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sexta-feira, março 29, 2024

O Moleque Ricardo – José Lins do Rego

O Moleque Ricardo – José Lins do Rego

O moleque Ricardo faz parte das chamadas obras independentes do autor, juntamente com Pureza e Riacho Doce, que apresentam ligação com os dois ciclos: o da cana-de-açúcar e o do cangaço.

O Moleque Ricardo é o romance mais político de José Lins. Nesta obra, a realidade nordestina está retratada no personagem Ricardo, que, de moleque e serviçal de engenho, passa a proletário urbano. É o romance satélite do ciclo da cana-de-açúcar. Sob o ponto de vista cronológico, fica entre Banguê e Usina. É a história de um daqueles moleques de eito, aparecidos em Menino de Engenho, e que se destaca dos companheiros, abandona Santa Rosa e vai para a cidade com a intenção de mudar de vida.

O romance demonstra o temor dos regionalistas com as novas práticas e o estilo de vida trazido pelas espaços modernos. Assim, analisando a obra, podemos perceber como a construção histórica do nordestino também possui suas descaracterizações, presente nas cidades (modelos de decadência dos costumes “tradicionais”), com práticas consideras desvirilizantes.

EXILADOS EM FERNANDO DE NORONHA
(O moleque Ricardo – Trecho)

