carmen e Habanera;
• Cena;
• Segundo Intermezzo;
• Bolero;
• Toureador;
• Toureador e Carmen;
• Adágio;
• Adivinhação do Destino;
• Final.

Carmen é uma ópera em quatro atos de Georges Bizet com libreto de Henri Meilhac e Ludovic Halévy, baseada na novela homônima de Prosper Mérimée. Ambientada em Sevilha, na primeira metade do século XIX, narra a história do oficial de exército Don José, que, prometido à jovem Micaëla, deixa-se seduzir pelos encantos da cigana Carmen, causando para si inúmeros problemas como a prisão e o rebaixamento no exército por facilitar-lhe uma fuga quando ela fora declarada culpada por agredir uma colega na fábrica de cigarros onde ela trabalha. Abandonando a vida honrada para se entregar à vida errante junto aos ciganos, Don José vê Carmen trocá-lo pelo toureiro Escamillo e, tomado por uma crise de ciúmes, mata-a.

É o mais popular triângulo amoroso numa ópera. É uma das mais conhecidas óperas de todos os tempos. E algumas de suas árias ficaram tão populares que foram até plagiadas em publicidade. Carmen, de Georges Bizet (1838-1875), no entanto, é a história de uma mulher que gostava de homens. E por eles era capaz de tudo: de abandoná-los e de levá-los a matar. E até a morte.

A ópera de Bizet foi baseada em novela do francês Prosper Mérimée, com acréscimo de personagens, como Micaela, para ser o contraponto da cigana Carmen. O compositor teve medo que a moral da época rejeitasse a ópera por causa da personalidade de Carmen, uma das mais fortes e dominadoras.

Somente no ano de 2002, a Ópera Illustrata de Curitiba fez 10 apresentações didáticas, levando ao palco as óperas mais famosas, como “La Traviata”, “Porgy and Bess”, “O Barbeiro de Sevilha”, “La Bohéme” e “Madame Butterfly”, sempre com grande aceitação do público.

Ópera cheia de vitalidade, “Carmen” utiliza elementos instrumentais, harmônicos e rítmicos da música espanhola. Na época de sua estréia, a obra foi considerada obscena, e a música, muito criticada.

Em Curitiba, por exemplo, a direção artística do espetáculo esteve a cargo de Neyde Thomas, orientadora de muitos dos cantores que participaram das apresentações. Desta vez, os papéis principais são desempenhados por Fátima Castilho (Carmen), Anderson Marks (Don José) e Silvia Suss (Micaëla).

A direção cênica é de Lucianna Raitani, e o acompanhamento ao piano, de Joaquim do Espírito Santo. Como aconteceu em todas as edições, um especialista é convidado para comentar a obra antes das interpretações ao vivo, intercaladas com imagens em DVD de montagens internacionais. Desta vez, os comentários serão do maestro Flávio Stein.

Como uma iniciativa bem sucedida, a “Ópera Illustrata” deve ser retomada em 2003 com novas montagens, aproveitando o mesmo formato de apresentação.

2.1. PASSAGENS MUSICAIS FAMOSAS

Carmen é, provavelmente, a ópera não-italiana com maior número de árias famosas, dentre as quais podemos destacar:

• Abertura
• L amour est un oiseau rebelle (Habanera do primeiro ato)
• Les tringles des sistres tintaient (primeira ária do segundo ato)
• Votre Toast (Canção do Toureador, segundo ato)
• La fleur que m avais jetée (ária de Don José, segundo ato)
• Intermezzo Mêlons, coupons! (ária das cartas, terceiro ato)
• Je dis que rien m émpouvante (ária de Micaëla, terceiro ato)
• Aragonesa (prelúdio do quarto ato)
• Les voici la quadrille (coro da tourada, quarto ato)

Bizet parecia adivinhar que a empatia palco-platéia seria criada já no início do 1º ato, com Carmen cantando a mais famosa ária: “L’amour est um oiseau rebelle que nul ne peut apprivoiser” (O amor é um pássaro rebelde que ninguém pode aprisionar). Muito mais que uma declaração: o resumo da obra. E esta independência diante da sociedade e do amor, ela volta a mostrar no final do mesmo ato, ao advertir: “Si tu ne m’aimes pas, je t’aime, se je t’aime, prends garde à toi” (Se não me amares, eu te amarei, e se eu te amar, tenha cuidado).

