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quarta-feira, abril 24, 2024

CHOVE SOBRE MINHA INFÂNCIA – Miguel Sanches Neto

CHOVE SOBRE MINHA INFÂNCIA – Miguel Sanches Neto

O romance Chove sobre minha infância (Record, 2000), é narrado em primeira pessoa pelo personagem principal Miguel Sanches Neto. Apesar do tom memorialista e autobiográfico, por causa do uso de nomes reais, é um texto de ficção, que busca sua verossimilhança na realidade existencial, psicológica e histórica do próprio autor.

É um livro escrito para comover o leitor. Quanto à construção, temos um romance montado a partir de uma linguagem simbólica que assimila as linguagens da crônica, da poesia e do conto – o que confere à leitura do texto uma leveza e um ritmo alucinante – contrariando as fórmulas narrativas inventadas pelo pós-modernismo.

O livro inicia com o protagonista adulto lançando seu olhar sobre o passado, sua infância:
“Chovia demais naquela manhã, uma chuva que molhava o piso de vermelhão da varanda da casa onde morávamos, naquela época já de aluguel. Uma casa velha de madeira, a varanda circundada pela mureta de alvenaria. A chuva alagando o território onde aquele que fui brincava de escorregar no piso.
(…)
Sozinho na varanda, a chuva a me isolar dos amigos e da família, a sensação de abandono me punha a escrever nas paredes, náufrago do tempo lutando para estabelecer contatos.
Quem seria esse interlocutor que o menino procurava?

Um amigo? Alguém da família? (…) Talvez todos, mas principalmente o adulto que a criança se tornaria.
A partir daí a narração assume o ponto de vista do menino, com uma linguagem simples, lírica, confessional, própria da idade, que vai contar os fatos que marcaram sua vida dos três aos dezessete anos. Fatos estes que se transformam em símbolos, pela força das metáforas, que vão moldar o caráter e a formação moral do personagem.

Primeiro, o fato que divide sua história em pré-história e história propriamente dita: a morte do pai analfabeto, de quem herdou os cadernos em branco e a missão de preenchê-los. Pois é a partir daí que se delineia sua vocação de homem das letras, que passa do papel passivo do leitor para o papel ativo do escritor. Leitor de sua realidade, escritor de seu próprio destino.

O segundo fato marcante é a chegada do padrasto. De repente, o menino vai até o quarto da mãe e descobre na cama, ao lado dela, um homem. É Sebastião, que consigo traz mais dois irmãos para o pequeno Miguel. É o início de sua via-crucis, pois os valores ortodoxos e anacrônicos do padrasto vão construir uma barreira intransponível entre eles.

Já na escola fica marcada a diferença entre os meninos. Zé Carlos e Luís tiram notas menores que Miguel, porém trabalham melhor do que ele e por isso recebem mais elogios do pai, que só recebe recriminações. As surras parecem sempre mais doloridas para ele do que para os outros. E o ódio pelo padrasto aumenta cada vez mais. Ele não quer ser o sucessor do padrasto em seus negócios rurais.

Miguel encontra nos livros o sossego e o mundo que o ajuda a suportar a realidade. Para o padrasto, ele é um caso perdido. O hábito da leitura o acompanha quando ingressa no Colégio Agrícola, lugar onde, na contramão do senso-comum, envereda pelos livros que vão consolidar sua consciência crítica: de Augusto dos Anjos a Marx, passando por Kafka e Eduardo Galeano. A partir daí, Miguel vai transformando seu gosto pela literatura em vocação. Já escreve seus primeiros poemas.

Porém, antes de se tornar escritor, torna-se professor. Faz mestrado, doutorado. Enfim, vence na vida seguindo o caminho que escolheu. É sua vingança contra um padrasto que encarnou todos os percalços enfrentados por um menino-adolescente na sua descoberta da vida, nos seus ritos de passagem, na sua história social, que de resto se parece com a história de muitos meninos brasileiros pobres do interior.

É a formação, o amadurecimento psicológico de um indivíduo dentro de condições sociais e afetivas díspares.

