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quarta-feira, outubro 2, 2024

A Efetividade da Lei Maria da Penha

O presente trabalho tem como objeto de estudo a efetividade da Lei Maria da Penha na defesa dos direitos da mulher vítima de violência doméstica e familiar, tendo como objetivo alimentar reflexões e análises acerca da temática. Para tanto, primeiramente discute-se as representações sociais, entendidas como os valores, normas, códigos e culturas produzidos socialmente, os quais delinearam construções sociais baseadas na diferença de corpos. É nessa acepção que se sustenta a idéia de que seres de corpos diferentes deve ser tratado de formas diferentes, atreladas a sistemas interdependentes, sendo eles: o patriarcalismo e o capitalismo, a fim de garantir o controle e a ordem social centrada na supremacia masculina. Dessa forma, tal economia política provocou o surgimento das manifestações sociais, especialmente femininas tidas como crítica teórica, bem como movimento social para romper com o pensamento hegemônico em prol da emancipação da mulher.

No segundo momento, busca-se apresentar um dos resultados da luta do movimento feminista brasileiro relacionado à problemática da violência doméstica e familiar contra a mulher, conquistando a Lei 11.340/2006, intitulada Lei Maria da Penha, para estabelecer uma cultura baseada na cidadania feminina e, sobretudo na igualdade de gênero.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO
2 AS REPRESENTAÇÕES E POSICIONAMENTO DA MULHER NA SOCIEDADE
2.1 HISTORICAMENTE, A DIFERENÇA ENTRE OS SEXOS VEM SE TRANSFORMANDO EM DESIGUALDADE?
2.2 O FEMINISMO BRASILEIRO E A SUA ARTICULAÇÃO COM OUTROS MOVIMENTOS SOCIAIS NA LUTA POR DIREITOS
3 O ADVENTO DA LEI MARIA DA PENHA PARA A DEFESA DAS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR E A SUA EFETIVIDADE EM SALVADOR
3.1 A LEI 9.099/1995 E OS AVANÇOS DA LEI MARIA DA PENHA
3.2 MARIA DA PENHA: A REALIDADE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER EM SALVADOR

1 INTRODUÇÃO

O confronto com a realidade da violência doméstica e familiar contra a mulher, atuando como estagiária curricular do Serviço Social inserido na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM) em Salvador contribuiu, substancialmente, com momentos de especulações e descobertas acerca dessa problemática, sobretudo referente à efetividade da Lei 11.340/2006, denominada “Lei Maria da Penha para a defesa dos diretos da mulher vítima de violência doméstica e familiar”, escolhido como tema deste estudo com o intuito de apreender as mudanças ocorridas na legislação brasileira, incorporando direitos significativos a esta categoria, ou seja, medidas para a redução dos índices de tais crimes, a saber: medidas preventivas, medidas assistenciais, atendimento especial pelas autoridades policiais e medidas protetivas de urgência, tendo como objetivo assegurar à mulher o direito de viver sem violência, além de contribuir para socialização baseada na igualdade de gênero.

Nessa órbita, torna-se proeminente destacar a efetividade da Lei Maria da Penha, bem como os principais fatores que dificultam a sua operacionalização.

Subjacente a este, soma-se a experiência, enquanto mulher, que em contato direto com a complexa e triste realidade das mulheres vítimas de violência atendidas na instituição supramencionada, proporcionou, um pouco mais, a aproximação com a temática, o que permitiu formular a problema central desta pesquisa, sendo ela: A Lei Maria da Penha vem diminuído os índices de violência doméstica e familiar contra a mulher em Salvador?

Mediante a esta problemática, a discussão do presente estudo apresenta-se divida em dois capítulos. O primeiro refere-se às representações e posicionamentos da mulher na sociedade, em que as determinações do processo histórico que envolvem um conjunto de idéias, valores, sentimentos, códigos, culturas e símbolos existentes na construção/desconstrução/reconstrução das relações sociais muitas vezes em detrimento das mulheres, articulado ao sistema patriarcal, entendido como um conjunto dinâmico em que prevalece exercício do poder do sexo masculino sobre o feminino, assumindo particularidades na medida em que se funde ao sistema capitalista e assim, tornam-se face de uma mesma moeda para se instituírem legítimos e garantir o funcionamento uniforme da sociedade.

