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sexta-feira, dezembro 13, 2024

A Imagem Cinematográfica no Contexto Cultural e Artístico

Autoria: Marcelo Veroneze

A Imagem Cinematográfica no Contexto Cultural e Artístico Conte

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se divide em quatro capítulos que focalizam o contexto cultural e artístico da imagem contemporânea.

O primeiro capítulo apresenta uma idéia da imagem como imagem da mídia, analisando o processo de comunicação interagindo com os meios.

O segundo capítulo apresenta um histórico sobre o cinema, numa perspectiva artística e social.

O terceiro capítulo apresenta a morte da vanguarda, um estudo sobre as artes na segunda metade do século XX, enfocando o começo da atuação do diretor do filme que constitui nosso corpus.

O ultimo capítulo enfoca o nosso corpus, o filme Sonhos de Akira Kurosawa, analisando todas as suas histórias e fazendo um breve comentário sobre o diretor do filme.

CAPÍTULO 1

A IMAGEM COMO IMAGEM DA MÍDIA

Partindo do sentido comum, das utilizações convencionais e repetidas do termo “imagem”, emprego contemporâneo do termo “imagem” remete, na maioria das vezes, a imagem da mídia. A imagem invasora, a imagem onipresente, aquela que se critica e que, ao mesmo tempo, faz parte da vida cotidiana de todos é a imagem da mídia. Anunciada, comentada, adulada ou vilipendiada pela própria mídia, a “imagem” torna-se então sinônimo de, televisão e publicidade.

Os termos não são, contudo, sinônimos. A publicidade encontra-se decerto na televisão, mas também nos jornais, revistas, nas paredes das cidades. Tampouco é unicamente visual. Existe, por exemplo, a publicidade radiofônica. Porém, a imagem da mídia é representada principalmente pela televisão e pela publicidade visual. Assim, uma coluna diária do jornal Le Monde, batizada “Imagens”, comenta as transmissões da televisão. O subtítulo de um colóquio recente consagrado à televisão era “Poder e ambigüidade da imagem”. Alguns semanários não especializados comentam com regularidade as publicidades sob a rubrica “Imagens”. As transmissões de televisão são reproduzidas pela imprensa escrita ou ainda pelo rádio na qualidade de “imagens”.

Isso se explica pela própria natureza de mídia da televisão e da publicidade, que se dirigem ao grande público. Todos as conhecem. Elas utilizam muito bem as imagens. No entanto, o amálgama imagem – televisão – publicidade mantém um certo número de confusões prejudiciais à própria imagem, à sua utilização e compreensão.

A primeira confusão é incorporar suporte a conteúdo. A televisão é um meio, a publicidade um conteúdo. A televisão é um meio particular capaz de transmitir a publicidade, entre outras coisas. A publicidade é uma mensagem particular capaz de se. materializar tanto na televisão quanto no cinema, tanto na imprensa escrita quanto no rádio. Com a repetição, contudo, a confusão, que não parece muito séria, nem de fato fundamentada. (afinal, sabe-se que a publicidade não constitui toda a televisão e vice-versa), torna-se perniciosa. Considerada como ferramenta de promoção e, antes de qualquer coisa, de promoção de si mesma, a televisão tende a estender o estilo publicitário a campos laterais, como a informação ou a ficção. Decerto existem outras causas para essa padronização dos gêneros televisuais: o contágio do fluxo televisual pode passar por outros processos como a: “espetacularização” ou a “ficcionalização”. A. publicidade, porém, em virtude de seu caráter repetitivo, ancora-se com maior facilidade nas memórias do que o desfile das imagens que a cercam.

Isso nos leva a segunda confusão, em nossa opinião mais grave. Trata-se da confusão entre imagem fixa e imagem animada De fato, considerar que a imagem contemporânea é a imagem da mídia – e que a imagem da mídia por excelência é a televisão ou o vídeo – é esquecer que coexistem, ainda hoje, nas próprias mídias, a fotografia, a pintura o desenho, a gravura, a litografia etc., todas as espécies de meios de expressão visual que se consideram “imagens”.

Considerar que, com a televisão, passou-se da “era da arte à da visualização” pretende excluir a experiência, real, da contemplação .das imagens. Contemplação das imagens fixas da mídia como cartazes, as publicidades impressas, mas também as fotografias de imprensa; contemplação da pintura, das obras e d.e todas as criações visuais possíveis, como retrospectivas de todos os tipos, permitidas precisamente pela tecnologia e pelas infra-estruturas contemporâneas. Essa contemplação descansa da animação permanente da tela de TV e permite uma abordagem mais refletida ou mais sensível de qualquer obra visual

Confundir imagem contemporânea e imagem da mídia, é não apenas negar a diversidade das imagens contemporâneas como também ativar uma amnésia e uma cegueira, tão prejudiciais quanto inúteis, para a compreensão da imagem.

Felizmente o senso comum sempre atenua e matiza essa simplificação. De um modo mais ou menos confuso, lembramos que “Deus criou o homem à sua imagem”. Esse termo, imagem, aqui fundador, deixa de evocar uma representação visual para evocar uma semelhança O homem-imagem de uma perfeição absoluta para a cultura judaico-cristã une o mundo visível de Platão, sombra, “imagem” do mundo ideal e inteligível, aos fundamentos da filosofia ocidental. Do mito da caverna à Bíblia, aprendemos que nós mesmos somos imagens, seres que se parecem com o Belo, o Bem e o Sagrado.

Dizia-se às crianças francesas que elas deviam ser “comportadas. como imagens”. Nesse caso, a imagem é precisamente o que não se mexe, Oca no lugar, não sala. Aqui, estamos bem longe da televisão, mas perto dos livros com imagens, os primeiros livros infantis, nos quais. aprende-se paralelamente a falar e reconhecer as formas, as cores e todos nomes de animais. A criança “comportada como urna imagem” ganhou muitas vezes como recompensa uma imagem (às vezes religiosas). Representações visuais e coloridas, essas imagens são de calma e de reconhecimento. Ainda que um tanto menosprezadas quando se tornam “historias em quadrinhos”, tais livros de imagens minaram nossa infância em seus momentos de repouso e sonho. “Para que serve um livro sem. Imagens?”, pergunta Alice. Imagens móveis, fixas, que podem ser um pouco mais congeladas em estereótipos e tornar-se então uma “imagem”.

No começo, havia a imagem. Para onde quer que nos voltemos, há imagem. “Por toda parte no mundo o homem deixou vestígios de suas faculdades imaginativas sob a forma de desenhos, nas pedras, dos tempos mais remotos do paleolíticos à época moderna.” Esses desenhos destinavam-se a comunicar mensagens, e muito deles constituíram o que se chamou “os precursores da escrita”, utilizando processos de descrição-representação que só se conservavam um desenvolvimento esquemático de representações de coisas reais. “Petrogramas”, se desenhadas ou pintadas, “petroglifos”, se gravadas ou talhadas – essas, figuras representam os primeiros meios de comunicação humana”. São consideradas imagens porque” imitam, esquematizando visualmente, as pessoas e os. objetos do mundo real. Acredita-se que essas primeiras imagens também se relacionavam com a magia e a religião.

Já as religiões judaico-cristãs têm a ver com as imagens. Não apenas, porque as representações religiosas estão presentes em massa em toda a história da arte ocidental, porem, mais profundamente, porque a noção de imagem, assim como sua condição, representa um problema-chave da questão religiosa. A proibição bíblica de se fabricar imagens e prosternar-se diante delas (3º mandamento) designava a imagem como estátua e como Deus. Uma religião monoteísta tinha como dever, portanto, combater as imagens, isto é, os outros deuses. A “querela das imagens”, que abalou o Ocidente do século IV ao século VII de nossa era, o ponto iconófilos e iconoclastas, é o exemplo mais manifesto desse questionamento sobre a natureza divina da imagem. Mais próximo de nós, no Renascimento, a questão da separação da representação religiosa e da representação profana estará na origem do surgimento dos gêneros pictóricos. Mesmo abolido, o iconoclasmo bizantino influenciou toda a história da pintura ocidental.