A partir daí, com o seu envolvimento com Don José, um cabo que cuida da ordem em Sevilha, fica claro que a relação será de morte quando Carmen paquera soldados e com o toureiro Escamillo. “Carmen, il es temps encore, oui, il est temps encore…Ô ma Carmen. Laisse-moi te sauver, toi que j’adore, et me sauver avec toi” [Carmen, estamos ainda em tempo, sim, em tempo ainda…Oh minha Carmen, deixa-me salvá-la, a ti, a quem adoro, e salvar-me contigo, clama, apaixonado, don José. A resposta dela chega no final da ópera: “Eh bien! frappe-moi donc ou laisse-moi passer” (Pois bem, então mata-me ou deixa-me passar)].

2.2. UMA OUTRA CARMEN

Carmen (1983), filme do italiano Francesco Rossi com o tenor espanhol Plácido Domingo e o soprano norte-americano Julia Migenes-Johnson. Orquestra Nacional da França, sob direção do maestro Lorin Maazel. No cinema, Carmen foi adaptado várias vezes. Pouco após o sucesso do filme Gilda, com Rita Hayworth, o mesmo diretor e a mesma atriz principal uniram-se para dar vida à personagem que mudou a vida do soldado Don José ao seduzi-lo.

2.3. CARMEN: UMA VERSÃO BRASILEIRA DE AUGUSTO BOAL

O espetáculo “Carmen”, dirigido por Augusto Boal, teve uma receita muito simples: utilizou a mesma música da obra de Bizet, apenas interpretada por instrumentos e ritmos diferentes, e cantada sem a impostação lírica. A ópera contou a história da cigana Carmen. Vivendo entre a pior laia de contrabandistas, bandidos e rufiões, acabou sendo morta por José, um soldado apaixonado que não agüentou vê-la em outros braços. A montagem de Boal utilizou ritmos bem brasileiros como o frevo, samba, maracatu, baião e modinhas imperiais para contar o enredo, porém manteve-se fiel à harmonia original da ópera.

O resultado foi um espetáculo muito mais próximo da realidade brasileira, as possibilidades de identificação foram evidentes, já que o tema foi universal, a fogosidade de Carmen teve tudo a ver com a mulher brasileira e a música esteve ao alcance de qualquer compreensão. Segundo Boal, o objetivo não foi popularizar, mas nacionalizar a ópera, buscando uma autenticidade pessoal.

Depois de “Carmen”, existem outras adaptações a caminho. Seu grupo já estava trabalhando em “La Traviata”, e desejava ainda fazer a “A Cavalgada das Valquírias”, de Wagner, “O Barbeiro de Sevilha” e sete versões de diferentes Orfeus.

3. CARMEN NO CINEMA

Em 1983, Carlos Saura produziu uma adaptação de Carmen. Percebemos a personagem Carmen manter uma identidade, mantendo especificidades nas três produções. No livro existiu uma Carmen ladra, assassina, mas capaz de cuidar do amado com dedicação sincera e atitudes ternas. Sua liberdade, os envolvimentos amorosos foram insuportáveis e seu amante a mata. Na ópera, Carmen foi operária de uma fábrica de charutos e seduziu Dom José. Apareceu Micaëla, mocinha da terra natal a contrastar com Carmen, a cigana. Micaëla simbolizou o contato com a mãe amada. Carmen, paixão, desvio e a mulher amada. Carmen encontrou novo amante, um toureiro. Ela se negou a ficar com Dom José que a matou ao som de aplausos às verônicas em segundo plano. A heroína caiu suave sobre os braços algozes, tal pássaro inocente. O filme retratou a montagem do balé Carmen, ao mesmo tempo em que uma trama concomitante a esta se desenvolveu. Procurou-se uma bailarina para interpretar Carmen. Não importava a técnica aperfeiçoada ou a experiência das candidatas.