E a última categoria analítica desse capítulo, concerne sobre as lutas e conquistas dos movimentos sociais, em especial do movimento feminista brasileiro pelo exercício da cidadania, pela participação social e política, além de pontuar o papel do Estado enquanto elemento normatizador que ora afirma o comportamento de sexo, o que tende a reforçar a sujeição de mulheres, ora cria possibilidades para a luta, além de apreender a questão da violência contra a mulher como foco atualmente.

O segundo capítulo pontua o advento da Lei Maria da Penha para a defesa das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar e a sua efetividade em Salvador, discutindo os avanços da lei mencionada – articulada à leitura jurídica -, como reconhecimento da luta do movimento feminista e de mulheres, comparando-a com a distorcida Lei 9.099/1995 que criou os Juizados Especiais Criminais (JECRIMs). Considera também a história de Maria da Penha Fernandes, a qual intitulou a Lei, bem como conversões internacionais, plano e tratada.

Ainda neste capítulo, expõe-se a metodologia de análise, a qual utiliza a pesquisa documental (fonte primária e secundária), sendo examinados relatórios e publicações de instituições relacionadas à temática; a bibliográfica; a descritiva; e a pesquisa de campo, sendo a última demandar a elaboração de instrumentos para a coleta de dados, como entrevistas semi-estruturada, estruturada. Os dados coletados serão considerados a luz da pesquisa qualitativa, em que as respostas discursivas serão categorizadas, e pesquisa quantitativa, fazendo uso de tabelas e gráficos, isto é, elaboração de indicadores sociais de caráter referencial para ilustrar a investigação da realidade.

Torna-se valido salientar os mecanismos de captação dos discursos verbalizados e não verbalizados que são imbuídos de processos sociais, ou seja, elementos correlacionados ao universo simbólico, as experiências humanas; as representações apreendidas na convivência em sociedade que são postas de forma fragmentada, durante a entrevista, devendo ser observados e sistematizados para posterior construção.

O desenvolvimento das categorias de análise baseia-se em autores como Saffioti, (2004, 1976), Muraro (2004), Lins (1997), Scott (1991, 1989), Costa (2005, 2008), dentro outros que propiciaram a apreensão das diversas determinações do processo histórico de subordinação da mulher, enumerando equívocos e indicando obstáculos.

A nível de consideração final, são levantados alguns desafios que envolvem esta problemática, com o desejo de ampliar a discussão e politizar as práticas sociais.

Embora exista inegável aumento na produção intelectual acerca do tema, estes ainda são embrionários, pois as abordagens, por vezes, são de caráter secundário, implicando na apreensão do fenômeno de forma acabada, não considerando os fatores históricos, isto é, processo dinâmico, o qual contribui para o desvelamento e a sistematização do mesmo em sua totalidade.

Portanto, o presente trabalho pretende-se resgatar uma leitura histórica, relevando a dinamicidade da sociedade e a construção coletiva de conhecimentos acerca do papel da mulher, bem como os avanços imprimidos pelo movimento feminista, assuntos que estão na ordem da atualidade, ilustrando a importância e a necessidade de se continua aprofundando estudos sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher, principalmente, na órbita da construção da igualdade de gênero, sem exploração ou dominação de qualquer espécie.

2 REPRESENTAÇÕES E POSICONAMENTO DA MULHER NA SOCIEDADE

No primeiro momento deste estudo são realizadas algumas considerações acerca das atribuições direcionadas à mulher na sociedade, abordando a dinâmica societária e sua articulação com os processos, político, econômico, social e cultural.

Nesta perspectiva, destacam-se eixos que balizam esta compreensão relativa à assimilação de normas, valores e comportamentos que preconizam o estabelecimento da diferença entre seres humanos, implicando na supremacia de um sobre o outro, tecida no cotidiano de suas vidas, como afirma Dias (2003, p. 17)

“Isto significa dizer que se trata de um fenômeno concretizado nas suas ações e relações diárias dos seres humanos nas suas investidas para da conta da sobrevivência e da construção da sociedade. E, nesse intento, revela crenças e valores que, subjacentes, direcionam o teor, a importância e a magnitude, daquilo que é simbolizado, assimilado e reproduzido nas relações sociais de determinada cultura, em determinada sociedade, num determinado tempo”.

Primeiramente pontua-se a sociedade da coleta e da caça, em que as mulheres ocupavam um lugar central na comunidade, uma vez que se imaginava que esta era uma Deusa, já obtendo o papel de preservar e cuidar dos filhos e de todo o grupo.

