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domingo, novembro 3, 2024

TEMPO DAS FRUTAS – NÉLIDA PIÑON

Tempo das Frutas – Nélida Piñon

É o primeiro livro de contos de Nélida Piñon que mostra ser tão talentosa nas narrativas curtas quanto no romance. Suas histórias, igualmente bem trabalhadas, exploram sentimentos profundos de personagens soterrados pelo caos social da civilização. Criaturas que transitam no fraco limite do real explorando sensações distintas que, muitas vezes, se misturam com o elaborado e provocador discurso da autora.

Conto escolhido – Breve Flor

A sua inconsistência era a raça. A segura orientação do sangue. No meio da lucidez de cristal, a suavidade dos seus passos percorrendo céu e terra, tal o seu arcabouço, o ímpeto desgorvenado. Perdera o rumo entre admoestações dos amigos, e gargalhava solitária entre a graça das pedras. Até decifrá-las, desmanchar segredos, agora que recente adquirira o dom das palavras. Brincar de esconder deslumbrando os homens, seria o seu gracejo. Haveriam de procurá-la sempre que a pressentissem perdida. Engraçada era a ofensa, que sobre ela cometiam, para que vibrasse, e desse acordo de si. De um jeito ou do outro, emendava os destroços e punha vestido novo, brilhando a luz do dia, a tessitura da sua matéria.

Em certas noites, bem diante do espelho, afugentava a descoberta do corpo. Olhava até desfrutar, do conforto e da sensação. Não corando o rosto por pensar que ainda viria a se deslumbrar quando dos exames minuciosos e exaltados da carne. Assim, clareava uma zona sempre imaginada escura e imunda. Dominando o milagre, corria pela praia, as areias avançavam na medida do vento, fazendo cócegas que sempre irritam, embora a inocência.

Sobre uma pedra pensou: agora posso decifrar qualquer espera. E teve dor de barriga, como quando comia chocolate em excesso, ou como quando se deu a primeira modificação de seu corpo, alterando seus fluxos sanguíneos, o susto daquela abundancia inicial perturbando-a, a compreensão de se fazer mulher. Após o entendimento, ficou esperta e atrevida diante do exagero dos recursos recebidos. Adivinhando dispensava resposta, até aprender e respirar.

Passavam os homens pensando, como é bom uma mulher tão moça, aquilo que nela ou numa outra que surgirá sem dúvida eu dominarei, porque hei de possuir quem me aguarda para se fazer conduzir aos verdes campos, e não sendo esta moça uma outra nela já desfruto, enquanto eu viver.

Tomando sorvete cansou-se. Embora a sua coragem de continuar, porque o sol ainda brilhava. A companhia dos pequenos bichinhos, coisas nervosas protegidas por uma casca, e deixando lastro, molécula que se descobre pelo brilho. Tão engraçados, e mais do que companhia ofereciam-lhe espanto, a qualquer momento descobriria um mundo imediato, surgido e acabado pela sua precária ciência, que tudo adivinha.

Apanhou um caramujo, com vontade de enfiar dentro a língua, na restrição daquela abertura, provar o sabor e graça. De repente invadida pela torpeza do pequeno animal e compreender sua artimanha, escondido lá dentro, tão preso em si mesmo que se arrebatou e foi perdido, já fugindo à ordem da sua espécie e do seu mistério. E a menina querendo por a língua temia o encontro, da língua e a coisa mole a se desfazer, até que quebrasse ela o segredo, arrebatando a fragilidade do bichinho, a secura íntima de quem inconseqüente abre as pernas, sem seleção, engolfadas no fluxo vital dos recursos estranhos.

A moça teve medo de que tendo chegado a hora, jamais se impedisse a obrigação de procriar, coisas melhores e mais sérias, ou coisas perdidas que não cedem ante a vigência da graça e do seu capricho, que é também perfeição.

Atirou longe o animal, a sua verdade, após o amadurecer necessário da sua raça inconsciente. Depois, outros homens diferentes dos primeiros, ensaiaram iniciativas mais atrevidas dispostos aos avanços que disciplinam as raças. Como se empreendessem tarefas que dominam mulheres vagas e circunspectas. Que na primavera se deixam amparar, por qualquer domínio, após armazenarem em mel a virtude os doces e paladares raros.