Um terceiro fato marcante para o entendimento da obra é a reprodução de uma carta escrita por sua irmã Carmen (na verdade, um truque narrativo), que no final do livro vem para desmitificar o pai e apresentar o discurso do padrasto, discurso este de apaziguamento entre os dois. O livro acaba sendo uma espécie de acerto de contas com a vida. Lutou contra uma destinação (ser lavrador) e cumpriu, assim, o seu destino (ser escritor):

“Vindo de um povo basicamente iletrado, recebi a tarefa de ser seu porta-voz. Escrevo por isso, para fazer com que falem estes entes sem discurso. Pode até ser uma justificativa tola, mas como ela pesa para mim. Se você não a compreende, é porque sua história é outra, você não sente o travo amargo de um silêncio centenário.

(…)

Daí esta minha vontade de habitar folhas em branco para gastar este extenso estoque de silêncio, para dissipar esta herança de desejos. Aprender a escrever foi a única saída para dar uma condição letrada à extensa ignorância de meus antepassados.”

O romance se encerra com o protagonista já adulto voltando à sua cidade, para perceber que já ele não pertence mais a ela, nem ela pertence mais às lembranças de seu passado:

“A mulher se aproxima do balcão para perguntar se sou daqui. Respondo seco:
— Fui.
— Muita gente que partiu tem voltado, mas não conheço ninguém. Sou nova na cidade.
Não digo nada, apenas olho as árvores do outro lado da rua, a velha praça e o local onde havia uma televisão. Ali, nós, crianças pobres, assistíamos velhas novelas.
— Onde o senhor mora?
— Numa cidadezinha chamada memória.
— Não sei onde fica – diz a mulher enquanto me vira as costas para atender um jovem.”

DADOS DO AUTOR

O autor nasceu em Bela Vista do Paraíso (PR), em 1965, e cresceu perto dali, em Peabiru, norte paranaense. Formado em Letras, mestre pela UFSC e doutor pela UNICAMP. Atualmente reside em Ponta Grossa, e leciona Literatura Brasileira na UEPG. Também é crítico literário da Gazeta do Povo com mais de 400 artigos publicados. Chove sobre minha infância é seu primeiro romance. Publicou ainda Inscrições a giz, poemas; Venho de um país obscuro, poemas; Abandono, haicais; Você sempre à minha volta, cartas; Biblioteca Trevisan, crítica; Hóspede secreto, contos; e Entre dois tempos, crítica.

ENTREVISTA DE MIGUEL SANCHES NETO
A MÁRCIO RENATO DOS SANTOS, E,

1. Vindo da crítica e da poesia, o que significou para você o domínio de um código de expressão tão diferente como o romance?

Nunca tive bem definida a fronteira entre estas formas literárias, e isto se reflete claramente em Chove sobre minha infância, que vai da crônica, em alguns momentos, ao poético e ao conto, para, em conjunto, formar um romance em blocos. É um livro escrito sem o desejo de pertencer a uma categoria específica, com suas leis de construção rígidas. Ao contrário, é obra composta por partes que se somam, mas que também guardam significação isolada, numa tentativa de ser, estruturalmente, o menos repetitivo possível. Não houve também uma intenção de trabalhar sobre um modelo, eu antes escrevi este livro como se tivesse vivendo um sonho, num transe narrativo que lhe deu uma configuração um tanto estranha, que pode fisgar o leitor e levá-lo até o fim numa viagem rápida, dada a intensidade do que se narra.

2. A impressão que se tem, realmente, é a de um sonho, pois você não se prende muito às minúcias realistas, buscando do real os seus signos.