Outro fato importante a ser alencado nessa premissa é que o homem, neste período não tinha o conhecimento da sua participação na fecundidade, que ao ser descoberto se tornou motivo de discriminação e desigualdade.

Com o advento da razão moderna, o homem desenvolveu o poder cultural, tendo em vista que o poder biológico era uma característica feminina. Assim, a mitologia cristã da criação do mundo por um Deus masculino concretiza a construção eminentemente soberba para proporcionar a plena dominação do macho, fundando-se por meio de um sistema chamado de patriarcal baseada na figura do pai autoritário, provedor do lar e chefe da família e, sobretudo, tendo como aliado o sistema econômico capitalista que contribuiu, oferecendo as condições necessárias para que este perdure até os tempos atuais.

O segundo eixo, mencionar o mundo regido pela ordem capitalista, em meio ao século XX, passando por um período de crise que provocou as duas grandes guerras, recrutando os homens para participar. Dessa maneira, as mulheres para se manterem e sustentarem a família iniciou a jornada dupla de trabalho, onde encontraram uma vida menos submissa.

De tal modo, surge o movimento feminista com a finalidade de se organizar politicamente em prol da lutas para obter participação política e atualmente defendem diversas bandeiras, sendo que todas com um objetivo único: a igualdade de gênero, assunto que será compreendido mais a frente.

A abordagem histórica sobre humanidade possui um peso importante no estudo especifico sobre a mulher, uma vez que possibilita ama análise da mesma na contemporaneidade, principalmente a narrativa cristianiza que inaugurou o sistema patriarcal, definindo concepções de mulher que permanece direcionando a vida atualmente.

2.1 HISTORICAMENTE, A DIFERENÇA ENTRE OS SEXOS VEM SE TRANSFORMANDO EM DESIGUALDADE?

Para compreender o papel da mulher na sociedade aborda-se a origem da espécie humana por meio de vestígios como a arte e os mitos produzidos pelos povos antigos, considerando que nessa época não havia registros de documentos escritos.

Os primeiros tempos foram divididos em dois períodos, denominados de antiga idade da pedra e idade dos metais. A primeira subdivide-se em período paleolítico que data de 500000 a 10000 a C. e período neolítico que iniciou por volta do ano 3000 a. C., e o último é conhecido como a história das nações civilizadas que se inicia no final do período neolítico . (LINS, 2000)

Em consonância com Lins (2000), no período paleolítico, os primeiros homo sapiens, eram considerados povos nômades, isto é, para sobreviverem migravam de um lugar a outro em busca de regiões férteis que lhes proporcionassem alimentos para a subsistência de todo o grupo, tendo o auxílio da caça, da pesca e da coleta. Nessas sociedades homens e mulheres realizavam tais atividades em parceria e ciclicamente.

De acordo com Muraro (2002), nesse período as mulheres trabalhavam mais que os homens, pois na medida em que ficavam grávidas desenvolviam o desejo de proteger e alimentar os seus filhos, então, partiam em busca de alimentos para sustentá-los.

Dessa maneira, além das funções de caça e pescar, a mulher incorporou as atividades da casa e das crianças, bem como da comunidade. Quanto aos homens a prática de caça e pesca era apenas para si, gastando menos tempo. O que implica em pensar que a divisão sexual do trabalho, que será visto nas sociedades mais avanças, tenha iniciado, nesse período devido à aspiração do homem em definir suas funções como as mulheres possuíam através da maternidade.

Assim, as atividades femininas eram mais valorizadas, uma vez que além de caçar, pescar e coletar alimentos preparava-os para todo o grupo. Logo, trabalhavam mais que os homens que não desenvolviam atividades para o coletivo, obtendo mais tempo livre do que as mulheres. Contudo, enfatiza-se que nessa ordem social, não existia vestígios de dominação entre ambos.

Nessa organização político-social o matrimônio entre homem e mulher era desconhecido, sendo executado por grupo em que cada mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem a todas as mulheres, e as crianças possuíam vários pais e mães. A participação na procriação de outros seres humanos também era ignorada pelos homens, ou seja, para eles a fertilidade era algo exclusivo da mulher e devido a isso passaram a cultua – lá, acreditando que possuíam poderes de governar a vida e a morte.

