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terça-feira, abril 16, 2024

Cinema e Ideologia

Autoria: Patrícia Wanderley

CINEMA E IDEOLOGIA

“Ideologia: um mascaramento da realidade social que permite a legitimação da exploração e da dominação. Por intermédio dela, tomamos o falso por verdadeiro, o injusto por justo(…)”

CHAUÍ, Marilena. O que é Ideologia?

Segundo Marilena, “(…) os homens produzem idéias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural. Essas idéias ou representações no entanto, tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política.”. Para ela, é justamente esse ocultamento da realidade social que podemos chamar de Ideologia. Através dela, “os homens legitimam as condições sociais de exploração e de dominação fazendo com que pareçam verdadeiras e justas”.

O cinema como meio propagador de idéias políticas, econômicas e sociais, torna-se então, um veículo eficaz no “doutrinamento” das massas e consolidação de ideologias. Graeme Turner nos diz que nós “nos identificamos com” ou vemos a nós mesmos na tela. Para Metz, “a natureza do ato de ir a uma sala de projeção é tal que o próprio aparato do cinema nos convida à identificação. (…)Quando é recebida como perspectiva de visão numa série de imagens projetadas, a câmera torna-se um substituto dos olhos”. Segundo ele, mesmo que a câmera mostre uma série de imagens do ponto de vista da personagem do filme, ela geralmente toma a perspectiva da autoridade narradora, que identificamos como sendo o do público, ou seja, o de nós mesmos. Graeme Turner ainda nos diz que, nos identificamos com todos os personagens em vários pontos da narrativa, uma consequência de vermos a tela do cinema como se fosse uma extensão de nossas vidas reais, ou seja um “espelho de nós mesmos e do nosso mundo”.

Citaremos aqui suscintamente três exemplos de uso do cinema como propagador de ideologias. Falaremos sobre o caso da Rússia e o cinema de Eisenstein, sobre o cinema Nazista de Leni Riefenstahl, e sobre os pequenos documentários produzidos por Jean Manzon para o IPÊS (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais), patrocinados por capital americano e que apesar de curtos (eles tinham entre 8 e 10,30 minutos de duração, segundo constatou José Louseiro em análise dos mesmos), conseguiram passar muito bem sua mensagem, contribuindo para a queda de Jango e para a subida dos militares ao poder. Os filmes exaltavam abertamente a defesa da família, propriedade (privada) e religião, ao mesmo tempo em que atacavam os “baderneiros” e “agitadores”comunistas, ateus inimigos da Igreja e defensores da estatização.

A RÚSSIA E O CINEMA DE EISENSTEIN

Após a Revolução de 1917, o cinema Russo passou a ser financiado pelo Estado e tinha como objetivo divulgar a ideologia do Partido para a população Russa que era formada na sua maioria esmagadora por agricultores, gente humilde do campo e sem muito estudo. O cineasta escolhido pelo partido para realizar tais filmes foi então Sergei Eisenstein. Trataremos aqui mais especificamente de “Outubro”.

O filme foi encomendado a Eisenstein pelo Comitê Central do Partido em vistas às comemorações do 10º Aniversário da Revolução de Outubro. A versão oficial de “Outubro” é introduzida por uma narrativa afirmando ser este “um testemunho honesto e preciso do começo do Estado socialista”, tendo sido tudo retratado fielmente aos acontecimentos. Porém, cabe aqui uma reflexão, pois, o filme original foi praticamente multilado – à época do filme existia uma censura feroz – sendo assim a versão oficial deve ser vista no mínimo com ressalvas, pois, talvez a obra em sua totalidade trouxesse elementos significativos, sem os quais procurou-se limitar a visão dos fatos, direcionando-os para as novas diretrizes do partido. Notadamente a versão oficial foi suprimida pela censura em mais de uma hora de filme, principalmente nas cenas em que Trótsky, e outros dirigentes do partido, apareciam, exaltando assim a figura de Lênin, o que seria feito novamente em outros filmes de Eisenstein, como “Ivan, O Terrível” e “Alexandre Nevski”. Contudo, o filme não é meramente propagandístico como assim era o desejo dos burocratas do partido. No filme, o partido bolchevique é destacado, mas não é exaltado, e a presença do povo é muito forte, as massas são apresentadas como elemento essencial para o processo revolucionário.

Para a produção do filme, Eisenstein contou com todo apoio governamental, o palácio de inverno chegou a ficar meses a sua disposição, chegando ao ponto de deixar Leningrado sem luz para fornecer energia ao filme. Na produção do filme participaram operários, soldados, e marinheiros, que realmente lutaram na revolução de 17.