De fato, no campo da arte, noção de imagem vincula-se essencialmente à representação visual: afrescos, pinturas, mas também iluminuras, ilustrações decorativas, desenho, gravura, filmes, vídeo, fotografia e até imagens de síntese. A estatuária é mais raramente considerada “imagem”.

No entanto um dos sentidos de imago em latim, etimologia de nosso termo “imagem” designa a máscara mortuária usada nos funerais na Antigüidade romana. Essa acepção vincula a imagem, que pode também ser o espectro ou a alma do morto, não só à morte, mas também a toda história da arte e os ritos funerários.

Presente na origem da escrita, das religiões, da arte e do culto dos mortos, a imagem também é um núcleo da reflexão fisiológica da Antigüidade. Em especial Platão e Aristóteles vão defendê-la ou combatê-la pelos mesmos motivos. Imitadora, para um, ela engana, para o outro, educa. Desvia da verdade ou ao contrario, leva ao conhecimento. Para o primeiro, seduz as partes mais fracas de nossa alma, para o segundo, é eficaz pelo próprio prazer que se sente com isso. A única imagem válida aos olhos de Plantão é a imagem “natural” (reflexo ou sombra), que é a única possível de se tornar uma ferramenta filosófica.

Instrumento de comunicação, divindade, a imagem assemelha-se ou confunde-se com o que representa. Visualmente imitadora, pode enganar ou educar. Reflexo, pode levar ao conhecimento. A Sobrevivência, o Sagrado, a Morte, o Saber, a Verdade, a Arte, se tivermos um mínimo de memória nos constitui e nos convida a abordar a imagem de uma maneira complexa, a atribuir-lhe espontaneamente poderes mágicos, vinculados a todos os nossos, grandes mitos.

Podemos nos perguntar qual o ponto em comum entre uma imagem de filme ou uma imagem fotográfica e a representação mental que elas propõem de uma categoria social ou de uma pessoa, também chamada “imagem”. Esse ponto parece tão comum que não se hesita em empregar o mesmo termo para designá-las sem, com isso, provocar uma confusão interpretativa. Ausência de confusão é ainda mais surpreendente porque está diante de um ou outro tipo de imagem: uma imagem verbal, uma metáfora De fato, para ser mais bem compreendido ou para convencer, ainda é possível se exprimir por “imagens”.

Porte-se dizer que, na língua, a “imagem” é o nome comum, dado à metáfora. A. metáfora é a figura mais utilizada, mais conhecida e mais estudada da retórica, à qual o dicionário dá “imagem” como sinônimo. O que se sabe da metáfora verbal, ou da falar por “imagens”, e. que consiste em empregar uma palavra por outra, em virtude de sua relação analógica ou de comparação.

Todavia, a “imagem” ou a metáfora também pode ser um procedimento de expressão extremamente rico, inesperado, cativo e até cognitivo, quando a comparação de dois termos (explícita e implícita) solicita a imaginação e a descoberta de pontos comuns, insuspeitados entre eles. Esse, foi um dos princípios de funcionamento da “imagem surrealista” na literatura, é claro, mas também, por extensão, na pintura (Magritte, Dali) ou no cinema (Buñuel). Outras imagens…

Essa proliferação de empregos da palavra “imagem” não explica contudo, o que se designa, muitas vezes com temor, como “a proliferação das imagens”. Na vida cotidiana, a televisão propõe cada vez mais transmissões, oferece a oportunidade de empregar muitos videogames com imagens, mesmo rudimentares. Também o computador permite usar imagens graças a programas de criação de imagens ou de simulações visuais. Porém, que haja multiplicação de telas é uma coisa, que elas sejam sinônimos de imagem, e unicamente de imagem, é outra. O som e palavra escrita, por exemplo, também têm seu espaço, que não é pequeno, nas telas.

Um campo em que a imagem “prolifera” com certeza é o científico. Nele, a imagem oferece possibilidade de trabalho, de pesquisa, de exploração, de simulação e de antecipação consideráveis e, no entanto, ainda reduzidas com relação ao que seu desenvolvimento atual faz prever.

As “novas” imagens: assim são chamadas as imagens de síntese produzidas em computador que passaram nos últimos anos da representação em três dimensões a um padrão de cinema – o 35mm, as quais se pode ver atualmente nas grandes telas de alta definição.

Programas cada vez mais potentes e sofisticados permitem criar universos virtuais, que podem se apresentar como tais, mas também fazer trucagens com qualquer imagem aparentemente real. Qualquer imagem passou a ser manipulável e pode perturbar a distinção entre “real” e “virtual”.

Sem dúvida os videogames banalizaram imagens de síntese ainda. relativamente grosseiras,. Mas os simuladores de vôo herdados dos treinamentos de pilotos americanos já entraram na vida civil em instalações em que o espectador sente os movimentos ligados aos espaços que atravessa virtualmente, É o caso das cabines lúdicas de simulação de vôo e também de salas de cinema virtual, onde o movimento dos assentos, acompanha o relevo das, paisagens, visualizadas e virtualmente atravessadas.

Ainda mais ilusória, a instalação de imagens interativas permite imergir totalmente o espectador em um. universo virtual, com uma visão de 360 graus em relevo. Capacete e luvas permitem mover-se e apanhar objetos totalmente imaginários. Esqui no quarto, guerra nas estrelas em domicílio, tais projetos de vulgarização já existem no Japão. Alguns jogos permitem que um clone se mova por conta própria em um cenário totalmente virtual. Essas práticas predizem pesquisas mais complexas sobre o estímulo simultâneo dos diversos sentidos, com resistências ao esforço, feedbacks sensoriais múltiplos, destinados a se aproximar cada vez mais das situações reais.

A publicidade e os clips inauguraram procedimentos de trucagem e de efeitos, especiais, que são agora encontrados em filmes de ficção. O “truca numérico” é um computador que permite efeitos especiais detectáveis e outros imperceptíveis. O morphing, que, consiste em operar transformações, numéricas em imagens “reais” passadas por scanner, permite manipulações ilimitadas das imagens, que podem oferecer desenvolvimentos fantásticos: para a ficção, a publicidade ou os clips, mas que deixam perplexos quando se pensa na informação.

Alguns procedimentos sintéticos também, permitem a multiplicação das interfaces entre diferentes tipos de imagem, como a introdução de imagens de síntese em cenários “reais” e vice-versa. Além da brincadeira, esse tipo de procedimento consegue evitar despesas pesadas. na construção de protótipos experimentais.

O holograma – imagem a laser em três dimensões também faz parte dessas novas, imagens desconcertantes, por um lado, por- seu aspecto realista, mas também, por seu aspecto fantasmático de duplo perfeito, flutuante, como em suspensão.

Essas “novas” imagens também são chamadas de imagens “virtuais”, na medida em que propõem mundos simulados, imaginários, ilusórios. Ora, essa expressão, “imagem virtual”, não é nova e designa, em ótica, uma imagem produzida pelo prolongamento de raios luminosos: a imagem na fonte ou no espelho, por exemplo. São imagens fundadoras de um imaginário rico e produtivo.

Como toda forma de arte conhece épocas críticas, é necessário abordar o movimento dadaísta, que tentava atingir o objetivo de inviabilizar qualquer contemplação pela desvalorização sistemática. Com isso, teria favorecido o aparecimento de efeitos que o público procura no cinema.