O que procurou, o coreógrafo encontrou numa bailarina inexperiente. Apaixonaram-se e as histórias se entrelaçaram, livro, ópera e roteiro. Perceberam-se três “Carmens” distintas. A da ópera foi uma heroína, possui força e nobreza por seguir seus desejos. A Carmen do livro roubou, incitou crimes e quando foi assassinada não teve a morte triunfal que apareceu na ópera. No filme, Carmen foi uma mulher comum. O coreógrafo lhe vai dando os contornos da Carmen do livro e da ópera e aparecem as citações a estas duas outras obras. Mesmo com tantas diferenças, a identidade permaneceu. Na novela de Mérimée, somos surpreendidos por momentos em que uma imagem se destaca, presentifica-se em nós. Surpreendidos por tal imagem, somos remetidos a outros universos, a outras imagens. Não se trata de uma imagem material e sim de um estado de alma, de um movimento, de uma ação. Estado que nos toma, movimento que se desprende do livro. O movimento é o de rapidez, o de revezamento entre amor e paixão, entre belo e feio, lealdade e traição, liberdade e aprisionamento, vida e morte. Tudo isso estava presente em Mérimée, ressurgiu em Bizet de forma transformada e reapareceu em Saura.

Como uma Fênix, mais do que simples fonte de inspiração para Bizet e libretistas, algo pareceu surgir na novela de Mérimée e se instalar na ópera de forma independente. Tal pássaro, de rapidez absoluta, não nos permitiu a definição da trajetória e que nos entonteceu com presença eterna. Citemos G. Bachelard: “A Fênix dos poetas explode em palavras inflamadas, inflamantes. Está no centro de um campo ilimitado de metáforas. Uma tal imagem não pode deixar a imaginação tranqüila.” (BACHELARD, 1981, p. 23). Esta apresentou-se quando o narrador descreveu Carmen com recortes poéticos na narrativa. A poesia estava no “nó de duas palavras valorizadas por sua união” (BACHELARD, 1981, p. 45). Os recortes não falavam de substâncias, possibilitaram-nos experimentar o dinamismo que produziam por metáforas repetidas, conjugadas, produtoras de impacto. “Para não vos fatigar com uma descrição prolixa, acrescentarei apenas que a cada defeito ela reunia uma qualidade que se destacava mais fortemente ainda pelo contraste” (MÉRIMÉE, 1999, p. 9).

A cigana foi representada pelo conjunto entre o bom e o mau, o bem e o mal, o feio e o belo. Tal Medusa, cuja beleza do rosto contrastava com o terror de seus cabelos de serpentes e o reflexo no escudo de Perseu o protegeu talvez por, entre outros significados, estar o de ser reflexo turvo demais, impedindo o contraste definido. Eis o ingrediente para repetir Carmen de forma singular, a sedução dos contrastes. Fala-se de duas faces da moeda, de equivalências. O que seduziu em Carmen e petrificou em Medusa foram os opostos lado a lado. Na ordinária de Mérimée, sobressaíram os roubos, a ternura. Nas árias de Bizet, as modulações indo sempre do grave ao agudo bruscamente, permitindo apenas a cantoras experientes a dádiva do convite a esta interpretação. A Habanera trouxe na letra a conjugação “l’oiseau rebel”. Os outros personagens giravam como satélites, pois a protagonista impôs a todos um desafio: o de viver segundo a lei do desejo, o confronto com os opostos.

