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quinta-feira, março 28, 2024

VIDAS SECAS – GRACILIANO RAMOS

Vidas secas – Graciliano Ramos

Vidas Secas (1938), um dos romances mais fortes de nossa literatura, pode ser visto como irmão de Morte e Vida Severina, não só pela temática, mas também pela linguagem direta, seca, cortante, livre da viciosa idéia de que o texto artístico precisa ser empolado e adjetivoso. Note o emprego da ordem direta das orações, que em sua maioria são curtas. É impressionante como esse romance consegue arrancar beleza de material tão simples.

De fato, Vidas Secas parece uma obra predestinada a superar limitações. É econômica em sua linguagem, sem ser pobre. É modernista, sem se preocupar em desacatar a norma gramatical. É regionalista, mas enfoca problemas que vão além do Nordeste. Aliás, esse último aspecto é o que mais se destaca. A abordagem principal da obra não é exatamente a seca, mas a presença em toda parte do binômio opressão-submissão, abrindo caminho para o massacre do caráter humano, também visto na dificuldade de linguagem de Fabiano e na animalização dele e de sua família.

Supera também limitações no campo da estruturação. Seus 13 capítulos são células, cada uma com sua própria identidade narrativa. Por esse motivo há quem lhe impute a classificação de livro de contos. No entanto, pode-se vê-la também como novela, pois essas pequenas células estão interligadas, pelo fato de possuírem as mesmas personagens, no mesmo ambiente, padecendo os mesmos problemas. É mais eficaz, no entanto, perceber a visão problemática que a obra empresta ao seu herói e ao seu mundo. Seria, portanto, um romance.

No primeiro capítulo, há a apresentação dos elementos básicos da narrativa. Fica-se conhecendo a família de Fabiano, retirante por causa da seca. O mais interessante é o narrador informar que eram seis sobreviventes: o papagaio, a cadela Baleia, Fabiano, sua esposa Sinha Vitória, o menino mais novo e o menino mais velho. Dessa forma, igualam-se animais e humanos no massacre da seca.

É também importante lembrar que, no desespero da fome, o papagaio havia sido comido antes de iniciada a narrativa, pois era inútil: não sabia falar; latia. Sua incapacidade, no entanto, deve ser vista como perfeitamente lógica, pois não podia aprender a falar se o uso da linguagem é a principal dificuldade na família em que estava. O único integrante mais sociável, mais afetivo, é justamente Baleia.

Esse rebaixamento a que o narrador submete a família não está relacionado a qualquer preconceito em relação ao nordestino. Na verdade, o que se pretende é mostrar que o meio social em que estão inseridos é tão absurdo que os faz perderem a quase totalidade do caráter humano. Nesse aspecto, sua crítica torna-se extremamente aguda.

Comido o papagaio, não há mais o que os retirantes possam utilizar. Estavam fadados à morte. A sorte é que encontraram uma fazenda abandonada e pouco depois Baleia caça um preá para que possam comer. É o suficiente para garantir uma sobrevida de pelo menos mais um dia.

Satisfeito com essa chance, Fabiano passa a sonhar como seria sua vida de fazendeiro. Quanto a esse aspecto, dois fatos cruciais. O primeiro é como todas as personagens trabalham com seus sonhos – são sempre jogados para um futuro impreciso, distante. É quase o mesmo que tornar essa felicidade impossível. É a realidade da opressão: não ter sonhos é perder o estímulo de vida. Então, o sistema dá vazão a só isso, sem permitir sequer o vislumbre de sua concretização.

Além disso, o trabalho que se faz com os verbos é bastante notável. Note a mudança entre os verbos que relatam os sonhos de Fabiano (futuro do pretérito, o tempo da possibilidade) e ações da própria cena em si, em que o protagonista procura água (pretérito perfeito e imperfeito, tempo das ações realizadas). Essa virtuosidade vai-se realizar também no capítulo “Inverno”, por exemplo, com a descrição da seca em pretérito-mais-que-perfeito (adequado para relatar ações anteriores ao que está sendo narrado: a época da chuva excessiva). Outro momento em que isso se vai realizar é no último capítulo, “Fuga”, no qual o narrador relatará com fidelidade os sonhos esperançosos de Fabiano na cidade grande. Nesse capítulo, o emprego do pretérito imperfeito mostra que o narrador, apesar de ser fiel ao pensamento da personagem, não compartilha com suas crenças.

Aliás, a posição que esse narrador assume representa o grande triunfo da Prosa Regionalista. Esse estilo padecia de um grande problema cujo exemplo máximo é São Bernardo (1934), do mesmo autor. A grande dificuldade dessa obra é conceber um semi-analfabeto como um narrador muito sofisticado. É o Regionalismo fechado a um impasse: se mantivesse fidelidade ao universo sertanejo, inclusive à sua estrutura de pensamento, perderia literariedade; se mantivesse literariedade, perderia fidelidade. Vidas Secas soluciona esse problema ao apresentar um narrador onisciente (que garantirá o caráter estético do livro, além da visão crítica e histórica dos fatos apresentados), que se utilizará do discurso indireto livre (o que garantirá fidelidade ao universo narrado).

