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terça-feira, abril 16, 2024

DIREITO ECÔNOMICO

Introdução:

A maleabilidade de que se reveste o Direito Econômico, caracteriza-se, ao lado da diversidade de instrumentos, processos e tipos de atos adequados ao atendimento das finalidades sociais colimadas, pela “relativa imprecisão de suas regras, e por conseqüência, na extensão da liberdade de apreciação que consente à administração”

As peculiaridades da matéria econômica exigem do legislador a adoção de técnicas que permitam conciliar a tendência conservadora do Direito, refletida no procedimento legislativo, com o dinamismo da Economia, impulsionada por leis próprias e naturais, porém suscetíveis de uma margem de intervenção limitada.

A maleabilidade será, então, um traço original do Direito Administrativo Econômico, marcado pela preferência às fontes mais comodamente modificáveis, ou seja, genericamente, pela fonte regulamentar. Importa perquirir—e tal é o objetivo do texto—a extensão da competência, legalmente atribuída às Agências Reguladoras, de expedição de normas cogentes, analisando sua legitimidade em face da visão contemporânea do princípio da legalidade.

A tarefa a ser empreendida envolve a superação de obstáculos doutrinários, sustentados por uma visão oitocentista da lei formal como fonte (legítima) única do Direito e do regulamento como fiel executor daquela; daí afirmar-se que da lei apreende-se o fundamento único da legitimidade e controle do poder regulamentar.

Num primeiro momento, pretenderemos analisar a evolução pela qual vem passando o tradicional princípio da legalidade, para então enfrentar a difícil, porém cada vez mais importante questão traduzida no questionamento: o momento de aplicação/interpretação da norma setorial quando da expedição de regulamento pela agência, envolve ou não atividade criativa do direito? Antecipando uma resposta positiva, cumpre expor considerações acerca da legitimidade de tais regulamentos em face do princípio da legalidade e os mecanismos de controle que doutrina e jurisprudência vêm construindo, com base no princípio da proporcionalidade.

II. Princípio da Legalidade na Administração Reguladora

Evolução histórica do princípio da legalidade:

Na clássica exposição de Otto Mayer sobre o Direito Administrativo, a idéia de Estado de Direito (Rechtsstaat) se caracteriza pela concepção da lei como ato emanado do Parlamento representativo e se concretiza: a) na supremacia da lei sobre a Administração; b) subordinação à lei, e somente à ela, dos direitos dos cidadãos, com exclusão, portanto, de poderes autônomos da Administração que possam incidir sobre eles; c) presença de juízes independentes com competência exclusiva para aplicar a lei, e somente a lei, às controvérsias surgidas entre os cidadãos e entre estes e a Administração.

O Estado de Direito liberal era um Estado legislativo, que afirmava a si mesmo através do princípio da legalidade que expressava a idéia da lei como ato normativo supremo, derrotando a primazia das tradições jurídicas do Absolutismo e do Ancien Regime. O Estado de Direito e o princípio da legalidade supunham a redução do Direito à lei e a exclusão, ou, ao menos, a submissão à lei de todas as demais fontes do Direito.

Na França Revolucionária, a soberania da lei se apoiava na doutrina da soberania da nação, que estava “representada” pela Assembléia Legislativa.

A distinta posição frente à lei, que diferenciava a Administração pública dos sujeitos privados era conseqüência do princípio da liberdade, ao lado do princípio da legalidade, como pilar do Estado de Direito. A proteção da liberdade exigia que se admitissem as intervenções da autoridade apenas como exceção, ou seja, somente quando previstas em lei.

Também a generalidade da lei era garantia da imparcialidade do Estado em relação aos componentes sociais, assim como de sua igualdade jurídica, da certeza e previsibilidade do Direito.

Numa sociedade ‘monoclasse’, como afirma ZAGREBELSKY, a lei tudo podia, não havendo acima dela nenhuma regra jurídica que servisse para estabelecer limites, uma vez que estava materialmente a um contexto político e social definido e homogêneo.

A Revolução Francesa, e a crescente preocupação com proteção dos direitos fundamentais (basicamente a liberdade e a propriedade), levaram o novo Estado de Direito ao desafio de conciliar a tradicional liberdade decisória da Administração com a observância do princípio da legalidade, popularizando as idéias de regulamentação, sem lacunas, da Administração pela lei e do amplo controle pelos Tribunais. Somente após muitos anos de debate, a discricionariedade passou a ser aceita como verdadeira necessidade para habilitar a Administração Pública a agir com mais eficiência na organização dos serviços públicos e do atendimento das múltiplas demandas e reivindicações das sociedades industrializadas.