Bachelard colocou que um pintor podia pintar uma Fênix incendiada e dar à sua obra o título de O Amor. Da mesma forma, Carmen, ao cantar a Habanera, suscitou muitas imagens, dentre elas a da liberdade. Bachelard prosseguiu dizendo que a função fabuladora adquiriu toda a sua extensão pela palavra. A imagem visual foi apenas um instantâneo. A função fabulatória pertencia ao reino do poético. Ao analisar a imagem da Fênix, destacou os atributos que escapavam à condição natural e se instalavam em outro terreno, o reino do poético. A imagem Carmen que possibilitou muitas metáforas é o que a ligava a imagem da Fênix. “Imagem tornada Verbo”. A imagem Fênix suscitou uma série de metáforas que se contradizem e ao mesmo tempo se alimentavam mutuamente: a vida, a morte, o masculino, o feminino. Carmen promove uma dança de contradições, um revezamento de opostos.

Tal imagem não se descreveu, só podemos nos referir a ela através das metáforas que foi capaz de suscitar. Como Bachelard disse a respeito da Fênix: “A Fênix é então um instante, um instante poético. Não se descreve o que surge. O gênio está em provocá-lo” (BACHELARD, 1983, p. 45). Aproximando Fênix de Carmen, esta citação resumiu o que Mérimée, Bizet e Carlos Saura fizeram ao produzirem suas obras. O que pareceu surgir na novela de Mérimée e instalar-se na ópera, renascendo de outra forma no filme de Carlos Saura e que ressurgiu em nossa alma, a cada vez que entramos em contato com qualquer uma das três expressões, foi Carmen, a mesma Fênix perpetuando-se em imagens sempre renovadas.

Existiu também uma versão de Carmen dirigida pelo diretor espanhol Vicente Aranda e protagonizada pela atriz Paz Vega, Carmen (2003). A versão moderna do clássico começou seguindo a original e apresentou Mérimée como um viajante-narrador, em uma de suas incursões pela Espanha. Durante uma tarde, quando buscou um lugar para repousar, ele teve seu primeiro contato com o atormentado Don José (Leonardo Sbaraglia). Sem conhecer sua história, ele dividiu sua refeição e charutos com o homem que teve sua vida destruída ao se apaixonar por Carmen. A única informação que recebeu de seu guia espanhol é que se trata de um assassino que foi banido da cidade.

Ao visitar uma igreja, Mérimée acabou por encontrar a cigana, uma belíssima jovem em sensuais trajes vermelhos e pretos, que se diz filha do diabo. Ela o convenceu a ver sua sorte nas cartas, mas as previsões são interrompidas com a chegada de seu amante, que expulsou o escritor. José reconheceu o francês, mas manda-o embora. Eles voltaram a se encontrar alguns dias depois quando Mérimée descobriu que José foi preso. Em seu cárcere e à beira de sofrer a pena de morte, ele contou para o atento ouvinte sua história.

Apesar do conhecido desfecho trágico, o longa-metragem marca pela atenção dada ao relacionamento amoroso e à paixão inflamada do casal. Com muitos tons vermelhos e amarelos e cenas tórridas de sexo, foi trazido para a tela o lendário calor espanhol. Tudo isso com a ajuda da beleza natural da atriz Paz Vega, que aparece em diversos nus, inclusive frontais.

Para viver o casal protagonista de seu vigésimo quarto filme, Vicente Aranda, também diretor de Os Amantes (1991) e Paixão Turca (1994), escolheu dois destacados jovens (e belos) atores, o argentino Leonardo Sbaraglia, de 34 anos, e a espanhola Paz Vega, 28.

Paz Vega começou sua carreira em 1999, com os filmes Zapping, Sobreviviré e Nadie Conoce a Nadie. Dois anos depois recebeu o Goya de Atriz Revelação, por sua atuação no sensual Lucia e o Sexo, de Julio Medem. No Brasil, tornou-se conhecida por sua participação em Fale com Ela, de Pedro Almodóvar. Seu último filme exibido no país foi o musical O Outro Lado da Cama, de Emilio Martínez Lázaro.