Esta foi a intenção desde o início, porque me agradava encenar toda uma vida em poucas páginas, investindo muito mais na verticalidade do relato do que em sua horizontalidade, tanto de enredo quanto de língua. E para conseguir este aprofundamento me vali de situações-símbolos, cujo significado cria uma abertura metafórica. Quando falo, por exemplo, das frutas ácidas, estas entram na história muito mais como metáfora da acidez crítica do narrador do que como partícipe do mundo das coisas. É assim também com o aprendizado dolorido das quatro operações matemáticas, representação da entrada em nossa vida de uma nova família, que vai se multiplicando. Nunca tive dúvida quanto à preponderância do simbólico sobre o meramente descritivo, o que aproxima Chove sobre minha infância da estrutura poética – o epílogo, por exemplo, nasceu bem antes do livro e no formato de um longo poema, mas acabou entrando como conclusão do romance.
Não obstante esta presença do poético, não há fechamento de linguagem, sendo o livro de fácil compreensão, fundado principalmente na gramática da comoção e na leveza.

3. A literatura moderna tem medo de comover?

Não só tem medo de comover, como de ser comovida. A comoção, que sempre esteve presente nas grandes obras (penso, por exemplo, em Germinal, de Zola), ficou de quarentena nas últimas décadas, quando imperou um olhar irônico e desconfiado sobre tudo. A morte do eu na literatura deu lugar ao culto do simulacro, de tal forma que se tornou constrangedora a identificação com personagens que, previamente, se assumem como falsários. Na contramão desta corrente, ousei escrever um romance que busca, em cada uma de suas páginas, a comoção, tentando levar o leitor a se identificar com o narrador, que no caso é a mesma entidade do autor. Sou eu que narro minha história, uma história sofrida, cheia de verdades cotidianas, apresentada por um personagem que tem os olhos marejados – daí, inclusive, o sentido do título do romance.

4. Você não acha perigosa a proximidade, em Chove sobre minha infância, entre a ficção e a autobiografia?

Embora nascida de vivências reais, esta narrativa nem de longe se confunde com o estilo das memórias ou da autobiografia. Ao narrar em primeira pessoa a sua vida, o autor se coloca numa posição secundária: é sua história que se conta por ele, cabendo-lhe o papel de intermediário. Logicamente, quanto melhor for o autor, melhor serão suas memórias, principalmente pelo uso estilístico da língua. Outra característica fundamental para o gênero memória é o primado da verdade. O ficcionista, mesmo quando se vale de experiências vividas, não busca a verdade factual, mas a psicológica, seguindo não o fio linear da vida, mas fundando estruturas sobre o vivido. Portanto, meu romance é uma construção semântica sobre fatos vividos por mim. Não contei tudo o que se passou em minha formação, mas apenas as situações-chave. Eu exerci sobre minha história uma força de linguagem e de estrutura, é por isso que ela pertence ao mundo da ficção e não ao da realidade relembrada.

5. Mas o fato de você usar os nomes reais das pessoas e de incluir um caderno fotográfico não significa justamente o contrário?

As fotos fazem parte da própria semântica do livro, vindo inclusive com frases que não são meramente identificatórias, mas que se somam ao narrado. O caderno de fotos foi pensado como um capítulo do romance e não como ilustração. Já o uso de muitos nomes reais é também um recurso narrativo que busca desvelar o personagem em sua integralidade. Se o narrador não tivesse o meu nome, ele seria mais pobre do ponto de vista do relato. O peso do nome que ele sente ficaria diminuído no caso de alguma alteração. Eu tentei mudar os nomes, buscando equivalentes, mas a perda de carga simbólica foi tão grande que me entreguei à sua forma verdadeira, embora todas as pessoas sejam tratadas como personagens e não como gente real. O padrasto que aparece no romance não é a cópia fiel do meu próprio padrasto, mas uma invenção do narrador que se sentia oprimido por ele.

6. Você não corre com isso o risco de ser autocomplacente?

Chove sobre minha infância é uma narrativa que vai se construindo pela memória do narrador, que avalia tudo aquilo pelo qual passa por uma ótica pessoal, centrada em seus sofrimentos. Estamos diante de um menino de extrema sensibilidade para o confronto com o mundo e com a morte, que luta desesperadamente contra a orfandade, não só a real mas principalmente contra a orfandade cultural – ele vem de uma família de analfabetos, dedicada à agricultura, e se sente destinado para o mundo dos livros. Esta ausência do pai, morto na primeira infância, representa a própria ausência de uma herança cultural. O menino triste vai crescendo como observador de uma força negativa que o impede de ser ele mesmo. Esta força se concentrou na figura do padrasto, que nega seu projeto. O padrasto, portanto, é pintado com tintas fortes até o momento em que há, depois da consolidação da vocação do menino, agora um adulto, uma revelação que o concilia com o mundo do padrasto. O livro não é complacente com o narrador, porque ele acaba tendo destruído o relato em que se vê como vítima.