CAPÍTULO 2

A ERA DO CINEMA

O “século XX” começa depois da Primeira Guerra Mundial, ou seja, na década de 20, assim como o “século XIX” só começou por volta de 1830. Mas a guerra marca um ponto de mutação no desenvolvimento somente na medida em que fornece ocasião para uma escolha entre as possibilidades existentes. As três principais correntes na arte do novo século têm predecessores no período imediatamente anterior: o cubismo em Cézanne e nos neoclássicos, o expressionismo em -Van Gogh e Striridberg, o surrealismo em Rimbaud e Lautréamont. A continuidade do desenvolvimento artístico corresponde a uma certa estabilidade na história econômica e social do mesmo período. Sombart limita o tempo de vidrado alto capitalismo a cento e cinqüenta anos e fá-lo terminar com a eclosão da guerra. Quer interpretar o próprio sistema de cartéis e trustes dos anos de 1895-1914 como um fenômeno de velhice e um prenúncio da crise iminente. No período anterior a 1914, entretanto, somente os socialistas falam do colapso do capitalismo; nos círculos burgueses as pessoas certamente têm consciência do perigo socialista, mas não acreditam nas “contradições internas” da economia capitalista, nem na impossibilidade de superar suas crises ocasionais. Nesses círculos não se pensa numa crise do próprio sistema. O estado de espírito geralmente confiante continua até nos primeiros anos após o final da guerra, e a atmosfera na burguesia não é, de maneira nenhuma, de desespero, a despeito da classe média baixa, que tem de lutar contra terríveis desigualdades. A verdadeira crise econômica principia em 1929 com o crash nos Estados Unidos, que põe fim ao boom da guerra e do pós-guerra e revela, de forma inconfundível, as conseqüências da falta de planejamento internacional da produção e distribuição. Agora, de súbito, as pessoas começam a discutir por toda a parte a crise do capitalismo, o fracasso da economia livre e da sociedade liberal, a iminência de uma catástrofe e a ameaça de revolução. A história dos anos 30 é a história de um período de crítica social, de realismo e ativismo, de radicalização de atitudes políticas e da convicção cada vez mais generalizada de que somente uma solução radical pode proporcionar algum remédio, por outras palavras, de que os partidos moderados tiveram sua vez. Mas em nenhum segmento da sociedade existe maior consciência da crise por que está passando o modo de vida burguês do que na própria burguesia, e em nenhum outro lugar se fala tanto do fim da época burguesa. Fascismo e bolchevismo são unânimes em considerar o burguês um morto-vivo e em voltar-se com a mesma intransigência contra o liberalismo e o parlamentarismo. De modo geral, a intelligentsia alinha-se do lado das formas autoritárias de governo, exige ordem, disciplina, ditadura, é inspirada com entusiasmo por uma nova Igreja, uma neo-escolástica e um neobizantinismo. A atração do fascismo para a deprimida camada literária, confundida pelo vitalismo de Nietzsche e Bérgson, consiste na ilusão de valores absolutos, sólidos e indiscutíveis, e na esperança de se livrar da responsabilidade que está vinculada a todo o racionalismo e individualismo; Do comunismo, a intelligentsia promete a si mesma estabelecer um contato direto com as grandes massas populares e redimir-se de seu isolamento na sociedade.

Nessa situação precária, os porta-vozes da burguesia liberal não podem pensar em nada melhor do que sublinhar as. características que o fascismo e o bolchevismo têm em comum, desacreditando um pelo outro. Assinalam o inescrupuloso realismo peculiar a ambos e encontra numa tecnocracia desumana e implacável o denominador comum a que podem ser reduzidas suas formas de organização e governo. Desprezam, deliberadamente as diferenças ideológicas entre as várias formas autoritárias de governo e representam-nas como meras “técnicas”, ou seja, como a província do expert do partido, do administrador político, do engenheiro da máquina social, numa palavra, dos “gerentes”. Existe, sem dúvida, uma certa analogia entre as diferentes formas de regulamentação social, e se partirmos do mero fato do tecnicismo e da padronização a ele relacionada podem até discernir uma semelhança entre Rússia e América. Nenhuma maquinaria estatal pode hoje dispensar totalmente os “gerentes”. Estes exercem o poder político em nome de massas mais ou menos numerosas, tal como os técnicos administram suas fábricas e os artistas pintam e escrevem para elas. A questão resume-se sempre em saber no interesse de quem o poder é exercido. Nenhum governante no mundo se atreve a admitir nos dias de hoje que sua conduta não é exclusivamente ditada pelos interesses do povo. Desse ponto de vista, estamos, de fato, vivendo numa sociedade de massa e numa democracia de massa. De qualquer modo, as grandes massas têm participação na vida política, na medida em que os poderes vigentes são obrigados a esmerar-se para desencaminhá-las.

Nada é mais típico da filosofia cultural dominante no período do que a tentativa de tornar essa “rebelião das massas” responsável pela alienação e degradação da cultura moderna e o ataque desencadeado contra ela em nome do espírito e da mente. A maioria dos extremistas professa a crença na crítica cultural usualmente confusa que sublinha essa filosofia. É verdade que as duas partes lhe atribuem significados absolutamente diferentes e travam guerra contra a “desalmada” cosmovisão científica tendo o positivismo em mente, por um lado, e o capitalismo, por outro. Mas o modo como a intelligentsia está dividida em dois campos é muito desigual até os anos 30. A maioria é consciente ou inconscientemente reacionária preparam o caminho para o fascismo sob a influência fascinante das idéias de Bérgson, Barrès, Charles Maurras, Ortega y Gasset, Chesterton, Spengler, Keyserling, Klages e outros. A “nova Idade Média”, a “nova cristandade”, a “nova Europa”, todas são cultivadas na antiga e romântica terra da contra-revolução, e a “revolução na ciência”, a mobilização do “espírito” contra o mecanicismo e o determinismo das ciências naturais nada mais é do que “o começo da grande reação mundial contra o iluminismo democrático e social”.

Nesse período de “democracia de massa” há uma tentativa de articular reivindicações e exigências em nome de grupos cada vez maiores, de modo que, por último, Hitler não teve dificuldades em nobilitar a esmagadora maioria de seu povo. O novo processo “deinocrático” de aristocratização começa por opor o Ocidente contra o Oriente, contra a Ásia e a Rússia. Ocidente e Oriente são contrastados, respectivamente, como representantes da ordem e do caos, da autoridade e da anarquia, da estabilidade e da revolução, do racionalismo disciplinado e do misticismo desenfreado, e a Europa do pós-guerra, seduzida pela literatura russa, é enfaticamente advertida de que, com seu culto de Dostoiévski e do karamazovismo, está trilhando o caminho para o caos. Na época de Vogue, a Rússia e a literatura russa não eram, de maneira nenhuma, “asiáticas” ; ao contrário, representavam o autêntico cristianismo, o qual era proposto como modelo para o Ocidente pagão. Nessa época, entretanto, ainda havia um czar na Rússia. Aliás, os novos cruzados não acreditam realmente que o Ocidente possa ser salvo e encobrem a desesperança de suas perspectivas políticas num manto geral de pessimismo. Estão decididos a sepultar toda a civilização ocidental junto com suas esperanças políticas e, como genuínos herdeiros da decadência, aceitam o “declínio do Ocidente”.