Eles iam para Fernando de Noronha. O governo caíra em cima dos centros operários com uma fúria de ciclone. Não ficou um que não fosse arrebentado e que os seus diretores não comessem virola e cadeia. O Dr. Pestana, metido em prisão por umas horas, teve a mulher para gritar por ele, habeas-corpus que o livrasse dos constrangimentos. Os chefes operários iriam para Fernando. Lá estavam os ladrões e criminosos curtindo penas. Para lá iriam os operários. Sebastião e o povo da padaria de seu Alexandre estavam na lista para seguirem. Diziam os jornais que Sebastião era um perigoso agitador e a padaria onde ele trabalhava um foco terrível. Fernando de Noronha com eles.
Seu Lucas andava triste. Foi ao desembargador que ele curara da mulher, mas o homem lhe desenganou. Ninguém fosse falar ao governo em favor de operário. O governador queria fazer uma limpeza na cidade, porque a canalha não deixava ninguém descansar com esta história de greve todos os dias. Ele estava perdendo o tempo. E a mulher de Jesuíno e os filhos nas grades do jardim do seu Lucas, chorando.
– Vai para casa, mulher! – dizia o pai-de-terreiro. Ele volta! Um dia ele volta!
E os filhos de Deodato e os de Simão pedindo notícias a seu Alexandre:
– Foram para os infernos! Perderam-se porque quiseram! Agora que agüentem!
Mas seu Alexandre se lastimava. Os homens sabiam trabalhar de verdade. Os outros que tinham vindo substituí-los não valiam nada. Onde encontrar um boca-de-fogo como Deodato, um pãozeiro como Ricardo, um masseiro como Simão? Seu Antônio foi ao patrão e disse mesmo:
– Precisas fazer voltar esses homens senão eu me retiro.
– Voltar como, homem de Deus? Já falei com o Dr. Demócrito. O governo faz questão de castigar, de dar um termo a esta greve.
Não havia mesmo jeito. Os homens iriam mesmo para Fernando. Seu Lucas, no jardim, andava triste, debruçava-se sobre as roseiras sem entusiasmo. Os negros iriam para Fernando. Jesuíno e Ricardo na ilha com os ladrões e criminosos. O jardineiro olhava o chão pensando nos homens. O que tinham feito eles demais? Jesuíno e Ricardo não mataram ninguém, não tiraram o alheio. Iam para Fernando. Seu Lucas viu o sol nas suas plantas sem saber o que o sol fazia. Botava água nos canteiros, sem saber o que a água fazia. Os amigos dele seriam mandados de navio para o mar, para o meio do mar, com ladrões e assassinos. E os outros? Simão e Deodato? Eram bons também, as mulheres também chorariam de fome. Por que não mandavam o Dr. Pestana? De cócoras, mexendo na terra molhada, o velho censurava as coisas, o velho sentia a miséria das coisas. Aquilo era uma ruindade sem tamanho.
Numa manhã, os homens saíram para Fernando. Ricardo, Deodato, Simão, Jesuíno para um canto do navio olhavam o Recife coberto ainda de sombras da madrugada. Viam vapores grandes no cais, catraieiros trabalhando àquela hora. Mas havia um silêncio grande, um silêncio medonho nos barcos dormindo e nas águas do rio. Eles olhavam para o lado do cais e viam as casas e a terra que iam deixar. Simão para um lado, triste, de cabeça baixa, Deodato dizendo:
– Se ao menos eu pudesse ver os meninos!
E o negro Jesuíno sentado em cima de umas cordas. Sebastião só fazia dizer:
– A gente volta. Um dia a gente volta.
Ricardo olhava para todos. Ele sentia uma vontade desesperada de vomitar, aquele cheiro aborrecido de bordo lhe embrulhava o estômago. Iam para Fernando. Conhecera no engenho um homem, um assassino que estivera em Fernando de Noronha. Chamava-se Noé e contava tanta coisa triste de lá. Fernando de Noronha, ninho de tudo que era homem sem remédio e sem jeito. Ele ia para lá e não sabia o mal que tivesse feito.
– Homem, dizia Jesuíno para Simão, o governo só faz isto porque não tem família.
– Eu até nem penso mais nos meninos, respondia Simão. Vai se perder tudo, Jesuíno. Vai se perder tudo.
Deodato era mais forte:
– Não faz mal, eles arranjam jeito de viver.
Sebastião, de pé:
– É isto mesmo. Se a gente esmorecer, sofre mais.
Ricardo se lembrava da mãe Avelina. Com que alegria ela recebera a carta dizendo que ele ia! Os negros todos da rua se assanharam na certa com a notícia. Ricardo ia chegar calçado de botina e de gravata no pescoço, como o José Ludovina no dia da eleição. Ricardo no Recife não tirava a botina dos pés, mas agora era isto que estava se vendo. Cercado de água por todos os lados, para o resto da vida. Morreriam por lá.
Agora o sol já cobria o cais, já os sobrados altos se mostravam para eles. E o navio ia sair com pouco mais, com as máquinas dando sinal. Eles viram então seu Lucas em pé no cais. O vapor já não estava atracado. Seu Lucas dava com as mãos para eles. O negro velho em pé, com o sol na cabeça branca, dando com os braços para eles. Ricardo olhava para o amigo.Sempre ele tinha o que lhe perguntar nas grades de seu jardim. O negro velho gostava dele. E o vapor ia saindo devagarinho. Simão botava as mãos na cabeça para chorar. Deodato firme e Jesuíno gritando:
– Lá está pai Lucas! Pai Lucas, toma conta dos menino!
Sebastião não dizia nada. O vapor ia virando para o outro lado e eles correram para dar com as mãos para o velho amigo. O negro velho em pé como uma estaca de cercado no cais de cimento.
Os negros bons iam para Fernando. O que tinham feito eles? dizia seu Lucas voltando para casa. O que tinham feito eles, os negros que não faziam mal a ninguém? Jesuíno era uma besta de bondade, Ricardo tão bom! Os outros deviam ser também. O que tinham feito eles para ir pra Fernando? Seu Lucas não sabia. Queriam de comer, queriam de vestir, queriam viver. E seu Lucas chegou no jardim com esta dor no coração. Vira os seus negros no vapor mandados para Fernando. Murchassem as roseiras, cortassem as formigas as folhinhas das plantas, secassem os canteiros. Os seus negrinhos iam pra Fernando. Que tinham feito eles para ir pra Fernando? Seu Lucas cuidava das plantas. Os trens passavam roncando pelas grades de seu jardim. Passavam vendedores cantando as suas vendagens. O homem da vassoura parou para falar:
– Soube, seu Lucas, o navio saiu hoje cheio de gente. Da minha rua foi um. Ninguém fez nada não. Foi por causa da greve.
Seu Lucas não disse nada e o homem se foi. O feiticeiro sentiu uma cousa de fora entrando dentro dele. Era bem diferente da entrada de Deus em seu corpo. Era uma coisa que nunca tinha sentido em sua vida. Tinha sofrido muito neste mundo de Deus. Prisões, cadeia, mas tudo ele agüentava com fé, agüentava sabendo que era bom para ele sofrer. Agora não. Uma coisa de fora mexia com o negro velho. O sol queimava as folhas de suas plantas, as roseiras abriam-se para o sol. Seu Lucas não via o jardim, a sua cássia-régia gloriosa, as dálias cheias de vida. Não olhava, não via. Os seus negrinhos iam para Fernando. Num mar navegando, num mar carregados para o cativeiro. Ficou pensando. Uma coisa esquisita entrava pelo seu corpo. Que fizeram os negros? Que fizeram Ricardo e Jesuíno? Mataram? Roubaram? O governo mandara os infelizes pra Fernando.
Seu Lucas ficou assim até de noite. Era noite de culto, noite de rezar para o seu Deus.
Os cantos das negras, os passos das negras, no Fundão, tiniam no terreiro com os instrumentos roncando. Naquela noite o negro velho vestia as suas vestes sagradas sem saber o que ia fazer. Todos já estavam prontos para os ofícios, para as rezas familiares. Seu Lucas de lado tirava as rezas. Era o cantar mais triste que um homem podia tirar de sua garganta. Os negros respondiam no mesmo tom. E foi crescendo a mágoa e foi subindo a queixa para o céu estrelado do Fundão. O sapatear dos negros estremecia o chão, os instrumentos acompanhavam as queixas, os lamentos. E com pouco seu Lucas começou a dizer o que não queria, o que sentia. As palavras do ritual não eram aquelas que lhe queriam sair da boca. Deus estava no céu. Ogum no céu com S. Sebastião. Ele queria cantar outra coisa que não aquilo que ele cantava todas as noites. E os negros na dança iam ouvindo o que pai Lucas dizia. O mestre falava dos negros que iam pra Fernando.
– Que fizeram eles? Que fizeram eles?
– Ninguém sabe não.
Que fizeram os negros que iam pra Fernando? A voz de Lucas vibrava. Todo o seu corpo se estremecia.
– Que fizeram eles que vão pra Fernando?
E os negros respondiam misturando a língua da reza deles com as perguntas do sacerdote, de braços estendidos para o céu.
– Que fizeram eles? Ninguém sabe não!
E o canto subia, subia com uma força desesperada. As negras sacudiam os braços para os lados como se sacudissem para fora do corpo. Os peitos, as carnes se movimentando numa impetuosidade alucinante. A terra do Fundão estremecia. Pés de doidos, de furiosos furavam a terra. E seu Lucas com a boca para cima misturando as mágoas com as suas rezas:
– Que fizeram ele que vão pra Fernando? Ninguém sabe não!
O sacerdote quebrando o ritual para deixar escapar a sua dor. Seu Lucas era mais um Deus naquela hora. Como um homem qualquer ele falava pelos pobres que no mar se perdiam. O canto dele varava a noite, varava o mundo:
– Que fizeram eles que vão pra Fernando? Ninguém sabe não!

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