7. A família está muito presente neste livro. Ela é ao mesmo tempo odiada e amada. Como você sente este impasse?

É dele que nasce o drama e a grandeza de minha história. Quer queiramos ou não, toda relação familiar se dá nesta imprecisa fronteira do amor e do ódio. Comigo, isto foi intensificado, porque à família biológica se juntou outra, a da padrasto, que trouxe valores muitos conflitantes com os nossos. Amar odiando e odiar amando a família foi e continua sendo um grande material romanesco, porque nos livra de visões maniqueístas e planificadoras.

8. O que significa para a sua família este romance?

Como se trata de uma família praticamente analfabeta, de pouca instrução e muita solidão de linguagem, acredito que meu romance é um acerto de contas com este doloroso passado sem discurso. Uma família destinada ao silêncio e à lavoura súbito encontra em um de seus descendentes o porta-voz desta solidão que anseia ser linguagem. Embora a primeira redação deste livro tenha sido muito rápida, tomando-me pouco mais de um mês, eu costumo dizer que ele demorou cem anos para ser escrito. Desde minha bisavó, depois minha avó e minha mãe, todas com grande sensibilidade literária, esta história veio se escrevendo no código imperfeito dos sentimentos repartidos. Como fui eu o primeiro a adquirir instrumentos e instrução literária adequada, a história se concretizou em minhas mãos, mas veio com uma grande potência atávica.

9. O livro trata de uma trajetória brasileira de grande força, em que o narrador se constrói pela linguagem, amadurecendo nela. Foi difícil acompanhar a linguagem do narrador?

Da criança ingênua que comete alguns erros de visão e de língua ao adulto que olha seu passado com olhos úmidos vai realmente uma distância de linguagem. Este amadurece ao poucos de forma a manter verossimilhança com o imaginário das várias fases do narrador. Por isso insisto que não se trata apenas de uma história contada, mas de uma narrativa construída com a busca minuciosa de uma familiaridade com a língua. Assim, quando o menino se sente traído por sua própria inteligência, há dois capítulos em que a escrita atinge uma situação de violência, representado por um ritmo alcoolizado, que no fundo é o rito de passagem para a vida adulta.
10. Como você, que é crítico, vê este livro no atual momento literário brasileiro?

Primeiro, trata-se de um livro à parte, por sua construção e por sua intenção. Eu quis escrever um romance de formação diferente, contrariando os simulacros de um pós-modernismo desgastado pelo uso repetitivo de fórmulas narrativas, recuperando assim um personagem que funciona como máquina de comover. É um livro para ser amado ou odiado. Mesmo se valendo muito delas, Chove sobre minha infância não prioriza a linguagem ou a estrutura como fim último do relato, mas como elementos de intensificação de uma história triste e bonita, vivida por gente comum, que um dia se fez autor, sujeito de sua própria existência. Ou seja, é um livro que tem um valor para além do literário por concretizar o sonho de três gerações que viveram à sombra do mundo letrado.

11. Este romance terá continuidade?

Não sei se é, propriamente, uma continuidade, mas já estou trabalhando numa nova obra que vai ser um estudo sobre as mulheres em minha família. Considero-me um herdeiro da sensibilidade destas mulheres que com fibra se insurgiram, desde o final do século passado, contra a representação do poder econômico que se encontrava nos homens. Pretendo trabalhar os erros e acertos de decisões extremamente corajosas de várias antepassadas, que construíram a história de minha família vencendo e sofrendo preconceitos.

12. É ainda a força centrípeta da família sobre a sua obra?

Sem dúvida. Eu recebi tantas informações sobre o passado de meus familiares que me sinto na obrigação de dar uma forma narrativa para tudo isso.

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