Os homens não tinham motivo para se sentir superior ou exercer qualquer tipo de opressão sobre as mulheres. Continuavam ignorando sua participação na procriação e supunham que a vida pré-natal das crianças começava nas águas, nas pedras, nas árvores ou nas grutas, no coração da terra-mãe, antes de serem introduzidas por um sopro no ventre de sua mãe humana. (LINS, 2000, p.20)

Dessa forma, a autora acrescenta, afirmando que estatuetas femininas encontradas na Europa demonstraram uma forma de religião em que a mulher ocupava um lugar privilegiado, “(…) manifestações do culto a uma deusa-mãe como fonte regeneradora de todas as formas de vida”, como exemplo o mito grego Gaia. Gaia é a Terra e teria surgido do vazio ou do caos a partir do qual gerou o céu e o mar. Depois gerou os poderosos titãs. Acreditava-se que a mulher era uma divindade que governava a vida dos povos.

Segundo Muraro (2002) nas sociedades primitivas, pode-se teorizar que não havia chefia, liderança tampouco matriarcado. Ou seja, não existia uma sociedade governada por mulheres, mas sim uma valorização da linhagem materna (matrilinear), o que posteriormente se transformara em patriarcal, onde prevalece a linhagem masculina, exercendo um poder e opressão de modo autoritário. No entanto, mesmo as mulheres apresentando um poder superior aos dos homens, não se encontrou nenhum sinal de dominação e submissão nas relações dos mesmos.

No final do período paleolítico, em virtude das transformações climáticas e conseqüentemente vegetais, as populações formaram as primeiras aldeias, utilizando o plantio como um novo meio de sobrevivência, uma vez que se tornava cada vez mais difícil transportar alimentos na forma de vida anterior. Dessa maneira, deu-se início a revolução neolítica, marcada pela mudança dos povos de seres nômades para seres sedentários, em outras palavras passaram a habitar locais fixos, se distanciando progressivamente das atividades de caça, pesca e coleta, estabelecendo sociedades agrícola e pastoril .

Nessa passagem as mulheres tiveram papel crucial, pois atribui a elas o desenvolvimento das primeiras atividades horticultoras, o qual utilizava instrumentos simples e com métodos primitivos, como plantar os grãos com as mãos, a fim de que pudesse alimentar uma quantidade maior de pessoa, já que a coleta, embora admitisse um território maior à alimentação era para poucos indivíduos. Após algum tempo os homens passaram a adotar e aprimorar essa forma de atividade.

Este nível de produtividade evoluiu, dando origem a comunidades mais amplas, contribuindo para o aparecimento das primeiras cidades, as cidades-estados, os primeiros estados e, por conseguinte os grandes impérios da antiguidade, tais como: Babilônia, Egito, Grécia, Roma e China. Assim, nasce a chamada idade dos metais, caracterizada pela revolução agrícola que proporcionou o aprimoramento das técnicas do cultivo de alimentos, gerando os excedentes que consiste nos alimentos trocados após o atendimento das necessidades de sobrevivências dos grupos, sendo a classe dominante que vivia da venda dos mesmos extraídos da terra e os escravizados que era população, tida como a classe camponesa, evidenciando que este tipo de sociedade baseou-se em uma estrutura desigual que mais tarde se transformaria em uma sociedade de classes.

A relação com a natureza nesse dado momento, contribuiu para o surgimento do sentimento de transcendência/superioridade, isto é, o descobrimento do homem sobre o seu papel na procriação. Na medida em que se tornaram povos sedentários, os homens passaram a participar ativamente das atividades realizadas pelas mulheres. Parafraseando Lins, a domesticação dos animais articulada ao novo modo de sobrevivência colaborou para a seguinte associação dos homens:

[…] as ovelhas segregadas não geravam cordeiros nem produziam leite, porém, num intervalo de tempo constante, após o carneiro cobrir a ovelha, nasciam filhotes. A contribuição do macho para a procriação foi enfim descoberta, mas não apenas isso. Os homens perceberam que o carneiro podia emprenhar mais de cinqüenta ovelhas! Com o poder similar a esse, o que o homem não conseguiria fazer? (2000, p.22)

Lins (2000) destaca também o princípio fálico, isto é, o culto ao pênis estimulado através do paralelo entre o “(…) arado com a força de arar a terra e prepará-la para a semeadura (…)” e o próprio pênis. Dessa maneira o homem passa a se considerar um ser preponderante, o fertilizador da terra, pois o sêmen implantado no útero da mulher é que gera a vida e a mulher, apenas, tinha o papel de propiciar a germinação e o crescimento da vida até o momento de vir ao mundo.