Com o advento do sufrágio universal e do Estado Constitucional de Direito, altera-se tal posição dos particulares frente à lei em numerosos setores do direito, que já não se inspiram na premissa liberal da autonomia como regra e do limite legislativo como exceção.

“En determinados sectores particularmente relevantes por la connotación social del estado contemporáneo, se niega el principio de la libertad general salvo disposición legislativa en contrario. En su lugar se estabelecen prohibiciones generales como presupuestos de normas o medidas particulares que eventualmente las remuevan en situaciones.”

EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA e TOMÁS-RAMÓN FERNÁNDEZ observam, especificamente sobre as autorizações administrativas que o “conceito de autorização em sentido estrito que chegou até nós se formou no século passado (…). A crise do esquema tradicional se deu mais agudamente a partir do momento em que, ultrapassando o campo próprio da ordem pública, em sua tríplice dimensão compreensiva da tranquilidade, segurança e salubridade, em função da qual foi pensado dito esquema, a autorização foi transplantada ao complexo campo das atividades econômicas, nas quais desempenha um papel que não se reduz ao simples controle negativo do exercício de direitos, mas que se estende à própria regulação do mercado, com o explícito propósito de orientar e conformar positivamente a atividade autorizada no sentido da realização de uns objetivos previamente programados ou ao menos implicitamente definidos nas normas aplicáveis”.

Essa nova geração de autorizações propicia o surgimento de uma relação de caráter continuado entre a entidade autorizante e o sujeito autorizado, o que se dá em razão da importância da atividade autorizada, cuja realização se estende no tempo e compromete interesses públicos e gerais. Evidencia-se a aproximação entre as características da autorização de trato sucessivo e a concessão administrativa de serviço público. A submissão aos regulamentos a que se sujeita a atividade autorizada por sua conexão com o interesse público, e a vinculação continuada que surge entre a entidade autorizante e o sujeito autorizado para o desenvolvimento da atividade são notas comuns à fórmula concessional.

A crise da vinculação da administração à lei deriva da superação, por parte do aparato estatal, de sua função, prevalentemente “garantidora”, ou seja, de sua função de garantia concreta das regras jurídicas gerais e abstratas mediante atos aplicativos individuais e concretos e da assunção de tarefas de gestão direta de grandes interesses públicos, o que requer a existência de “grandes aparatos organizativos que atuam sua própria lógica, determinada por regras empresariais de eficiência, exigências objetivas de funcionamento, interesses sindicais dos empregados”.

Também a ascensão das classes operárias ao plano político, tornou-se mais difícil conceber a vontade parlamentar, expressa nas leis aprovadas, como a “vontade geral”. Para dizer com Karl Engisch, se, “plano superior, não temos de representar o poder legislativo como um aparelho racional que, segundo princípios abstractos, produz leis que são as ‘únicas justas’, mas como um processo orgânico por múltiplas componentes pessoais que em grande parte são ‘multividencial’ e ‘politicamente’ propelidas, como um processo no qual se luta vivamente pelo ‘justo’ (…) assim também não nos é lícito, no plano inferior da aplicação do direito (no mais lato dos sentidos), conceber os funcionários, as autoridades, o juiz e os tribunais como apenas chamados a uma esquemática execução do direito”.

Sobre essa nova feição da separação dos poderes estatais, assevera ALEXANDRE ARAGÃO, citando ROGÉRIO GUILHERME EHRHARDT SOARES: A “separação de poderes” deve ser atualmente encarada pelo prisma do pluralismo existente na sociedade, que “tem o significado de colocar perante várias instâncias da máquina estadual as reclamações ou o apoio de vozes diferentes. E assim resulta numa potenciação da divisão de poderes na organização interna do Estado, que ganha outra vez o valor duma divisão política. Só que, em vez da fórmula do século XIX de uma separação taxativa entre pretendentes ao poder, cada um com o seu veículo de expressão numa ‘função’ do Estado, vamos encontrar um sistema bem complexo e subtil (…). O pluralismo social vem assim a integrar-se num quadro alargado de separação de poderes, e representa uma função positiva na organização dum estado moderno”.