O grande movimento reacionário do século ocorre no domínio da arte como rejeição do impressionismo – uma mudança que, em alguns aspectos, forma uma incisão na história da arte mais profunda do que todas as mudanças de estilo desde a Renascença, deixando a tradição artística do naturalismo fundamentalmente incólume. É verdade que sempre existiu um vaivém entre formalismo e antiformalismo, mas a função da arte como retrato fiel da vida e da natureza jamais fora questionada, em princípio, desde a Idade Média. A esse respeito, o impressionismo foi o clímax e o término de um desenvolvimento que tinha durado mais de 400 anos. A arte pós-impressionista é a primeira a renunciar a toda ilusão de realidade por princípio e a expressar sua visão geral da vida através da deformação deliberada de objetos naturais. O cubismo, o construtivismo, o futurismo, o expressionismo, o dadaísmo e o. surrealismo afastam-se com igual determinação do impressionismo; vinculado à natureza e ratificado da realidade, Mas o próprio impressionismo prepara o terreno para esse desenvolvimento, na medida em que não aspira a ser uma descrição integrativa da realidade, uma confrontação do sujeito com o mundo objetivo como um todo, assinalando, antes, o início daquele processo que foi denominado a “anexação” da realidade pela arte. A arte pós-impressionista não pode mais ser considerada, em qualquer sentido, uma reprodução da natureza; sua relação com a natureza é de violação. Podemos falar, no máximo, de uma espécie de naturalismo mágico, da produção de objetos que existem a par da realidade mas não desejam tomar o lugar desta. Diante das obras de Braque, Chagall; Rouault, Picasso, Henri Rousseau, Salvador Dalí, sentimos sempre que, apesar de todas as diferenças, estamos num segundo mundo, num supermundo que, por muitas características de realidade ordinária que possa ainda exibir, representa uma forma de existência que ultrapassa e é incompatível com essa realidade.

A arte moderna é, porém, antiimpressionista ainda num outro aspecto: é fundamentalmente uma arte “feia”, renunciando à eufonia, às formas, tons e cores fascinantes do impressionismo. Destrói os valores pictóricos na pintura, as imagens cuidadosa e sistematicamente executadas na poesia, a melodia e a tona1idade na música. Subentende uma fuga ansiosa a tudo o que é deleitoso e agradável, a tudo o que é puramente decorativo e cativante. Debussy já opõe a frieza de tom e uma estrutura harmônica pura à sentimentalidade do romantismo alemão, e esse: anti-romantismo é intensificado em Stravinsky, Schoenberg e Hindemith, convertendo-o num antiexpressivo que repudia toda conexão com a música do sensível: século XIX. A intenção é escrever, pintar e compor com base no intelecto, não nas emoções; enfatiza-se, por vezes, a pureza da estrutura, outras vezes o êxtase de uma visão metafísica, mas há um desejo de escapar a todo o custo do complacente esteticismo sensual :da época :impressionista. O próprio impressionismo já tinha, sem dúvida, perfeita consciência da situação crítica em que se encontra a moderna cultura estética, mas a arte pós-impressionista é a primeira a sublinhar o que essa cultura tem de grotesco e de falso. Daí a luta contra todos os sentimentos voluptuosos e hedonistas, daí a melancolia, a depressão e o tormento nas obras de Picasso, Kafka e Joyce. A aversão ao sensualismo da arte mais antiga, o desejo de destruir-lhe as ilusões, chega a ponto dos artistas se recusarem agora a usar os mesmos meios de expressão e preferirem, como Rimbaud, criar uma linguagem artificial própria. Schoenberg inventa o sistema decafônico, e diz-se corretamente de Picasso que pinta cada uma de suas telas como se estivesse sempre tentando descobrir a arte de pintar.

A luta sistemática contra o uso dos meios convencionais de expressão e a conseqüente desintegração da tradição artística oitocentista começa em 1916 com o dadaísmo, um fenômeno do tempo de guerra, um protesto contra a civilização que levara o mundo à guerra e, portanto, uma forma de derrotismo. A finalidade do movimento consiste em resistir à sedução das formas prontas, sem originalidade, e aos convenientes mas imprestáveis, porque desgastados, clichês lingüísticos, que falsificam o objeto a ser descrito e destroem a espontaneidade de expressão. O dadaísmo, tal como o surrealismo, com o qual concorda totalmente a esse respeito, é uma luta pela expressão direta, espontânea, ou seja, é um movimento essencialmente romântico. A batalha é travada contra a falsificação da experiência pelas formas, da qual Goethe, como sabemos, já tivera consciência e que foi o impulso decisivo para o deflagrar da revolução romântica. Desde o romantismo, todo o desenvolvimento na literatura consistira numa controvérsia com as formas tradicionais e convencionais da linguagem, pelo que a história literária do último século é, em certa medida, a história de uma renovação da própria linguagem. Mas enquanto o século XIX limitou-se sempre a procurar um equilíbrio entre o velho e o novo, entre as formas tradicionais e a espontaneidade do indivíduo, o dadaísmo exige a completa destruição dos meios correntes e exaustos de expressão. Exige a expressão inteiramente espontânea e, assim, baseia sua teoria da arte numa contradição. Pois como poderá alguém se fazer entender – e é isso, em todo caso, o que o surrealismo pretende – e, ao mesmo tempo, negar e destruir todos os meios de comunicação? O crítico francês Jean Paulhan estabelece uma distinção entre duas categorias de escritores, de acordo com suas relações com a linguagem. Chamam “terroristas” aos destruidores da linguagem, ou seja, aos românticos, simbolistas e surrealistas, que querem eliminar por completo da linguagem as formas triviais e convencionais, os lugares-comuns, e se refugiam dos perigos da linguagem na inspiração pura, virginal e original. Lutam contra toda consolidação e coagulação da estimulante, fluida e profunda vida do espírito, contra toda exteriorização e institucionalização, por outras palavras, contra toda “cultura”. Paulhan liga-os a Rergson e estabelece a influência do intuicionismo e da teoria do élan vital na tentativa deles de preservar a qualidade direta e original da experiência espiritual. O outro campo, ou seja, os escritores que sabem muito bem que lugares-comuns e chavões são o preço do entendimento mútuo, e que literatura é comunicação, ou seja, linguagem, tradição, forma “gasta” e, precisamente por isso, não-problemática e imediatamente inteligível, recebeu de Paulhan o rótulo de “retóricos”, os artistas oradores. Considera a atitude deles a única possível, uma vez que a administração consistente do “terror” em literatura significaria silêncio absoluto, isto é, suicídio intelectual, ao qual os surrealistas só podem furtar-se através da constante auto-sugestão. Pois não existe, na realidade, convenção mais rígida e tacanha do que a doutrina do surrealismo, nem arte mais insípida e monótona do que a dos surrealistas confessos. O “método automático de escrita” é muito menos elástico do que o estilo racional e esteticamente controlado, e o inconsciente – ou, pelo menos, tudo o que dele é trazido para a luz – muito mais pobre e mais simples do que a mente consciente. A importância histórica do dadaísmo e do surrealismo não consiste, entretanto, nas obras de seus representantes oficiais, mas no fato de que chamam a atenção para o impasse em que se encontrava a literatura no final do movimento simbolista, para a esterilidade de uma convenção literária que já não tinha qualquer conexão com a vida real. Mallarmé e os Simbolistas pensavam que todas as idéias que lhes ocorriam eram expressão de sua natureza mais íntima; foi uma crença mística na “magia da palavra” que fez deles poetas. Os dadaístas e surrealistas duvidam agora de que alguma coisa objetiva, externa, formal, racionalmente organizada seja capaz de expressar o homem, e também duvidam do valor de tal expressão. É realmente “inadmissível” – pensam eles – que um homem deixe vestígios de sua passagem pelo mundo. O dadaísmo substitui, portanto, o niilismo da cultura estética por um novo niilismo, que não só questiona o valor da arte mas a situação humana como um todo. Pois, como se afirma num de seus manifestos, “aferida pelo padrão da eternidade, toda ação humana é fútil”.

