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sexta-feira, abril 19, 2024

Libertinagem – Manuel Bandeira

Libertinagem – Manuel Bandeira

Os poemas de Bandeira nascem e crescem dos acontecimentos mais cotidianos, mais comuns, dos momentos que aparentemente sâo banais e insignificantes. Do dia-a-dia mais desapercebido desentranha sua poesia, em que instantes da existência aparecem transfigurados em pura essencialidade da vida.

Detalhes prosaicos e perdidos na rotina descolorida dos dias revelam-se instantes de iluminação, instantes de transcendência e de proximidade da essência mais profunda e mais simples — da vida. O grande milagre da existência, a mais cotidiana, que a consciência da morte revelará como algo intenso, único, irrepetível.

Sua linguagem coloquial e despojada atinge alguns dos momentos mais expressivos da língua: grande intensidade, grande condensação, com imensa simplicidade. Ao lado de Carlos Drummond, Bandeira é o grande incorporador do prosaico e do coloquial na poesia brasileira moderna.

Pneumotórax

Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
– Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
– Respire

– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Um dos mais conhecidos textos de Bandeira e de todo o Modernismo. O tema é claramente autobiográfico.Observe o tom coloquial e irônico, quebrado por uma frase-síntese de grande intensidade (segundo verso) e pelo final inesperado, desconcertante, do humor absurdo diante da morte sem remédio, final típico de

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.poema-piada característico da poesia moderna.Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do Iirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com o livro de ponto
expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averigüar no
dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as
diferentes maneiras de agradarás mulheres etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O Iirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeere
– Não quero mais saber do lirismo que não é Iibertação.

Este texto equivale a um manifesto modernista. Metapoema, poesia que fala de poesia. Observe que ele apresenta negações e rupturas — contra as convenções que desfiguram a criação poética, em especial as do academicismo parnasiano — e apresenta, por outro lado, afirmações Iibertárias típicas da luta modernista (particularmente no final do poema). Observe o úItimo verso, frase-síntese, verdadeiro slogan do momento heróico do Modernismo.

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro bravo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mau
E quando estiver cansado
Deito na beira do no
Mando chamara mãe-d’agua
Pra me contarar as hístórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedira concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide á vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
Lá sou amigo do rei
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada…

Texto-sintese da poesia de Bandeira, tanto de sua linguagem como de sua temática da vida que podia ter sido, que precisava ter sido — e que não foi. Observe a enumeração livre dos elementos que compõem

Pasárgada — lugar ideal, lugar de sonhos, lugar de desejos, onde a vida é o que deveria ser. Na segunda estrofe, observe a enumeração caótica, sem seqüência lógica, dos elementos. Observe também a extrema simplicidade da linguagem, junto da mais intensa expressividade.Consoada

Quando a indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga.

– Alô , iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa.
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.Um dos mais conhecidos poemas com o tema da morte. Observe o tom sereno, familiar, camarada. Consoada, a ceia de fim de ano, no texto representa encontro simbólico com a morte. O poema apresenta um balanço do vivido, sem ilusões quanto à própria finitude, e não se desfigura diante da presença indesejada pelas gentes. O

dia ti bom, com cada coisa em seu lugar. Observe também, tal como nos outros textos, a linguagem coloquial, a estrófica irregular, heterogênea, o verso livre.

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