Em uma sociedade complexa e pluralista não há apenas um interesse público, mas muitos (melhoria e ampliação dos serviços, modicidade das tarifas, atração de investidores estrangeiros, regras pré-estabelecidas para propiciar maior segurança jurídica, possibilidade de adaptação das regras a circunstâncias supervenientes, etc.), o que leva ODETE MEDAUAR a observar que “à concepção de homogeneidade do interesse público, segue-se, assim, uma situação de heterogeneidade; de uma idéia de unicidade, passou-se à concreta existência de multiplicidade de interesses públicos. A doutrina contemporânea refere-se à impossibilidade de rigidez na prefixação do interesse público, sobretudo pela relatividade de todo padrão de comparação. Menciona-se a indeterminação e dificuldade de definição do interesse público, a sua difícil e incerta avaliação e hierarquização, o que gera crise na sua própria objetividade”.

Redução da generalidade e abstração das leis:

Ao lado dos problemas acima apontados, acrescentamos a redução da generalidade e abstração da lei como fator de crise do princípio da legalidade.

“La época actual viene marcada por la pulverización del derecho legislativo, ocasionada por la multiplicación de leyes de carácter sectorial y temporal, es decir, de reducida generalidad o de bajo grado de abstracción”. A crescente vitalidade de certos grupos sociais, em cada vez mais rápida transformação, requerem normas jurídicas adequadas às necessidades e destinadas a perder rapidamente seu sentido. Acrescente-se também a cada vez mais marcada “contratualização” dos conteúdos da lei. O ato de criação do direito legislado é a conclusão de um processo político em que participam numerosos sujeitos particulares.

Tal fenômeno constitui expressão do princípio da proporcionalidade, mais especificamente do elemento ‘necessidade’. ALEXANDRE ARAGÃO citando HEINRICH SCHOLLER observa que as restrições à liberdade econômica devem “operar apenas em um degrau (ou esfera)”, passando para fase seguinte “tão somente quando uma restrição mais intensa se fizer absolutamente indispensável para a consecução dos fins almejados”. Prossegue o ilustre professor: “Este é o elemento do Princípio da Proporcionalidade que leva à tendência atual da Administração dar preferência a mecanismos consensuais, indutivos e, portanto, menos constritivos, de regulação da economia. “O poder de império da Administração deixou de ser um dos seus principais (senão o único) dos seus poderes, para passar a figurar como um (e não o mais importante deles) dos aspectos das ações do estado. Se for possível alcançar o interesse público visado de maneira consensual, os instrumentos coercitivos deverão ser descartados por desproporcionais. Essa assertiva revela-se ainda mais forte quando a regulação vertical não for urgente, hipóteses em que a Administração Pública deverá tentar alcançar seus objetivos consensualmente e, em caso de insucesso, aí sim, partir para a adoção de instrumentos coercitivos de regulação da economia (princípio do trial and error das políticas públicas).

ODETE MEDAUAR assevera que contemporaneamente se impõe a modificação do ‘entendimento de sacrifício de interesse em benefício de outro, ou de primazia de um sobre outro interesse. Cogita-se hoje da função atribuída à Administração de ponderação dos interesses em confronto; o princípio é da não sacrificabilidade a priori de nenhum interesse; o objetivo dessa função está na busca do estatuto da compatibilidade entre os interesses (…) Pode-se associar à orientação ora exposta, de necessidade de completa apreciação de todos os fatores e interesses, com vista à sua conciliação e sacrifício mínimo, à previsão do princípio da impessoalidade, para todos os setores da Administração pública, na Constituição Federal, art. 37, caput.

Ficou evidente que, perante a dinâmica do mundo moderno, no qual sempre vêm surgindo situações novas e imprevistas, que exigem uma atuação célere e eficaz da Administração, o legislador está impossibilitado de regulamentar todos os possíveis casos de modo antecipado e em detalhes.

Muitos dos textos legais não apresentam mais as tradicionais hipóteses, mas prescrevem somente a perseguição de determinados objetivos, fins e metas, o que necessariamente abre uma maior liberdade de decisão para os governos e os órgãos administrativos que as implementam.

Em que pese a crítica de EROS ROBERTO GRAU, para quem: “a discricionariedade é atribuída, pela lei, à autoridade administrativa; não decorre da lei, utilizando-se o verbo decorrer, aqui, para referir a circunstância de o emprego, pelo texto legal, de conceitos indeterminados conduzir à discricionariedade” (grifos no original), cumpre observar, com ANDREAS KRELL, que “desde o fim dos anos 70, quando a teoria do controle abrangente dos conceitos jurídicos indeterminados atribuiu aos tribunais alemães um extenso poder de substituição das valorações efetuadas pela Administração, houve uma mudança na doutrina administrativista deste país, que começou a criticar a propriedade teórico-normativa e efetivo-funcional desse controle judicial abrangente”. Nas duas últimas décadas cresceu, prossegue o autor, “o número de autores que não aceitam mais a distinção rígida entre conceitos indeterminados e discricionariedade”.