Após essa descoberta a relação entre homens e mulheres se transformou, pois os homens ao acreditarem que a fertilidade e a fecundidade eram privilégio exclusivamente das mulheres e que esta era fruto da sagrada natureza, comprovaram que para fertilizar a mesma devia-se implantar uma substância contida em si, isto é, o sêmen. A partir de então, os homens passaram a adquirir comportamento autoritário, discriminatório e arrogante com as mulheres, em virtude do símbolo do poder e da dominação que carrega, provocando mudanças na estrutura social, bem como construindo novos sistemas religiosos, morais e legais.

Concomitante ao aumento de riquezas o homem foi se tornando cada vez mais importante que a mulher e o seu poder sobre ela aumentavam na mesma proporção, ampliando o seu poder para o ambiente doméstico. “As colônias agrícolas foram se expandindo e era necessário mais gente para trabalhar. Quanto mais filhos, melhor. As mulheres, fornecedoras da futura mão de obra, passaram a ser encaradas como objetos e tornaram-se mercadorias preciosas.” (Id., 2000, p.23)

A idéia de casal surge vinculada a procriação, uma vez que requer a participação de ambos os sexos no mesmo, sendo a mulheres reduzidas ao âmbito privado a fim de fornecer filhos para contribuir na expansão econômica. Assim, no que tange a liberdade sexual, a mulher sofreu várias restrições, instalando-se dessa maneira, o controle sobre a fecundidade da mesma ao passo que o homem se assemelha, incorporando a concepção de que se o carneiro emprenha cinqüenta ovelhas, logo ele também pode perpetrar o mesmo ato.

Dessa forma, a relação entre mãe e filho não apresentava a mesma ligação como na estrutura social paleolítica e a Deusa-Mãe, aos poucos foi sendo substituída por divindades masculinas, como expõe Lins (2000, p. 24-25)

As novas lendas mitológicas acompanham as novas estruturas mentais dessa época de transição. Entre os celtas, o Sol, antes uma potência feminina, torna-se Deus-Sol, substituindo a deusa primitiva, relegada à categoria de astro frio e estéril, a Lua. Com a Deusa-Porca ou com a Deusa- Javali, lendas celtas, se dá o mesmo.

As transformações sociais, ao logo dessas civilizações, criaram códigos, culturas, formas de sobrevivência, religião, economia, bem como a diferença entre os sexos que são condições sine quo non para que os indivíduos possam desenvolver ações e relações diárias para sobreviver e construir a sociedade.

Portanto, Dias (2003, p. 17) afirma que para “(…) cada cultura, cada etnia, cada comunidade, cada grupo estabeleceu normas para lidar com os seres humanos do sexo masculino e do sexo feminino destinando-lhes atribuições às quais considerava próprias à natureza de cada um”.

A conquista do homem pelo excedente, pela construção de superioridade sobre a mulher e pela propriedade foi pouco a pouco transparecendo à supremacia masculina e uma competitividade, que pode ser visto nos mitos da criação do mundo pelas religiões monoteístas (cristianismo, islamismo, budismo, judaísmo) que ao mesmo tempo reflete a situação social e econômica do momento. Sendo assim, o patriarcado se estabelece baseado na crença judaico-cristã, que de acordo com Lins (2000) passar a existir primeiramente na democracia ateniense em 3100 a. C. e num processo gradual alcança a civilização ocidental, perdurando até 600 a. C.

Sob essa perspectiva Saffioti (2004) conceitua a dominação patriarcal em uma organização social fundamentada no poder do pai, sendo a descendência e o parentesco nesta ordem social seguir a linhagem masculina, apoiando-se no controle da fecundidade da mulher por meio de sujeições físicas e mentais, restringindo a sexualidade e assim dirigindo-as a tarefas específicas. Esta ideologia separou a humanidade em duas metades, ou melhor, separou o homem e a mulher, provocando conseqüências irreparáveis que influenciaram na relação dos mesmos e em seguida transformaram valores, instituições, culturas e etc.