A tradição de Mallarmé, entretanto, não chegou ao fim, em absoluto. Os “retóricos” André Gide, Paul Valéry, T. S. Eliot e o Rilke da última fase dão continuidade à corrente simbolista, apesar de suas afinidades com o surrealismo. São os representantes de uma arte difícil e requintada, acreditam na “magia da palavra”, sua poesia baseia-se no espírito da linguagem, da literatura e da tradição. O Ulisses de Joych e A terra devastada de T. S. Eliot vêm a lume simultaneamente, no ano de 1922, e ditam a tônica da nova literatura; um encaminha-se na direção expressionista e surrealista, o outro segue rumo simbolista e formalista. O enfoque intelectualista é comum a ambos, mas a arte de Eliot promana da “experiência de cultura”, enquanto a de Joyce resulta da “experiência de pura e primitiva existência”, tal como foram definidas por Friedrich Gundolf, que apresenta esses conceitos no prefácio de seu livro sobre Goethe e expressa desse modo um padrão típico do pensamento do período. Num caso, a cultura histórica, a tradição intelectual e o legado de idéias e formas são as fontes de inspiração, no outro, os fatos diretos da vida e os problemas da existência humana. Com T. S. Eliot e Paul Valéry, o alicerce primordial é sempre uma idéia, um pensamento, um problema; com Joyce e Kafka, uma experiência irracional, uma visão, uma imagem metafísica ou mitológica. A distinção conceitual de Gundolf é o registro de uma dicotomia que está sendo levada a cabo em todos os campos da arte moderna. Cubismo e construtivismo, por um lado, expressionismo e surrealismo, por outro, consubstanciam, respectivamente, tendências estritamente formais e tendências destruidoras de forma, as quais se apresentam agora pela primeira vez lado a lado em tão nítida contradição. A situação é tanto mais peculiar na medida cm que os dois estilos opostos exibem as mais estáveis combinações e formas híbridas, de modo que, com freqüência, tem-se mais a impressão de uma consciência dividida do que de duas correntes antagônicas. Picasso, que muda abruptamente de uma das diferentes tendências estilísticas para outra, é, ao mesmo tempo, o artista mais representativo da .era presente. Denominá-lo, porém, de eclético e de “:mestre do pasticho” , afirmar que ele só quer. mostrar em que medida domina as regras da arte contra as quais se rebela, compará-lo como Stravinsky e lembrar como também este muda seus modelos e “faz uso de” Bach, depois Pergalesi, depois Tchaikovsky, para os fins da música moderna, não é contar a história toda. O ecletismo :de Picasso significa a deliberada destruição da unidade da personalidade; suas imitações são protestos contra o culto da originalidade; sua deformação da realidade, a qual se reveste sempre de novas formas a fim de demonstrar de maneira mais convincente a arbitrariedade destas, pretende confirmar, sobretudo, a tese de que. “natureza e arte são dois fenômenos inteiramente dessemelhantes”. Picasso converte-se num conspirador, prestidigitador, parodista, por oposição ao romântico:.com sua “voz interior”, seu “é pegar ou largar”, sua auto-estima e egolatria. E repudia não só o romantismo mas até a Renascença, a qual, com seu conceito de gênio e sua idéia da unidade de trabalho e estilo, antecipa em certa medida o romantismo. Ele representa. uma completa ruptura com o individualismo e o subjetivismo, a negação absoluta da arte como expressão de uma personalidade inconfundível. Suas obras são anotações e comentários sobre a realidade; não pretendem ser vistas como descrição ou ilustração de um mundo e de uma totalidade, como síntese e epítome da existência. Picasso desacredita os meios artísticos de expressão pelo uso indiscriminado dos diferentes estilos artísticos, e fá-la de modo tão completo e deliberado quanto os surrealistas por meio de sua renúncia às formas tradicionais.

O novo século está repleto desses profundos antagonismos; a unidade de sua concepção de vida está tão profundamente ameaçada que a combinação dos extremos mais distantes, a unificação das maiores contradições, torna-se o tema principal, freqüentemente o único tema, de sua arte. O surrealismo, que no começo, como observa André Breton, gravitava inteiramente em torno do problema da linguagem, isto é, da expressão poética, e que, como diria Paulhan, procurou ser entendido sem os meios de entendimento, converteu-se numa arte que fez do paradoxo de todas as formas, e do absurdo de toda a existência humana, a base de seus pontos de vista. O dadaísmo ainda pleiteava, por desespero em face da inadequação das formas culturais, a destruição da arte e um retorno ao caos, ou seja, o rousseauísmo romântico no mais extremo significado do termo. O surrealismo, que suplementa o seu método do dadaísmo com o “método automático de escrita”, já expressa meio a essa crença em que um novo conhecimento, uma nova verdade e uma nova arte surgirão do caos, do inconsciente e do irracional, dos sonhos e das regiões incontroladas da mente. Os surrealistas esperam a salvação da arte, que repudiam como tal, tanto quanto os dadaístas, e se estão preparados para aceitá-la como veículo de conhecimento irracional, de um mergulho no inconsciente, no pré-racional e no caótico, e recorrem ao método psicanalítico de livre associação, ou seja, ao desenvolvimento automático de idéias e sua reprodução sem qualquer censura racional, moral e estética, pois imaginam ter descoberto aí uma receita para a restauração do velho e bom tipo romântico de inspiração. Assim, no fim de contas, ainda se refugiam na racionalização do irracional e na reprodução metódica do espontâneo; a única diferença está em que o seu método é incomparavelmente mais pedante, dogmático e rígido do que o modo de criação em que o irracional e o intuitivo são controlados por julgamento estético, gosto e crítica, e que faz da reflexão, e não da indiscriminação, seu princípio orientador. Muito mais fecundo do que a receita dos surrealistas foi o procedimento de Proust, que se colocou também numa espécie de estado sonambúlico e se abandonou à corrente de lembranças e associações com a passividade de um médium hipnótico”, mas se manteve, ao mesmo tempo, um pensador disciplinado e, num grau superlativo, um artista conscientemente criativo. O próprio Freud parece não se ter deixado iludir pelo ardil perpetrado pelo surrealismo. Diz-se que quando Salvador Dalí o visitou em Londres, pouco antes de sua morte, Freud comentou: “O que me interessa em sua arte não é o inconsciente, mas o consciente. Não terá ele querido dizer que não estava interessado na paranóia simulada do pintor, mas no método de sua simulação?

A experiência básica dos surrealistas consiste na descoberta de uma “segunda realidade”, a qual, embora inseparavelmente fundida com a realidade comum, empírica, é, não obstante, tão diferente desta que, como provas de sua existência, apenas somos capazes de formular enunciados negativos e de apontar hiatos e cavidades em nossa experiência. Esse dualismo expressa-se nas obras de Kafka e Joyce de modo mais agudo do que em qualquer outro escritor; embora nada tenham a ver com o surrealismo como doutrina, ambos são surrealistas na mais ampla acepção do termo, como a maioria dos artistas progressistas do século. É também essa experiência da duplicidade da existência, com seu hábitat em duas esferas diferentes, o que torna os surrealistas conscientes da peculiaridade dos sonhos e os induz a reconhecer na realidade mista dos sonhos seu próprio ideal estilístico. O sonho passa a ser o paradigma da representação total do mundo, na qual real e irreal, lógica e fantasia, a banalidade e sublimação da existência formam uma indissolúvel e inexplicável unidade. O meticuloso naturalismo dos detalhes e a combinação arbitrária de suas relações, que o surrealismo copia dos sonhos, não só expressam o sentimento de que vivemos em dois níveis diferentes, em duas esferas diferentes, mas também que essas regiões do ser se interpenetram a tal ponto que uma não pode subordinai-se à outra nem se opor a ela como antítese.