Apesar de manter características dos filmes anteriores, outubro é um filme que apresenta transformações, Eisenstein utiliza-se do que ele denominava de montagem intelectual, a imagem de objetos tomados em sua função metafórica criando conceitos na cabeça do espectador, o cinema deveria “pensar por imagens em vez de narrar por imagens”. O resultado foi a utilização de uma linguagem mais complexa, talvez pelo fato de o diretor não mais contar com a liberdade de antes.

O CINEMA NAZISTA DE LENI RIEFENSTAHL

Leni, a escolhida de Hitler para realizar os filmes de propaganda do Partido Nacional Socialista Alemão, prepara e dirige “O Triunfo da Vontade”, filme que acabou se tornando um símbolo do III Reich. O filme retrata o congresso do Partido Nazista em Nuremberg.

“Pode-se dizer que a mis-en-scène do Congresso foi desenhada em conjunto com a produção do filme, tal a perfeição com que se desenrolam as cenas captadas por 36 câmeras. Desde que, como um Deus, Hitler desce dos céus, passando pelas grandiosas cenas de impressionante demonstração de unidade e disciplinas dos membros do Partido Nazista, até cada mínimo detalhe das cenas mais próximas do Führer e seus colaboradores, das crianças perfiladas, das mulheres saudando das janelas.
Tudo..com..um..mínimo..de..narração.

(…) “O triunfo da vontade” é a demonstração e a síntese do que pode um documentário fazer como propaganda (entendida no seu sentido mais amplo) de um homem, um regime, um ideário”.

No filme podemos destacar as imagens da chegada de Hitler, onde a população o saúda numa espécie de desfile, há várias imagens em “close” da população onde observamos uma maioria de mulheres e crianças, ficando a imagem dos homens praticamente restrita apenas aos soldados nazistas que desfilavam junto a Hitler, dando a idéia de que todos os homens estavam alistados no exército e que esse era seu dever, servir para proteger suas mulheres e crianças, seu país. Podemos destacar também as panorâmicas do congresso no campo de pouso em Nuremberg, onde vemos todos os soldados enfileirados – que de longe nem parecem gente, mas sim um formigueiro – , o que nos remete à idéia de ordem e disciplina, imagens indiscutivelmente belas do ponto de vista estético, porém, que chegam até a causar calafrios de tão assustadoras, quando lembramos todo o poder que elas representam, o que poderia ter acontecido ao mundo caso Hitler não fosse derrotado na guerra, e também tudo o que aconteceu enquanto ele estava no poder. As imagens dos Diretores do Partido discursando também nos passam forte idéia de poder, força, deles são mostrados trechos selecionados de seus discursos, onde instigam os soldados a confiar no partido – tudo para a Alemanha e pelo povo alemão! – , como se este fosse a única salvação para a Alemanha da época.

Contudo podemos concluir que é uma obra de arte belíssima, porém no mínimo macabra.

OS CURTAS DE JEAN MANZON PARA O IPÊS

Oficializado em 2 de fevereiro de 1962, o IPÊS, Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, uma “sociedade civil sem fins lucrativos com tempo indeterminado, de caráter filantrópico e intuito educacional, e tendo por finalidade a educação cultural, moral e cívica dos indivíduos”, tinha como objetivo real, influenciar a burguesia e a classe média, para que não houvesse resistência ao golpe militar. O IPÊS utilizava-se de documentos, seminários e filmes que eram disseminados em empresas sindicatos e grêmios estudantis, principalmente o de Universidades como a Mackenzie e a Faculdade de Medicina de São Paulo. “A propaganda massiva e cientificamente preparada por aquele Instituto durante dois anos, hoje se sabe, pavimentou a queda do governo de Jango, que segundo a idéia do empresariado, alterariam as relações econômicas e sociais do país, ameaçando as tradições, a família e a propriedade. Foi a reação da direita conservadora à mobilização da classe trabalhadora em torno das chamadas reformas de base”. Denise Assis cita “A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe”, de René Dreifuss , no qual ele explicita que o que aconteceu em 1964 não foi puramente um golpe militar conspirativo, mas sim o resultado de uma campanha política, ideológica e militar que vinha sendo encabeçada pelo IPÊS e pelo IBAD.

O escolhido para dirigir os filmes do IPÊS foi o Francês Jean Manzon, repórter fotográfico da extinta revista “O Cruzeiro” e colaborador do DIP durante a ditadura Vargas. Através da Jean Manzon Films S.A. foram produzidos 15 filmes p&b, 16 mm, que faziam apologia ao golpe de 64. O roteirista, muito cuidadoso, nunca deixou seu nome aparecer nos créditos, porém especula-se que este seria José Rubem Fonseca, pois ele era o chefe dos redatores responsáveis pela confecção de todo o material de propaganda do IPÊS.