A fidelidade feminina nesta ordem social, em relação à mulher, passou a ser vigiada, abrindo espaço para a construção de estratégias para garantir a legitimidade dos filhos e conseqüentemente a herança, a exemplo dos confinamentos em que a mulher era mantida, sem contato, principalmente com outros homens, a extirpação do clitóris para exaurir os desejos sexuais ou como já houve no Brasil, em que as mulheres eram espancadas e/ou mortas por maridos ciumentos, tendo por base leis penais. Aos homens foi concedido o direito a infidelidade, tendo em vista que não acarretaria em problemas na linhagem. Segundo Lins (2000, p. 26) “Para garantir a fidelidade da mulher e, por conseguinte, a paternidade dos filhos, ela passa a ser propriedade do homem. Puni-la severamente ou mesmo matá-la é considerado simplesmente o exercício de um direito.”

Respectivamente a religião, o cristianismo em seu princípio histórico enfatiza a crença em um Deus masculino que cria um homem, denominado Adão e ao retirar uma de suas costelas molda Eva, a mulher, como pode ser encontrado na bíblia, um documento literário da cultura religiosa cristã.

Então Javé Deus modelou o homem com argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro e o homem tornou-se um ser vivente. Javé Deus tomou o homem e o colocou no Jardim de Éden (…) Mas o homem não encontrou uma auxiliar que lhe fosse semelhante. Então Javé Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou então uma costela do homem e no lugar fez crescer carne (…) modelou uma mulher, e apresentou-a para o homem. (Gn 2,1)

Entende-se, portanto, que Adão é pai e mãe de Eva, a qual, nessa cultura, se encontra distante do divino, enquanto Adão torna-se superior, criado a imagem e semelhança do Deus criador, decretando assim a inferioridade da mulher sob o homem e sua subserviência ao mesmo. “Desse momento em diante, é muito claro o papel que a mulher deverá cumprir na sua relação com o homem: agradecida, por ele ter lhe dado a vida; dependente, por ter nascido dele; submissa, por ser inferir.” (Passin, 2000, p. 30).

Eva, no mito da origem do mundo é culpada por todos os males que aconteceu no paraíso – Jardim de Éden -, uma vez que teria sido sua fraqueza que provocou a expulsão de ambos do local, considerado pelo cristianismo o caminho do pecado original e mortal e da degradação, o qual levou a condição humana ao sofrimento.

A mulher representava a porta do inferno, a mãe de todos os males humanos. Devia envergonhar-se da própria idéia de ser mulher. Devia viver em penitência continua, por causa das maldições que havia atraído sobre o mundo. Devia envergonhar-se de sua roupa, por ser a recordação de sua queda. Devia envergonhar-se especialmente de sua beleza, porquanto é o instrumento mais potente do demônio. (Passin, 2000, p. 55)

Dando continuidade, as diversas doutrinas desenvolvidas pelo cristianismo, como o princípio da ressurreição, o qual aborda sobre os corpos dos justos que seriam ressuscitados por Deus numa nova criação, a criação de um mundo hierarquizado, existindo rivais de bons e maus poderes (anjos e demônios), fundamentando-se na crença em outro mundo, que abarca a idéia de juízo final, além de realçar que os indivíduos ressuscitados são superiores àqueles que, por ventura permanecem sob o domínio do corpo. Logo, venera-se a superioridade da alma sobre o corpo, pois, Deus era um ser ressuscitado e invisível (não era permitida a reprodução de sua imagem).

Na medida em que Deus se desprende de uma forma humana e se torna invisível, denota o afastamento também da sexualidade e isso passa a ser considerado o ideal de perfeição ética da religião. A restrição a liberdade sexual é, então, instituída.

Nos séculos seguintes a uma intensa condenação da Igreja pelo sexo, produzindo ideologias com o intuito de superar a “prática carnal”, reforçado nos escritos bíblicos do cristianismo em que a mulher deveria ser subordinada ao marido e dar à luz na dor, pois Deus tinha iluminado o primeiro homem e a primeira mulher com o inocente instinto físico, como propósito de continuar a espécie, mas a luxuria o transformou em algo vergonhoso. Sobretudo a esperança de salvação para a humanidade é a rejeição ao sexo – celibato – para alcançar o estado de graça que existiu no Jardim de Éden e então se eximir da culpa herdada de Adão e Eva. (LINS, 2000)

Nesse ponto de vista a Igreja anunciou horror aos prazeres do corpo, transformando o sexo em pecado. As relações sexuais dentro do matrimônio também se tornaram pecado, vista como à fraqueza humana, se por um acaso não houvesse a perspectiva de gerar gravidez, uma vez que na interpretação cristã a sexualidade inserida entre o casal era exclusivamente para a procriação; um bem que estava vinculado a um mal, o prazer. Sendo assim, foram elaboradas diversas proibições, como a interdição de copular nas vésperas dos dias santos, antes da comunhão, durante o período de mestruação, etc. (RUFFIÉ, apud, LINS, 2000)

A figura da mãe ressurge no cristianismo com o culto a Virgem Maria cuja característica se manifesta através do sofrimento, sacrifício e da subserviência ao filho, não alterado a imagem da mulher, apesar de Maria simbolizar a bondade, a representação difundida continuou a ser reprimida, humilhada e violentada.