O dualismo do ser não é, por certo, uma concepção nova, e a idéia da coincidentia oppositorum nos é muito familiar através da filosofia de Nicolau de Cusa e de Giordano Bruno, mas o duplo significado e a duplicidade da existência, a cilada e a sedução para o entendimento humano que se ocultam em todo e qualquer fenômeno da realidade, nunca foram vivenciados de maneira tão intensa quanto agora. Só o maneirismo tinha, visto o contraste entre o concreto e o abstrato, o sensual e o espiritual, o sonho e a vigília:, numa luz igualmente ofuscante. A ênfase que a arte moderna Confere não tanto à coincidência dos próprios opostos quanto ao que há de imaginário, de fantasioso, nessa coincidência também é uma reminiscência do maneirismo. O nítido contraste, na obra de Dalí, entre a reprodução fotograficamente fiel dos detalhes e a extravagante desordem do arranjo corresponde, num nível muito humilde, à predileção pelo paradoxo no teatro elisabetano e na poesia lírica dos “poetas metafísicos” seiscentistas. Mas a diferença de nível entre o estilo de Kafka e Joyce, no qual uma prosa sóbria e freqüentemente trivial combina-se com a mais frágil transparência de idéias, e o dos poetas maneiristas dos séculos XVI e XVII já não é tão grande. Em ambos os casos, o verdadeiro tema da representação é o absurdo da vida, a qual parece tanto mais surpreendente e chocante quanto mais realistas são os elementos que constituem o todo fantástico. A máquina de costura e o guarda-chuva sobre a mesa de dissecação, o cadáver de um burro sobre o piano e o corpo de mulher nua que se abre como uma cômoda, em suma, todas as formas de justaposição e simultaneidade em que se comprimem o não-simultâneo e o incompatível são apenas expressões de um desejo de dar unidade e coerência, por certo de um modo muito paradoxal, ao mundo pulverizado em que vivemos. A arte é tomada de uma verdadeira mania de totalidade. Parece possível relacionar cada coisa com todas as demais, tudo parece incluir em si a lei do todo. A depreciação do homem, a chamada “desumanização” da arte, está ligada, sobretudo, a esse sentimento. Num mundo em que tudo é significativo ou de igual significação, o homem perde a preeminência e a psicologia sua autoridade.

A crise do romance psicológico talvez seja o fenômeno mais impressionante da nova literatura. As obras de Kafka e Joyce já não são romances psicológicos na mesma acepção em que o eram os grandes romances do século XIX. Em Kafka, a psicologia é substituída por uma espécie de mitologia, e em Joyce, embora as análises psicológicas sejam perfeitamente corretas, do mesmo modo que os detalhes de uma tela surrealista são absolutamente fiéis à natureza, não existem protagonistas, no sentido de um centro psicológico, mas tampouco uma esfera psicológica na totalidade do ser. A despsicologização do romance já começa com Proust, que, como o mestre supremo da análise de sentimentos e pensamentos, marca o apogeu do romance psicológico mas também representa o.deslocamento incipiente da alma no equilíbrio da fidelidade. Com efeito, desde que a totalidade da existência passou a ser apenas o conteúdo da consciência e as coisas adquiriram significação pura e simplesmente através do meio espiritual pelo qual são experimentadas, já não se pode continuar falando de psicologia tal como foi entendida por Stendhal, Balzac, Flaubert, George Eliot, Tolstoi ou Dostoievski. Na novelística do século XIX, a alma e o caráter do homem são vistos como o pólo oposto do mundo da realidade física, e a psicologia como o conflito entre o sujeito e o objeto, o eu e o não eu, o espírito humano e o mundo externo. Essa psicologia deixa de ser predominante em Proust, que está menos interessado na caracterização da personalidade. individual, embora seja um retratista e caricaturista candente, do que na análise do mecanismo espiritual como fenômeno ontológico. Sua obra é uma “Suma”, não só na acepção familiar de conter um quadro total da sociedade moderna, mas também porque descreve a totalidade do aparelho espiritual do homem moderno com todas as inclinações, instintos, talentos, automatismos, racianalismos e irracionalismos. O Ulisses de Joyce é, portanto, a continuação direta do romance proustiano; encontramo-nos aqui diante de, literalmente, uma enciclopédia da civilização moderna, tal como se reflete no tecido de motivos que compõem o conteúdo de um dia na vida de uma grande cidade. Esse dia é o protagonista do romance. Ao abandono do enredo segue-se o abandono do herói. Em vez de um caudal de eventos, Joyce descreve um fluxo de idéias e associações, em vez de um protagonista, uma corrente de consciência e um interminável, ininterrupto monólogo interior. A ênfase recai por toda a parte na ininterrupção do movimento, no “continuum heterogêneo”, no quadro caleidoscópico de um mundo desintegrado. O conceito bergsoniano de tempo sofre uma nova interpretação, uma intensificação e um desvio. O acento recai agora na simultaneidade dos conteúdos da consciência, na imanência do passado no presente, na convergência constante dos diferentes períodos de tempo, na fluidez amorfa da experiência interior, na imensidade sem limite da corrente de tempo onde a alma singra, na relatividade de espaço e tempo, ou seja, na impossibilidade de diferençar e definir os meios através dos quais a mente se move. Nessa nova concepção de tempo quase todos os elementos da tessitura que formam a substância da arte moderna convergem: o abandono do enredo, a eliminação do protagonista, a renúncia à psicologia, o “método automático de escrita” e, sobretudo, a montagem técnica e a combinação de formas temporais e espaciais do filme. O novo conceito de tempo, cujo elemento básico é a simultaneidade e cuja natureza consiste na espacialização do elemento temporal, em nenhum gênero se expressa de forma tão impressionante quanto na mais jovem de todas as artes, a qual data do mesmo período que a filosofia do tempo de Bérgson. A concordância entre os métodos técnicos do cinema e as características do novo conceito de tempo é tão completa que se tem a. sensação de que as categorias temporais da arte moderna, como um todo, devem ter surgido do espírito de forma cinematográfica, e fica-se propenso a considerar o próprio cinema como o gênero estilisticamente mais representativo da arte contemporânea, embora qualitativamente talvez não o mais fértil.

O teatro é, em muitos aspectos, o veículo artístico mais semelhante ao cinema; particularmente em virtude de sua com binação de formas espaciais e temporais, representa a única analogia verdadeira cora o cinema. Mas o que acontece no palco é parcialmente espacial, parcialmente temporal; via de regra, espacial e temporal, mas nunca uma mistura do espacial e do temporal, como são os acontecimentos num filme. A diferença mais fundamental entre o cinema e as outras artes é que, em sua representação do mundo, as fronteiras de espaço e tempo são fluidas – o espaço tem um caráter quase temporal, o tempo, em certa medida, um caráter espacial. Nas artes plásticas, como também no palco, o espaço permanece estático, imóvel, imutável, sem uma meta e sem uma direção; movimentamo-nos nele com muita liberdade, porque é homogêneo em todas as partes e porque nenhuma das partes pressupõe a outra temporalmente. As fases do movimento não são etapas, não são degraus num desenvolvimento gradual; sua seqüência não está sujeita a qualquer coerção. O tempo em literatura – sobretudo no teatro –, por outro lado, tem uma direção definida, uma tendência de desenvolvimento, uma meta objetiva, independente da experiência de tempo do espectador; não é um mero reservatório mas uma sucessão ordenada. Ora, essas categorias dramatúrgicas de espaço e tempo têm caráter e funções completamente alterados no cinema. O espaço perde a qualidade estática, a passividade serena, e torna-se agora dinâmico; adquire existência diante de nossos olhos, por assim dizer. É fluido, ilimitado, inacabado, um elemento com história própria, com seu próprio esquema e processo de desenvolvimento. O espaço físico homogêneo adota aqui as características de tempo histórico heterogeneamente composto. Nesse meio de expressão, as etapas individuais deixam de ser da mesma espécie, as partes individuais do espaço não são mais de igual valor; as posições são especialmente qualificadas, algumas com certa prioridade no desenvolvimento e outras significando a culminação da experiência espacial. O uso do close-up, por exemplo, não s6 tem critérios espaciais como também representa uma fase a ser atingida ou a ser suplantada no desenvolvimento temporal do filme. Num bom filme, os close-ups não são distribuídos de maneira arbitrária e caprichosa. Não são intercalados independentemente do desenvolvimento interior da cena, nem em qualquer momento e lugar, mas apenas onde sua energia potencial pode e deve fazer-se sentir. Pois um close-up não é uma imagem destacada de um contexto e emoldurada; é sempre e meramente parte de um quadro, como, por exemplo, as figuras em repoussoir da pintura barroca, que introduzem uma qualidade dinâmica no quadro semelhante à criada pelos close-ups na estrutura espacial de um filme.