A doutrina segundo a qual a aplicação, pela Administração, dos conceitos indeterminados, por envolver interpretação do direito, conduziria a uma única solução justa, parece ignorar que os parâmetros de preenchimento de tais conceitos devem ser buscados na realidade, inclusive na consideração das concepções políticas predominantes, concepções essas que variam conforme a atuação das forças sociais. Não é possível, leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, “extrair objetivamente uma solução unívoca para situação vertente, pois essa ‘providência ideal’ em muitas situações, é objetivamente incognoscível”.

Isso porque a linguagem, enquanto lógica simbólica, não soluciona os problemas axiológicos que são necessários ter em conta na interpretação e aplicação do Direito, a definição das palavras jurídicas será quase sempre um problema de estipulação: “Una definición no puede establecer el significado de um término (…) éstos, por muchas razones, serán posiblemente tan vagos y confusos como los términos com los cuales comenzáramos (…) todos los términos que realmente son necesitados son términos indefinidos.

A doutrina do amplo controle da aplicação de conceitos fluidos pela Administração surge, na Alemanha, como reação à amarga experiência do regime nazista. A partir da promulgação da Lei Fundamental de Bonn, de 1949, o reforço do princípio da reserva da lei e a garantia constitucional de uma plena proteção judicial contribuíram para que a doutrina e a jurisprudência, num primeiro momento, adotassem amplamente a linha de que o emprego de conceitos indeterminados numa hipótese legal não atribuía qualquer discricionariedade.

Pressionado por setores da Administração Pública, especialmente dos municípios, que se sentiram indevidamente “tutelados” na sua atuação funcional, o Tribunal Federal Administrativo, no fim dos anos 70, começou a reduzir, de forma cautelosa, a densidade do controle de suas decisões, reforçando a responsabilidade dos órgãos administrativos em detrimento de uma plena sindicância judicial. Esse “espaço de livre apreciação cresce na medida em que o procedimento administrativo já prevê a participação dos indivíduos ou grupos interessados e as decisões são tomadas por órgãos colegiados independentes, compostos paritariamente e dotados de alta especialização técnica”.

Em relação a qualquer termo legal, que apresenta uma incerteza conceitual, a interpretação cognoscitiva combina-se, necessariamente, com um ato volitivo do aplicador do texto jurídico, através do qual ele “cria Direito” para um caso concreto.

Como conclusão parcial deste primeiro tópico, temos que os regulamentos em geral, especialmente aqueles expedidos por agências autônomas, não podem ser encaixados “à força” na concepção tradicional de regulamentos de execução, como meros instrumentos de uniformização procedimental interna na Administração, incapazes de inovar na ordem jurídica, e controláveis somente em face da lei que constitui seu fundamento e da qual é mero instrumento de aplicação prática.

Isso porque a própria atividade de “concretização” da lei, é por si só, atividade construtiva do direito; não há interpretação pura/imparcial. Quando analisamos os micro-sistemas que gravitam em torno das Agências, observamos que as competências atribuídas a esses organismos se revestem de grande amplitude, esta decorrente tanto da imprecisão dos termos utilizados pela norma atributiva da competência (discricionariedade em sentido “fraco”), como pela expressa previsão de “juízos de oportunidade” (discricionariedade em sentido “forte”).

Não podemos olvidar também que a ideologia reinante no período das privatizações de grandes empresas estatais e criação das primeiras agências de serviços públicos visou “imunizar” as decisões das agências de interesses político-partidários, conferindo caráter eminentemente técnico à regulação, enquanto a fixação dos fins e objetivos genéricos a serem alcançados permaneceu na esfera de competência do Poder Executivo central.

III. Regulamento e inovação na ordem jurídica:

Introdução:

A discussão acerca da amplitude do poder regulamentar no Brasil, especialmente sobre a existência de regulamentos autônomos, já foi objeto de longas discussões, renovadas pela instalação das agências reguladoras.

Não nos cabe, neste ponto, trazer à balia as profundas discussões sobre o tema, sintetizadas com maestria por MARÇAL JUSTEN FILHO, mas salientar algumas inovações que os estudos sobre o poder normativo das agências autônomas vêm criando, sobre a possibilidade e legitimidade de inovação na ordem jurídica pela via regulamentar.