Além das dezenas amantes que povoam a ficção de Mérimée, na vida real Carmen teve adoradores de peso. Não morreria de ciúmes o apaixonado José ao saber que os diretores Cecil B. Mille, Jean-Luc Godard, Carlos Saura, Francesco Rosi, Charles Vidor, dentre outros lhe dedicaram filmes? Por sua carga dramática e elementos como amor, paixão, sexo, ciúmes e assassinato, a história da indomável cigana já foi produzida em países como a Argentina, Alemanha, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, México, Suécia, Eslovênia e etc. Isso tudo sem contar as infinitas montagens da ópera de Bizet, que estreou pela primeira vez em março de 1875, feitas anualmente em várias partes do planeta.

4. ARTES PLÁSTICAS

Nas artes plásticas, Carmen foi desenhada por ninguém menos que o genial Pablo Picasso, que em 1949 lançou uma edição de apenas 320 exemplares de ilustrações sobre a história da cigana, junto com Gustave Doré. No Brasil, o polêmico diretor teatral Gerald Thomas criou em 1986 o espetáculo “Carmen com Filtro”, com Bete Coelho no papel principal, dando também sua versão para o mito (Dominique Valansi).

Carmen cigana envolvente, quente como o sangue espanhol, criada pelo escritor Prosper Mérimée em 1845 e transformada em ópera 30 anos depois por Georges Bizet, Carmen continua modelo de mulher fatal em plenos anos 80 após ter encantado cineastas célebres como Ernest Lubitsch, Charles Vidor e Otto Preminger. “O amor é filho da boemia e jamais admitiu leis” – proclama o livreto da ópera que atraiu um dia até o filósofo Nietzsche. Na área cinematográfica, Francesco Rosi, Jean-Luc Godard, Peter Brook e Carlos Saura são os mais recentes apaixonados, criando diferentes versões da mesma personagem. Do enfoque operístico de Rosi, passando pelo coreográfico de Saura, à versão desconcertante e fragmentada de Jean-Luc Godard, com a linda holandesa Maruschka Detmers, há Carmens para todos os gostos, reforçando no cinema o mito da operária provocante, que tira do sério um soldado e depois troca-o por um toureiro.

O espanhol Carlos Saura realizou o seu Carmen apoiado principalmente na coreografia de Antônio Gades (que fez também a coreografia do filme-ópera de Francesco Rosi) e na guitarra flamenga de Paco de Lucia. Este Carmen é simplesmente a despojada filmagem de um ensaio de balé sobre a história de Prosper Mérimée, tendo como trama os diálogos entre os bailarinos que intercalam as danças, sempre exuberantes e passionais. Essa proposta, despretensiosa e documental, contrasta bastante com o aspecto altamente dramático de outras versões, com estrelas do porte de Theda Bara, Pola Negri e Rita Hayworth. Sem se preocupar em reviver a tragédia de Carmen, o filme de Saura é um simples e tradicional espetáculo de dança hispânica, feito sob medida para agradar exclusivamente os amantes da dança e da Espanha.

5. CONCLUSÃO

Podemos supor que o texto Carmen tenha tocado num ponto arquetípico do imaginário, daí suas freqüentes adaptações e a atração exercida. Um texto bastante claro e sucinto foi o ponto de partida desse personagem, que desde então passou a povoar o imaginário da humanidade, ligado a esse forte nome.

6. BIBLIOGRAFIA

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MÉRIMÉE, Prosper. Correspondance générale. Éd. M.Parturier avec la coll. de P.Josserand et J.Mallion, t. I-VI: Paris, Le Divan, 1941-1947; t. VII-XVII: Toulouse, Privat, 1953-1964.

MÉRIMÉE, Prosper. Études sur les arts du Moyen Age. Éd. Pierre Josserand, Paris, Flammarion, 1967.