Todos estes mitos que pouco a pouco vão degradando a mulher são muito importantes politicamente, pois não só introduzem a dominação masculina como a tornam benéfica e necessária para todos. Além disso, tornando a mulher um ser fraco ou venenoso, impõem-lhe um caráter estrutural malévolo que ideologicamente torna também benéfica para todos a sua submissão. E assim as novas relações sociais, políticas e econômicas passam a ser sacralizadas, e sua transgressão passa ser considerada a origem de todo pecado e de todo mal. (MURARO, 2002, p. 37)

Segundo Muraro (2002), as ideologias relacionadas ao mito de Adão e Eva e a ética cristã fundada na privação ao sexo contribuíram para degradar e escravizar a posição da mulher na sociedade, modelando e aterrorizando as gerações seguintes.

Cumpre elucidar, de acordo com Castells (2000) que o patriarcado não pode ser compreendido independente do sistema capitalista; os dois são duas faces de um mesmo sistema produtivo, portanto, devem ser analisados como formas integradas já que o fenômeno da opressão e discriminação contra a mulher foi sendo construído no decorrer da história dos seres humanos. E, nesse intento, revela crenças e valores que configuram uma importância nas relações sociais, sendo assimilado e reproduzido em determinadas sociedades, culturas e tempos.

[…] o capitalismo (e os sistemas que o antecederam) necessita da ordem e do controle estabelecidos pela supremacia masculina, resultante do sistema hierárquico sexual, como forma de garantir o funcionamento uniforme da sociedade […] para o controle político, enquanto sistema político, não pode reduzir-se à sua estrutura econômica; enquanto que o capitalismo como sistema econômico de classe, impulsionado pela busca de riquezas, alimenta a ordem patriarcal. Juntos formam a economia político da sociedade”. (EINSENSTEIN apud CASTELLS, 2000, p.36)

Esse sistema inter-relacional tem seu início histórico a partir do século XIII na Inglaterra e no século XIX nos Estados Unidos, com o novo capitalismo industrial regido pela força imperativa do acúmulo de capital, as relações sociais assumem características influenciadas pelo mesmo, que as torna necessária ao desenvolvimento do sistema, a exemplo disso destaca-se as relações familiares, tidas como a primeira instituição social em que o ser humano se insere em que passa a refletir, nitidamente, as transformações na estrutura social, perdendo seu caráter inicial de unidade produtora dos meios necessários de subsistência para seus membros, atendo-se agora, para a produtividade das fábricas. O homem que representava o chefe da família passa a vender sua força de trabalho no mercado, enquanto a mulher começa a ser requisitada para trabalhar também na produção fabril.

Apesar das mudanças ocorridas na família, a magnitude deste se constituiu um reforço na opressão da mulher por meio dos seus papéis, os quais se destacam a reprodução, sexualidade e socialização das crianças. No que tange a reprodução, a mulher completou o papel do homem na produção na medida em que a maternidade se converteu em necessidade para a reprodução da força de trabalho, disseminando que a função da mãe é essência da vocação natural da mulher e assim a mesma foi sendo excluída da produção social. Em relação à sexualidade, por meio do qual a mulher foi mais oprimida, atuava como propriedade do homem na relação familiar. E, por fim, à socialização das crianças, nesse aspecto que se gestou a divisão dos papéis entre homens e mulheres, haja vista que a aptidão para a socialização considerava a condição fisiológica da mulher (produção do leite materno). “O destino biológico da mulher se converte em vocação cultural no papel como socializadora”. (CASTELLS, 2000)