Nos Estados Unidos da América, a técnica utilizada para solucionar as insuficiências do direito legislado em relação a setores regulados consistiu em conferir, mediante autorização legislativa, competências normativas para complementar e particularizar as leis, limitando-se estas a definir parâmetros genéricos para a atuação do Executivo.

Na França, optou-se por prever, na própria Constituição, competência para disciplinar um rol de matérias, sem participação ou com participação limitada do Legislativo. O Executivo passou a editar regulamentos autônomos ou independentes.

A disciplina das matérias estranhas ao rol submetido pelo constituinte francês ao domínio da lei é integralmente confiada ao Presidente da Reública, por meio de regulamentos autônomos, vedando-se qualquer ingerência do Poder Legislativo quanto aos regulamentos assim editados, pois qualquer invasão de competência é tida como inconstitucional, podendo assim ser declarada pelo Conselho Constitucional.

A atuação inovadora da Administração, através do regulamento, reflete uma necessidade relacionada à própria idéia de produção normativa; sendo o regulamento espécie do gênero “norma jurídica”, negar qualquer inovação seria tornar o poder regulamentar instituto sem utilidade.

“È inquestionável que o conflito entre lei e regulamento resolve-se a favor daquela. Portanto, uma determinação contra legem contida num regulamento é inválida. Logo, o regulamento não pode conter inovações incompatíveis com a lei”, e essa parece ser a melhor exegese acerca do art. 84, IV da CF, que determina incumbir ao Presidente da República a competência para editar decretos e regulamentos para fiel execução das leis. “O que se busca é a perfeita e integral aplicação da norma produzida legislativamente, o que importa a necessidade de adição ao conteúdo normativo até então existente.” (grifo nosso).

No entanto, a amplitude dessa faculdade depende diretamente do modo pelo qual a lei haja regulado determinada matéria. A lei poderá optar por uma disciplina completa e exaustiva, em que todos os pressupostos de incidência e todos os ângulos do comando normativo estão previamente determinados, de modo abstrato, através da lei, porém pode a lei disciplinar certa matéria de modo a conferir maior autonomia ao seu aplicador. Atribui-se ao aplicador uma competência discricionária para identificar os pressupostos ou determinar os comandos normativos para o caso concreto.

Analisamos, em tópicos anteriores, a discricionariedade que surge ao aplicador em virtude da utilização, pela lei, de conceitos fluidos, fenômeno que decorre da própria insuficiência da linguagem para apreender a realidade regulada, cada vez mais complexa e impregnada de aspectos técnicos e econômicos, aplicando-se inclusive aos próprios regulamentos. Tal fenômeno pode ser traduzido como discricionariedade “em sentido fraco”, ou “discricionariedade instrumental”

Na chamada discricionariedade “em sentido forte”, não há uma pauta material que condicione a decisão, mas a apenas a indicação do sujeito competente. A discricionariedade instrumental envolve apenas a possibilidade de escolher ou decidir dentro de uma margem de manobra como conseqüência de indeterminações, vaguezas ou outro tipo de imperfeição da regulação jurídica. A discricionariedade forte legitima a Administração para a adoção e desenvolvimento de uma determinada política de atuação, possibilitando-lhe a escolha de alternativas dentro do marco do ordenamento jurídico.

Tal discricionariedade ‘forte’ se faz presente nos chamados regulamentos autorizados, nos quais o Poder Executivo é investido de função normativa por autoridade legislativa.

Apesar da aversão da doutrina tradicional a essa espécie de regulamento, devemos reconhecer com García de Enterría e Ramón Fernández apud SÉRGIO VARELLA BRUNA, “não há, com efeito, nenhuma possibilidade de governar uma sociedade como a atual, cujas inter-relações são cada vez mais complexas e sutis, sem uma administração que assegure a manutenção de suas hipóteses básicas comuns e que disponha para isso de uma gama de poderes, um dos quais há de ser, sem dúvida, segundo experiência universal (…) a potestade regulamentaria. (…) A complexidade técnica de muitos desses produtos normativos tampouco faria possível atribuir sua aprovação a um Parlamento de composição política, sem hábitos, conhecimentos, experiências, arquivos ou capacidade técnica. Agrade ou desagrade, sejam ou não grandes os riscos de uma normação secundária desse caráter, a potestade regulamentaria da Administração é hoje absolutamente imprescindível”.