O segundo capítulo, “Fuga”, mostra Fabiano estabelecido. Está satisfeito, apesar da volta do dono da fazenda, que o fez descer da condição de proprietário a vaqueiro. No entanto, a postura crítica do narrador mostra elementos comprometedores. Em primeiro lugar, a descrição feita da personagem – barba e cabelos ruivos, olhos azuis, rosto avermelhado – revela que pertence ao que seria chamado de raça ariana, o que serve para ressaltar um aspecto cruel do seu meio, pois o homem se sente um cabra, ou seja, mestiço, já que sempre viveu nas terras dos outros, cuidando das coisas dos outros. O massacre é tão forte que chega até a mexer na identidade étnica.

Esse destroçar de identidade conseguirá ser reforçado pela maneira como o protagonista se qualifica. Empolgado com sua nova condição, exclama: “Fabiano, você é um homem!”. Arrepende-se, pois não possui semelhanças com as pessoas, diante das quais se encolhe, não conseguindo comunicar-se. Entende-se melhor com os animais e se comporta como eles. Assim, refaz seu conceito e qualifica-se como um bicho, orgulhando-se, pois indica sua capacidade para resistir às dificuldades do meio.

O terceiro capítulo, “Cadeia”, já mostra Fabiano na cidade, fazendo compras. É convidado pelo Soldado Amarelo a participar de uma partida, em que acaba perdendo. Levanta-se exaltado, pois imagina a bronca que receberá de Sinha Vitória. No entanto, para o soldado aquilo foi interpretado como uma ofensa, uma afronta. Vai tomar satisfações com o cabra, pisando-lhe o pé. De alpercata (alpargata), o coitado não agüenta a pressão da botina e acaba berrando, o que provoca sua prisão por desacato. No cárcere, mostra-se indignado por tudo aquilo ter acontecido por não saber falar direito. Revela-se, além da questão da opressão, a idéia, cara ao autor, de que o domínio da linguagem é sinônimo de poder, no mínimo de liberdade ou de não-exploração.

O quarto capítulo é “Sinha Vitória”. Apresenta-se nele o grande sonho da protagonista: possuir uma cama de couro igual à do seu Tomás da bolandeira. Aqui também se manifesta o aspecto de a felicidade ser colocada num futuro intangível. Outro elemento a ser notado no capítulo é a maneira desconexa e primitiva do pensamento da personagem, que aqui se manifesta do mesmo nível do de Fabiano, que curava os animais com reza. Em “Contas”, ela leva vantagem, graças à habilidade matemática.

O quinto capítulo, “O Menino Mais Novo”, apresenta a criança admirando o pai, que acabara de domar um cavalo brabo. Almeja, quando crescer, ser também um vaqueiro. E, ao contrário das outras personagens, vai tentar quebrar a intangibilidade da felicidade, querendo trazê-la para o presente. Resolve domar um bode, numa imitação, engraçada por sua ingenuidade, do pai. No entanto (mais uma manifestação da opressão), o animal não se deixa dominar e derruba humilhantemente o garoto. É o castigo por ter desejado desobedecer a uma lei tão forte de seu meio.

O sexto capítulo, “O Menino Mais Velho”, mostra o garoto preocupado em descobrir o significado da palavra “inferno”, que havia ouvido numa reza que uma mulher havia feito para curar a dor de coluna de Fabiano. Não consegue do pai a eliminação de sua dúvida. O homem enxota o menino, sob a alegação de que estaria irritando-o, mas, por meio do narrador onisciente sabemos que não quer é demonstrar fraqueza por sua ignorância. Atitude gerada pela insegurança e que pode ser vista na figura de Olímpio, de A Hora da Estrela. De novo entra em questão o poder, que se vai repetir com a mãe. Esta consegue fazer uma descrição bem viva do local que em muito se assemelha ao que sofreu durante a caminhada como retirante, o que prova a incapacidade que tem de abstração. Como sua descrição é tão viva (e concreta), o menino fica admirado e pergunta se a mãe já tinha visto, o que ela, erroneamente, encarará como questionamento. Para não comprometer sua superioridade, dá cocorotes (cascudo) no menino. Triste, refugia-se fora de casa e ganha a companhia da cadela Baleia (a única personagem afetiva na obra).

Nesse momento, ocorre algo interessante. O garoto tenha imaginar como seriam locais bem diferentes de onde vive, como o Paraíso ou mesmo o Inferno, mas não consegue fazer sua imaginação voar. No instante em que principia a decolagem, a visão de sua mãe que passa pela janela o faz voltar a terra. Temos aqui uma oposição a Primeiras Estórias, pois as personagens do livro de Guimarães Rosa têm a possibilidade de fazer o que Graciliano Ramos proíbe: transcender a realidade.