Para a produção dos filmes, Manzon contava com dinheiro, bom material e técnicos de primeira, o que levava a uma boa aceitação por parte do público, que chegava muitas vezes a vaiar os curtas nacionais devido a péssima projeção e ao som ruim. Os filmes de Manzon eram exibidos antes dos filmes estrangeiros, em cinemas lotados, onde chegava a levantar aplausos. O conteúdo dos roteiros era permeado de mensagens que pregavam o anticomunismo, a modernização das empresas e o engajamento do empresariado, e que o desenvolvimento só seria alcançado com segurança, liberdade e a livre-iniciativa das empresas privadas. “O autor se esmerava em convencer a burguesia e a classe média, sem a qual não haveria apoio ao golpe”. Embora Estes segmentos fossem o público alvo dos filmes, estes também eram exibidos em favelas e bairros de periferia, onde se montavam verdadeiros “cinemas ambulantes”, estes não passavam de caminhões com projetores, doados pela Mesbla. Segundo Denise Assis, a exibição dos filmes em tais locais tinha o propósito de despolitizar os mais humildes e induzi-los a idéia de que se é muito simples passar do “estado de miséria” para um “estado de riquezas”, para isso bastando apenas ter a sorte de ganhar na loteria ou de arrumar um bom casamento. Segundo ela, a mesma fórmula (apelo à sorte) seria utilizada nas novelas televisivas logo após a instauração da ditadura.

Os curtas obedeciam a uma idéia geral e foram planejados de maneira a não deixar nenhum setor de atividade de fora, de maneira a avaliar todos ao longo dos filmes. Em linhas gerais, eles passavam que a nação estava impedida de evoluir devido a ação dos “baderneiros”, que seriam os comunistas. Evitando a ação deles,

“(…)tudo de bom aconteceria e a Nação como que num passe de mágica, passaria do plano da mambembice econômica para o sonhado estágio do enriquecimento galopante (…) Segundo a ótica fantasiosa dos ipenianos e do seu cineasta, trabalhadores e patrões atuariam irmanados, pois se uns contabilizariam grandes lucros, outros teriam a certeza de poder viver com um mínimo de dignidade, na sociedade quase perfeita, católica e temente à Deus e a Igreja”.

As fitas eram espalhadas por cinemas em todo o Brasil, para serem exibidas em sessões regulares ou especiais, a partir de um acerto feito com as empresas distribuidoras e com os exibidores. O Sesi e o Senac exibiam os filmes para seus alunos e funcionários, sempre seguido de uma fita americana, com o propósito de tornar a “propaganda anti-comunista menos indigesta”. Num dos filmes, Jean Manzon chega a colocar lado-a-lado Fidel Castro, Stálin e Hitler, com o objetivo de mostrá-los como “figuras ameaçadoras que poderiam estender suas práticas comunistas até o Brasil”.

Fica claro a influência e importância que os filmes produzidos pelo IPÊS tiveram à época, contribuindo enormemente para a “formação” de opiniões que consentissem com a ideologia proposta pela “classe burguesa dominante” e que abriria o caminho para a derrubada do poder em vigência pelos militares.

Podemos concluir dessa forma que, a partir dos três exemplos acima citados, entendemos o quão importante é o cinema como meio de comunicação e como ele pode se tornar uma “arma ideológica” eficiente e perigosa quando a serviço de pessoas inescrupulosas ou de uma classe dominante, que objetivam tomar o poder ou nele se manter.

“Segundo Ferro, o filme seria uma importante fonte para revelar tanto aquilo que o autor busca expressar – que está contido na narrativa, as idéias sobre determinados personagens, fatos, práticas ou ideologias – como para se perceber o que não se queria mostrar, como os modos de narrar uma história, a maneira utilizada para marcar as passagens do tempo, os planos de câmera. A partir destes seria possível penetrar, de acordo com Ferro, em “zonas ideológicas não-visíveis” da sociedade”.

BIBLIOGRAFIA:

– CHAUÍ, Marilena. O Que é Ideologia. 38ª edição, são Paulo, Brasiliense, 1994.

– TURNER, Graeme. Cinema como Prática Social. São Paulo Summus, 1997.

– ASSIS, Denise. Propaganda e Cinema a Serviço do Golpe, Rio de Janeiro, FAPERJ/MAUAD, 2001.

FILMOGRAFIA:

– Outubro, Sergei Eisenstein (1927).

– O Triunfo da Vontade, Leni Riefenstahl (1934).

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