A lei não é mais uma afirmação carregada de sacralidade, mas, pela exigência de adaptação a quadro social em constante mudança, rebaixa-se a um mero expediente técnico, freqüentemente com intenções de solução dum esquema de interesses concretos. À medida que a diferenciação social aumenta, crescerá proporcionalmente o caudal de informação e comunicação. Cada vez mais se torna necessário estabelecer um equilíbrio entre a definitividade do modelo de acção e a flexibilidade no desenho do modelo de adaptação às exigências mutáveis da situação. É isto que se consegue num sistema estadual, estabelecendo uma aparelhagem destinada a gerar legitimidade (Política), através dum processo de trabalho das informações. Ao seu lado estruturam-se processos de racionalidade diferentes, uma Administração, um sistema de uso ou execução da legitimidade.

A preocupação dos que se opõem às “delegações legislativas” parece resumir-se à dimensão da margem de liberdade que se tolera seja conferida ao Executivo para criar o Direito, na medida em que o aplica. No dizer de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, ao se referir à necessidade da lei prever os contornos dos direitos e obrigações que institua, “mesmo que não o faça com precisão capilar, a lei tem que caracterizar o direito ou a obrigação, limitação, restrição que nela se contemple, tanto como o enunciado dos pressupostos para sua irrupção e os elementos de identificação dos destinatários da regra, de sorte que, ao menos, a compostura básica, os critérios para seu reconhecimento estejam de antemão fornecidos (…) Assim, o espaço regulamentar conter-se-á dentro destas balizas professadamente anunciadas na lei (…) Na delegação feita indiretamente justamente faltam estas especificações, pois se pretende liberar o Executivo para compô-las, ficando-lhe concedido como que um cheque em branco a ser preenchido por via regulamentar (…).

Jurisprudência da Suprema Corte norte-americana:

Apartir dos casos Panamá Refining Company v. Ryan e A.L.A vs Schechter Poultry Corp. v. United States, a delegation doctrine passou a assumir os contornos atuais, tendo a Suprema Corte assumido uma posição rigorosa em relação às delegações legislativas; no entanto em Yakus v. United states foi afirmada a admissibilidade de um certo grau de generalidade nas diretrizes estabelecidas na lei para o exercício das funções reguladas, restringindo-se as hipóteses de inconstitucionalidade aos casos em que a fluidez dessas disposições fosse tal que impedisse aferir se o comando legal foi ou não atendido pelo órgão executor. No caso Yakus consagrou-se o entendimento de que a delegação não deve ser considerada inconstitucional sempre que a lei ofereça meios para que se exerça o controle judicial dos atos com base nela praticados, ou seja, quando as diretrizes fixadas pelo legislador, embora contendo certo grau de imprecisão, permitam ao Judiciário investigar se foram devidamente atendidos os fins legais visados quando da atribuição da competência normativa.

Em Skinner v. Mid-America Pipeline.Co e Mistretta v. United
States foi reafirmada a necessidade da existência de diretrizes mínimas para pautar a ação administrativa, devendo ser tidas por inconstitucionais as disposições legais que, por sua amplitude e imprecisão, permitam ao administrador escolher livremente entre decisões que envolvam interesses sociais relevantes.

Supremo Tribunal Federal—ADIN 1.668/DF:

No Brasil, o supremo Tribunal Federal, apreciando pedido de medida cautela na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.° 1.668/DF, deu aos arts. 19, IV e X e 22, II da L. 9.472, de 16 de Julho de 1997 (Lei Geral de Telecomunicações), interpretação conforme à Constituição restringindo a amplitude que o texto legal conferia à ANATEL quanto à normatização dos serviços de telecomunicações.

Os dispositivos objeto de interpretação conforme estabeleçem:

Art.19. À agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e especialmente:

(…)

IV- expedir normas quanto à outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público;

(…)

X- expedir normas sobre prestação de serviços de telecomunicações no regime privado

(…)

Art. 22. Compete ao Conselho Diretor:

(…)

II- aprovar normas próprias de licitação e contratação

Entendeu o Tribunal que em relação aos incisos do art.19, a competência da ANATEL subordina-se aos preceitos legais e regulamentares que regem a outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações, no regime público e privado. Quanto ao inciso II do art.22, o entendimento provisório do STF é o de que a competência do Conselho Diretor fica submetido às normas gerais e específicas de licitação e contratação previstas nas respectivas leis de regência.

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