Mas, como se espaço e tempo no filme se inter-relacionassem pelo fato de serem permutáveis, as relações temperais adquirem um caráter quase espacial, assim como o espaço adquire um interesse tópico e assume características temporal; por outras palavras, introduz-se um certo elemento de liberdade na sucessão de seus momentos. No meio temporal de um filme, movimentamo-nos de um modo que, sob outros aspectos, é característico do espaço, temos completa liberdade para escolher nossa direção, passar de uma fase do tempo para outra – da mesma forma que se transita de uma sala para outra –, separar as várias etapas individuais no desenvolvimento de eventos e agrupá-las, em termos gerais, de acordo com os princípios da ordem espacial. Resumindo: o tempo perde aqui, por um lado, sua continuidade ininterrupta e, por outro, sua direção irreversível. Pode ser detido, em close-ups; revertido, em flash-backs; repetido, em recordações; e avançado, em visões do futuro. Acontecimentos concorrentes, simultâneos, podem ser mostrados em sucessão; e acontecimentos temporalmente distintas em simultaneidade – por dupla exposição e alternação; o que ocorreu antes pode aparecer mais tarde, o que é ulterior ocorrer antes do tempo. Essa concepção cinematográfica de tempo tem um caráter inteiramente subjetivo e evidentemente irregular, comparado com a concepção empírica e dramática do mesmo meio. O tempo da realidade empírica é uma ordem uniformemente progressiva, ininterruptamente contínua e absolutamente irreversível, na qual os eventos seguem-se uns aos outros como “numa correia de transmissão”. É verdade que o tempo dramático não é idêntico ao tempo empírico – a confusão causada por um relógio mostrando a hora correta no palco resulta dessa discrepância –, e a unidade de tempo prescrita pela dramaturgia clássica pode ser até interpretada como a fundamental eliminação do tempo ordinário; e, no entanto, as relações temporais no teatro têm mais pontos de contato com a ordem cronológica da experiência ordinária do que a ordem de tempo num filme. Assim, no drama, ou pelo menos num mesmo ato de um drama, a continuidade temporal da realidade empírica é preservada intacta. Também aqui, tal como na vida real, os acontecimentos sucedem-se de acordo com a lei de uma progressão que não permite interrupções e saltos nem repetições e inversões, e obedecem a um padrão de tempo que é absolutamente constante, ou seja, não sofre aceleração, retardamento ou suspensão de qualquer espécie dentro de numerosas seções (atos: ou cenas). No filme, por outro lado, não só a velocidade de eventos sucessivos mas também o próprio padrão cronométrico são; com freqüência, diferentes de tomada para tomada, conforme se faz uso de câmara lenta ou acelerada, de cortes mais ou menos extensos, de muitos ou poucos closes.

O teatrólogo é proibido pela lógica do arranjo cênico de repetir momentos e fases do tempo, um expediente que, com freqüência, constituí a fonte dos mais intensos efeitos estéticos no cinema. É verdade que uma parte da história é muitas vezes tratada em retrospectiva no teatro; e os antecedentes são acompanhados de trás para diante no tempo, mas o usual é que sejam representados indiretamente – na forma de uma narrativa coerente ou de uma narrativa limitada a alusões dispersas. A técnica teatral não permite que o teatrólogo, no decorrer de um enredo que se desenvolve progressivamente, recue para etapas passadas e as insira diretamente na seqüência de eventos, no presente dramático – isto é, só há pouco começou a permiti-1o, talvez sob a influência imediata do cinema, ou sob a influ6ncia da nova concepção de tempo, familiar também através do romance moderno. A viabilidade técnica de interromper qualquer tomada sem maiores conseqüências sugere as possibilidades de um tratamento descontínuo do tempo, desde o começo, e dota o filme com os meios de intensificar a tensão de uma cena pela interpolação de incidentes heterogêneos ou pela atribuição das fases isoladas da cena a diferentes seções da obra. Assim, o filme gera muitas vezes o efeito de alguém tocando num teclado e ferindo as teclas ad libitum, para cima e para baixo, para a direita e para a esquerda. Num filme, vemos freqüentemente o protagonista primeiro no começo de carreira como um homem jovem, depois, recuando para o passado, como criança; vemos então, no desenvolvimento do enredo, como um homem maduro e, tendo acompanhado sua carreira por algum tempo, podemos enfim vê-la vivendo ainda após sua morte, na lembrança de um dos familiares ou amigos. Em conseqüência da descontinuidade do tempo, o desenvolvimento retrospectivo do enredo combina-se com o progressivo em completa liberdade, sem qualquer espécie de vínculo cronológico, e através das repetidas voltas e reviravoltas na seqüência temporal a mobilidade, que constitui a própria essência da experiência cinematográfica, é levada a limites extremos. A autêntica espacialização do tempo no filme só acontece, entretanto, quando se retrata a simultaneidade de enredos paralelos. É a experiência da simultaneidade de diferentes acontecimentos, espacialmente separados, que coloca o público naquela condição de suspense que se move entre espaço e tempo e reivindicam para si as categorias de ambas as ordens. É a simultânea proximidade e distância das coisas – a proximidade mútua no tempo e a distância umas das outras no espaço – que forma esse elemento espaço-temporal, essa bidimensionalidade do tempo, a qual constitui o verdadeiro veículo do cinema e a categoria básica de sua representação do mundo.

Num período relativamente inicial da história do cinema descobriu-se que a representação de duas seqüências simultâneas de acontecimentos é parte do estoque original de formas cinematográficas. Primeiro, essa simultaneidade foi simplesmente registrada e levada ao conhecimento do público por relógios mostrando a mesma hora ou por indicações diretas similares; a técnica artística do tratamento intermitente de um duplo enredo e a montagem alternante das fases isoladas de tal enredo só se desenvolveram passo a passo. Mais tarde, entretanto, deparamos a todo instante com exemplos dessa técnica. E quer nos coloquemos entre dois partidos rivais, dois competidores ou dois duplos, a estrutura de um filme é dominada, em todos os casos, pelo cruzamento e interseção das duas diferentes linhas, pelo caráter bilateral do desenvolvimento e a simultaneidade das ações apostas. O famoso desfecho dos primeiros e já clássicos filmes de Griffith, em que o final de um excitante enredo fica na dependência de quem alcança primeiro o objetivo – se um trem ou um automóvel, se o conspirador ou “o mensageiro do rei a cavalo”, se o assassino ou o salvador –, usando a então revolucionária técnica de quadros continuamente mudando, em flashes que surgem e desaparecem como relâmpagos, tornou-se o modelo que passou a ser seguido pela maioria dos filmes em situações semelhantes.