Pedro é meu nome, disse-lhe um, e atrevido aguardava a queda das frutas. Mexendo na terra, fingindo embaraço, atenção dispersa, sentou-se a seu lado. A moça, mudando de pedra, da mais alta para a mais baixa, nada disse. Desdenhoso o rapaz fumou um cigarro, protegido pela fumaça gritou, e o seu, como é? Feiticeira ela disse: uma moça não tem nome. Como um cavalheiro sereno com as inquietações do seu cavalo, cheio de regras e espaldas incandescentes, respondeu-lhe: de agora em diante se você não tem nome, já tem dono.

Depois, ela arrumou a casa, cuidou dos vegetais selvagens, enfeitava a mesa para consagrar a vida. Delicada com a limpeza dos objetos. Até que ficou grávida e bonita, a violência do crescimento. Mal percebera porque era simples, sentindo os seus efeitos, e tal a sua modéstia. Diariamente o rapaz ocupava a casa, perdendo cerimônia e graduação do respeito. Esfregava-se abusado pela poltrona, após o que a arrastava para a cama. A moça, ainda deslumbrando-se, deixava-se ir, entre irritada e exaltada. Tendo-se tornado um hábito, extraía-lhe o homem à vontade e o ímpeto. Mal se definiam as orientações da sua natureza.

E assim iam-se pondo até que a criança nasceu. Forte e atrevido como o pai, desabrochando contínuo sem que nele se estabelecesse uma beleza que logo a seguir não se alterasse. Resolveu o rapaz desaparecer, sem que jamais o encontrassem de novo. O que perturbou a moça profundamente. Embora passasse a dispensar trajetórias tão violentas, continuava olhando estrelas, a mesma intensidade. Precariamente intuía a liberdade de qualquer estima que haveria de confortá-la, disporia de farinha que enobrece o homem após a mistura delicada de algum fermento. Só então repousou um pouco. Para unir-se na cama e na mesa a um novo companheiro.

A princípio a estranheza, as hesitações de um outro corpo, a imposição de outros hábitos. Aquele riso amarelo e deslumbrado que sempre dominava o homem mesmo fazendo amor, como se também isto fosse parte do rito. Após o que, seus dentes foram caindo de tanto que se exibiram, e descobriu-se a moça unida a um velho que além de feio também impunha-lhe a sordidez da sua carne agora relaxada. Embora com dificuldade expressasse o nojo, a visão daquelas gengivas, mal agüentava o vômito, a penúria de um convívio intenso. Corria para o banheiro e ali desfazia-se abundante atrás da esperança, após a abolição de tantas coisas. Ainda assim era maciça a presença do homem, ocupando além de seu corpo, toda a casa, a cobiça do ouro na sua cara. Um dia pegou o filho já bem crescido e abandonou a casa. Afastando-se da cidade à medida que se transferia de tantos abrigos, a força de novas perturbações. Pois perdera as noções essenciais do convívio, e pretendendo gentileza descontrolava-se a toa, no tormento de querer bem viver.

Quando um outro homem a escolheu, como se escolhe leviano o que se dispõe em seguida a jogar fora. E ela aceitou confundida. Foi criar galinhas, sadia e matutina, cuidar das vacas, teimosa ficando as mãos nos ubres fartos, até sua vida modificar-se, como também o cheiro de sua pele. Ainda assim seguia a trajetória da estrela, e o seu falso brilho, como se a liberdade se experimentasse deste jeito, pelo seu excesso. Todas as manhãs friccionava as vacas, após o homem ter-lhe friccionado o corpo. Iludida de que repousaria quando ficassem velhos. Como isto demorava, e o filho crescia rápido e exagerado, a mulher hesitava diante da inovação daquele mundo que se desligara do seu ventre, marginal e operante. A luta parecia dura e brava.

Um dia, arrastando o filho, foram à cidade, depois de uma longa ausência. Delicados contemplavam a passagem épica dos homens. E tomaram sorvete, que ela tanto gostava, capitulando na apreciação vital de cerrar os olhos e gozar, o deslize da língua sem exigências maiores. Como se ao menino ensinasse futuros procedimentos quando se invade a área do prazer. E se o menino imitava a mãe, era porque fazia-lhe bem a intimidade daquela cara, que se tornara uma poderosa aparência e por dever descobrir uma expressão que nele também acusasse o gozo que haveria de sentir quando, mesmo descuidado, não conseguiria poupar seu corpo das necessárias exibições. Depois, forma outras coisas, sórdidas e coloridas, que alcançam fundo.

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