MÉRIMÉE, Prosper. La Correspondance Mérimée – Viollet-le-Duc. Éd. Françoise Bercé, Paris, éditions du CTHS, 2002, coll. Format, 42.

MÉRIMÉE, Prosper. La Guzla (1827). Éd. Antonia Fonyi, Paris, Kimé,1994, coll. Rencontres.

MÉRIMÉE, Prosper. La Naissance des monuments historiques: la correspondance de Prosper Mérimée avec Ludovic Vitet, 1840-1848, introduction et notes par Maurice Parturier, avant-propos de Françoise Bercé. Éditions du CTHS, 1998, 335 p. coll. Format, 30.

MÉRIMÉE, Prosper. Notes de voyage (1835-1840). Présentation de P.-M. Auzas, Paris, Hachette, 1971 (édition complète du Centenaire).

MÉRIMÉE, Prosper. Théâtre de Clara Gazul. Romans et nouvelles. Éd. Jean Mallion. P. Salomon, Paris, Gallimard,1979, coll. de la Pléiade, 21.

6.1. OBRAS OU REVISTAS CONSAGRADAS A PROSPER MÉRIMÉE

BERCÉ, Françoise. Des monuments historiques au patrimoine du XVIIIe siècle a nos jours ou “Les égarements du cœur et de l esprit”. Paris, Flammarion, 2000, 225 p.

BILLY, André. Mérimée. Paris, Flammarion, 1959.

CHABOT, Jacques. L Autre Moi. Fantasme et fantastique dans les nouvelles de Mérimée. Aix-en-Provence, Édisud, 1983.

CHELEBOURG, Christian. Prosper Mérimée. Le sang et la chair.Une poétique du sujet. Paris, Minard, “Archives des Lettres modernes”, n° 280, 2004.

DARCOS, Xavier. Mérimée. Paris, Flammarion,1998, coll. Grandes biographies.

DUBÉ, Pierre Hubert. Bibliographie de la critique sur Prosper Mérimée, 1825-1993. Genève, Droz, 1997, coll. Histoire des idées et critique littéraire, 358.

F. P.BOWMAN. Prosper Mérimée. Heroism, Pessimism and Irony. Berkeley, Los Angeles, University of California Press, 1962.

FERMIGIER, André. Mérimée et l Inspection des monuments historiques dans Les lieux de mémoire. Dir. Pierre Nora, II, La Nation pp.593-611.

FONYI, Antonia (dir.). Prosper Mérimée: écrivain, archéologue, historien. Genève, Droz, 1999, coll. Histoire des idées et critique littéraire, 374.

GIRAULD-LABALTE, Claire. Les Angevins et leurs monuments, 1800-1840: l invention du patrimoine. Angers, Société d études angevines, 1996, 361 p.

LAGARDE, Pierre de. La Mémoire des pierres. Paris, Albin Michel, 1979, 332 p.

LÉON, Paul. La Vie des monuments français: destruction, restauration. Paris, Picard, 1951, 584 p.

LÉON, Paul. Mérimée. Paris, Éditions du patrimoine, Connaissance des arts, 2003, 68 p.

LÉON, Paul. Mérimée et son temps. Paris, PUF, 1962, 488 p.

MONDENARD, Anne de. La Mission héliographique: cinq photographes parcourent la France en 1851. Paris : Monum, éd. du patrimoine, 2002, 319 p.

RÉAU, Louis. Histoire du vandalisme: les monuments détruits de l art français. Tome II, XIXe et XXe siècles. Paris, Hachette, 1959, 342 p. coll. Bibliothèque des Guides bleus.

REVUE EUROPE, numéro spécial consacré à Prosper Mérimée, 1975.

REQUENA, Clarisse. Unité et dualité dans l œuvre de Prosper Mérimée. Mythe et récit. Paris, Champion, 2000.

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