No capítulo seguinte, “Inverno”, temos a família reunida ao redor da fogueira, esquentando-se enquanto a chuva provoca uma enchente monstruosa. A opressão mostra-se onipresente, pois, quando não é a seca que massacra, é o seu contrário, a chuva. Exibe-se também neste capítulo a dificuldade de comunicação e até mesmo de afetividade entre os integrantes da família, que, ao invés de aproveitarem o calor da fogueira que os reuniu, acabam tendo um desentendimento. São personagens secas, como indicaria o título.

O oitavo capítulo, “Festa”, apresenta a família de Fabiano indo à cidade para os festejos de Natal. A proposta narrativa parece ser mostrar com são párias, ou seja, completamente deslocados do contexto social. Esse aspecto já se revela na dificuldade que têm para andar, pois estão calçados, Fabiano de botina apertada, Sinha Vitória de salto que a faz andar com uma galinha. No meio do caminho, resolvem ficar descalços até a entrada da cidade, o que é alegria para as crianças, também aliviadas. Lá dentro, agonia. Fabiano lembra-se da humilhação passada na cadeia bebe demais e acaba dormindo ao relento. Os meninos sentem-se num caos, pois não estavam acostumados a ver tanta gente reunida. Sinha Vitória pena de vontade de urinar, mas não sabe onde – até que se agacha junto à igreja, perto de umas mulheres que conversavam, e desafoga-se. Baleia quer dormir – chegou sua hora – e não consegue com a agitação das pessoas.

O capítulo mais tocante é o nono, “Baleia”, dono da narrativa que deu origem ao romance. Nele, a cadela, doente, precisa ser sacrificada para não colocar em risco os meninos. Fabiano vai cumprir sua missão, com o propósito de expedir um tiro certeiro na cabeça do animal, o que evitaria sofrimento. No entanto, erra e acerta-lhe os quartos (região lombar).

A primeira intenção da cadela é atacar quem a feriu. Porém, quando percebem quem foi o autor, justo quem cuidou dela desde filhote, não consegue fazer nada. A partir deste capítulo um novo enfoque, talvez mais cruel e crítico, vem à tona para se associar à temática da opressão: a submissão. Baleia tem em sua mente, em seus últimos momentos, a imagem do que seria o seu paraíso, um lugar cheio de preás grandes, suculentos. Consegue superar, em sua capacidade de raciocínio transcendental, os membros da família de Fabiano.

O décimo capítulo, “Contas”, apresenta Fabiano fazendo acerto com o dono da fazenda em que trabalha. Já tinha recebido um cálculo feito por Sinha Vitória sobre quanto iria receber. Mas o proprietário vem com uma conversa estranha de juros, o que diminui o pagamento. Fabiano exaspera-se com aquilo que considera injustiça, mas, quando o fazendeiro usa o velho argumento de que, se o cabra não estivesse satisfeito, que procurasse outro lugar, torna-se mais uma vez submisso, mesmo contra a vontade. Mais uma vez, a temática do capítulo 3: se tivesse capacidade de articulação de um discurso de defesa, não seria enganado.

O décimo primeiro capítulo, “O Soldado Amarelo”, mostra o reencontro de Fabiano com o seu opressor. Agora, com a vantagem do vaqueiro, pois seu opositor está em meio da caatinga, sem o apoio dos companheiros de tropa. O oficial percebe sua desvantagem e passa a tremer, o que deixa Fabiano enraivecido, pois não entende como um tipo que se arvorava tanto na cidade agora tremia vergonhosamente. Ainda assim, mais uma vez o novo tempero dos dois capítulos anteriores manifesta-se: Fabiano fora “adestrado” a respeitar gente do governo, a respeitar farda. Não reage, pois. Mostra-se submisso e o soldado aproveita-se da vantagem.

O penúltimo capítulo, “O Mundo Coberto de Penas”, é um prenúncio do que se sucederá. É o surgimento das aves de arribação, que estão em busca de água, já rarefeita. É o sinal de que a seca estava voltando.

Destaque deve ser dado ao olhar cinematográfico do narrador quando relata a chegada dos pássaros. Nesse trecho, como na descrição da ferocidade da chuva (“Inverno”) e na belíssima abertura do romance, o que vale, para fruir toda a beleza do texto, é imaginar como seriam visualmente tais cenas.

No último capítulo, “Fuga”, ocorre o que já estava previsto no anterior: a família de Fabiano é expulsa mais uma vez pela seca, tornando-se retirante. A diferença, se há, é que agora alimentam esperanças de um futuro melhor, pois partem em direção ao sul (Região Sudeste, provavelmente). Contudo, deve-se notar o distanciamento que o narrador mantém, principalmente graças à manipulação das formas verbais, em relação aos sonhos de Fabiano e Sinha Vitória. Outro elemento digno de nota é o caráter cíclico que se estabelece, pois a família foge da seca no último e no primeiro capítulo. Tal aspecto é uma das explicações para o adjetivo “secas” do título da obra: reforça a idéia de que são vidas que não frutificam, não têm perspectiva de futuro. É, pois, um final de travo amargo, a lembrar a esperança seca que muitos também enxergam no desfecho de Morte e Vida Severina.

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