A experiência de tempo na era atual consiste, sobretudo, numa consciência do momento em que nos encontramos: numa consciência do presente. Tudo o que é tópico, contemporâneo, tudo o que está estreitamente unido no momento presente é de especial significação e valor para o homem de hoje, e, imbuído dessa idéia, o mero fato da simultaneidade adquire a seus olhos um novo significado. Seu mundo intelectual está saturado da atmosfera do presente imediato, assim como o da Idade Média se caracterizava por uma atmosfera sobrenatural e o do Iluminismo por uma atitude de esperança no futuro. Ele vivência a grandeza de suas cidades, os milagres de suas técnicas, a riqueza de suas idéias, as profundezas ocultas de sua psicologia na contigüidade, nas interligações e na concatenação de coisas e processos. O fascínio da “simultaneidade”, a descoberta de que, por um lado, o mesmo homem vivencia tantas coisas diferentes, desconexas, e homens em diferentes lugares experimentam freqüentemente as mesmas coisas, de que as mesmas coisas estão acontecendo ao mesmo tempo em lugares completamente isolados uns dos outros, esse universalismo, do qual as técnicas modernas tornaram consciente o homem contemporâneo, talvez seja a verdadeira fonte da nova concepção de tempo e de toda a rudeza com que a arte moderna descreve a vida. Essa qualidade rapsódica, que distingue com extrema nitidez o romance moderno da novelística de outros tempos, é, simultaneamente, a característica responsável por seus efeitos mais cinematográficos. A descontinuidade do enredo e do desenvolvimento cênico, a súbita emersão dos pensamentos e estados de ânimo, a relatividade e a inconsistência dos padrões de tempo são o que nos lembra, nas obras de Proust e Joyce, Dos Passos e Virgínia Woolf, dos cortes, dissolvências e interpolações dos filmes, e é simplesmente magia de filme o que se nos oferece quando Proust coloca dois incidentes, que podem estar a trinta anos de distância um do outro, tão juntos como se houvesse apenas duas horas entre eles. A maneira como, em Proust, passado e presente, sonhos e especulação se unem através dos intervalos de espaço e tempo, como a sensibilidade, sempre farejando novos caminhos, vagueia pelo espaço e pelo tempo, e como as fronteiras de espaço e tempo dissipam-se nessa corrente interminável e ilimitada de inter-relações: tudo isso corresponde exatamente àquela mistura de espaço e tempo em que o filme se movimenta. Proust nunca menciona datas e idades; nunca sabemos exatamente que idade tem o protagonista do romance, e mesmo as relações cronológicas dos fatos mantêm-se, com freqüência, bastante vagas. As experiências e acontecimentos não se coadunam em conseqüência de sua proximidade no tempo, e a tentativa de os delimitar e organizar cronologicamente seria tanto mais absurda, do ponto de vista dele, porquanto todos os homens, em sua opinião, têm experiências típicas que se repetem periodicamente. O rapaz, o homem jovem e o homem maduro vivenciam sempre, fundamentalmente, as mesmas coisas; o significado de um incidente só se lhe revela, com freqüência, anos depois de o ter experimentado e suportado; dificilmente, porém, pode distinguir o sedimento depositado por todos os anos que passaram da experiência do momento presente em que está vivendo. Não é ele, em cada momento de sua vida, a mesma criança, ou o mesmo inválido, ou o mesmo forasteiro solitário, com os mesmos nervos sensíveis, tensos e vigilantes? Não é, em todas as situações da vida, a pessoa capaz de vivenciar isto e aquilo, que possui nas características repetidas de sua experiência a única proteção contra a passagem do tempo? Todas as nossas experiências não ocorrem, por assim dizer, ao mesmo tempo? E essa simultaneidade não é, realmente, a negação do tempo? E não constitui essa negação uma luta pela recuperação daquela interioridade de que nos privam o espaço e o tempo físicos?

Joyce luta pela mesma interioridade, pelo mesmo imediatismo da experiência, quando, à semelhança de Proust, dissolve e dilui o tempo bem articulado e cronologicamente organizado. Também em sua obra é a permutabilidade dos conteúdos da consciência que triunfa sobre o arranjo cronológico das experiências; para ele, o tempo também é uma estrada sem direção, na qual o homem se movimenta em ambos os sentidos. Mas Joyce levou a espacialização do tempo ainda mais longe do que. Proust, e mostra os acontecimentos interiores em segmentos não só longitudinais mas também transversais. As imagens, idéias, ondas cerebrais e lembranças situam-se lado a lado, com súbita e absoluta falta de cerimônia; dificilmente se manifesta qualquer consideração por suas origens, recaindo toda a ênfase em sua contigüidade e simultaneidade. A espacialização do tempo chega a tal ponto em Joyce que se pode começar a leitura de Ulisses onde se queira, com apenas um conhecimento superficial do contexto – não necessariamente só após uma primeira leitura, como tem sido dito, e quase que em qualquer seqüência que se escolha. O meio na qual o leitor se encontra é, de fato, inteiramente espacial, pois o romance descreve não só o retrato de uma grande cidade, mas também adota, em certa medida, sua estrutura, a rede de ruas e praças nas quais as pessoas perambulam, num incessante vaivém, parando quando e onde lhes apetece. É sumamente característico da qualidade cinematográfica dessa técnica que Joyce tenha escrito seu romance não na sucessão final dos capítulos, mas – como é costume na produção de filmes – mantendo-se independente da seqüência do enredo e trabalhando em numerosos capítulos ao mesmo tempo.

Encontramos a concepção bergsoniana de tempo, tal como é usado no cinema e no romance moderno – embora nem sempre de forma tão inconfundível quanto em Ulisses –, em todos os gêneros e correntes da arte contemporânea. A “simultaneidade dos estados de alma” é, sobretudo, a experiência básica que liga as várias tendências da pintura moderna, o futurismo dos italianos com o expressionismo de Chagall, e o cubismo de Picasso com o surrealismo de Giorgio de Chirico ou Salvador Dalí. Bérgson descobriu o contraponto dos processos espirituais e a estrutura musical de suas inter-relações. Assim como quando ouvimos corretamente uma peça musical temos em nossos ouvidos a conexão mútua de cada nota com todas aquelas que já soaram antes, também possuímos sempre em nossas mais profundas e vitais experiências tudo o que vivenciamos e se tornou nosso próprio patrimônio na vida. Entendemos a nós mesmos, lemos em nossas almas como se estivéssemos lendo uma partitura musical, resolvemos o caos dos sons emaranhados e os transformamos numa polifonia de diferentes partes. Toda arte é um jogo com o caos e uma luta contra ele; está sempre avançando cada vez mais perigosamente para o caos e resgatando de suas garras províncias cada vez mais extensas do espírito. Se existe qualquer progresso na história da arte, então este consiste no crescimento constante dessas províncias arrancadas ao caos. Com sua análise do tempo, o filme situa-se na linha direta desse desenvolvimento: tornou possível representar visualmente experiências que antes só se expressavam em formas musicais. Ainda não surgiu, porém, o artista capaz de concretizar essa nova possibilidade, de preencher essa forma ainda vazia.

A crise cinematográfica, que parece estar redundando numa doença crônica, deve-se sobretudo ao fato de que o cinema não está encontrando o caminho para o cinema. Habituados a proceder à vontade dentro de suas próprias quatro paredes, são agora solicitados a levar em conta produtores, diretores, roteiristas, câmeraman, diretores de arte e técnicos de todos os gêneros, embora não reconheçam a autoridade desse espírito de cooperação ou, na verdade, a própria idéia: de colaboração artística. Seus sentimentos revoltam-se contra a idéia de a produção de obras de arte ser entregue a uma organização coletiva, a uma “empresa”, e consideram ser um rebaixamento da arte que uma ordem alheia ou, na melhor das hipóteses., uma maioria estranha deva dizer a última palavra em decisões cujos motivos, com freqüência, são incapazes de explicar. Do, ponto de vista do século XIX, a situação com a qual o escritor é solicitado a concordar é deveras incomum e anormal. Os esforços artísticos pulverizados e incontrolados do presente deparam-se agora, pela primeira vez, com um princípio oposto a sua anarquia. Pois o mero fato de um empreendimento artístico basear-se na cooperação é prova evidente de uma tendência para a integração, da qual se pusermos de lado o teatro, onde se trata mais, em todo caso, de uma questão de reprodução do que de produção de obras de arte – não tinha havido realmente nenhum exemplo perfeito desde a Idade Média e, em particular, desde a corporação de pedreiros. Até que ponto a produção de filmes ainda está longe, porém, do princípio geralmente aceito de um grupo de cooperação artística é evidenciado não só pela incapacidade da maioria dos escritores de estabelecer uma conexão com o cinema mas também por fenômenos como Chaplin, que acredita dever fazer sozinho o máximo possível e

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