A condição de inferioridade, a qual a mulher já era submetida ao longo da história humana se tornou um importante instrumento nas mãos da burguesia, em prol de um único fim, o acúmulo de riqueza. Assim passou a utilizar o discurso competente da submissão e a passividade relacionada ao âmbito doméstico para definir pagamento de salários inferiores aos dos homens, além de jornadas de trabalho excessivas e insalubridade, negando-lhes o direito a sindicalização, a proteção das leis trabalhistas e o direito a cidadania. Sobre esse aspecto Saffioti considera:

O caráter submisso que há milênios as sociedades vinham moldando nas mulheres facilitava enormemente a elevação do montante de seu trabalho excedente. A consciência que os homens da burguesia tinham de situação da mulher representava também um dado importante da colocação em prática de tal sistema de exploração. […] em seus teares mecânicos empregava exclusivamente mulheres, dando preferência às casadas e, sobretudo, as mulheres casadas que tinham em casa uma família que vivia ou dependia de seu salário, pois estas eram muito mais ativas e cuidadosas que as mulheres solteiras; ademais, a necessidade de garantir o sustento de sua família as obrigava a trabalhar com mais afinco. (…) é obvio, portanto que a mulher sofre mais diretamente do que o homem os efeitos da apropriação privada dos frutos do trabalho social. (SAFFIOTI, 1976, p. 40-41)

A partir do surgimento das primeiras mobilizações feministas, passando a lutar por causas específicas, pouco a pouco a questão feminina tomou corpo, enfrentando obstáculos muitas vezes tortuosos, dilemas, enfrentamentos, mudanças, derrotas e também vitórias. Este assunto será mais discutido a seguir.

2.2 O FEMINISMO BRASILEIRO E A SUA ARTICULAÇÃO COM OUTROS MOVIMENTOS SOCIAIS NA LUTA POR DIREITOS

Para mencionar acerca da organização do movimento feminista no Brasil torna-se pertinente realizar, primeiramente, uma breve retrospectiva sobre o movimento feminista internacional, pois este se constitui congênere do primeiro, que não atuou de forma isolada e nem tampouco alheia ao contexto mundial, possibilitando uma reflexão sobre as lutas, enfrentamentos, contradições vivenciadas, os desafios, as vinculações e as novas dinâmicas postas ao mesmo a partir dos anos 70.

Nesse sentido Costa e Sardenberg (2008, p. 02), enfatiza que para iniciar essa abordagem:

[…] é preciso lembrar que, pese sua universalidade, a subordinação da mulher não se manifesta da mesma forma, ou no mesmo grau de intensidade, em sociedades, épocas ou classes sócias diferentes. E tampouco é vivenciada, ou percebida, da mesma maneira ou grau de intensidade, mesmo por mulheres em condições histórico-sociais semelhantes.Com uma impressão digital, a vida de cada mulher é sempre única e traz sua marca. Contudo, seu esboço geral é traçado por circunstâncias muito mais globalizantes e historicamente determinadas […]

Dias (2003) compartilha do mesmo pensamento ao considerar que as mulheres são múltiplas, plurais cuja identidade é produzida em contextos históricos e institucionais diversificados, perpassando por questões de sexo, de gênero, de geração, de etnia, de classe social, dentre outras tecidos de acordo com as diferentes práticas sociais, que se encontram subjacentes ao poder.

As primeiras manifestações políticas e reflexões feministas acerca da descriminação e opressão dirigidas à mulher originaram-se na Inglaterra, França e nos Estados Unidos, a partir do século XVIII, com a perpetuação de um “novo” sistema econômico: o capitalismo, introduzido pela Revolução Francesa em 1789, apresentando ideais como igualdade, fraternidade e liberdade.

Atreladas a tais idéias, sobretudo a de igualdade, o movimento feminista passou a exprimir insatisfações acentuadas na desigualdade estabelecida entre os sexos e o papel da mulher na sociedade. Destacaram-se como líderes desses movimentos Rose Lacombe, Loison Chabry e Theroig de Mericourt que em companhia de outras mulheres exigiram na Assembléia Constituinte em Versalhes, a igualdade de direitos entre os sexos, a liberdade de trabalho, dentre outros. O movimento ganhou formato mais consistente no século XIX na maioria dos países europeus e nos Estados Unidos.

Contudo, apesar dos ideais capitalistas consentirem no discurso a igualdade, a prática não se apresentou como na teoria, uma vez que estes somente eram garantidos para a classe dominante. E a classe operária e, sobretudo a de mulheres? Sobre as mulheres as autoras Costa e Sardenberg (2008, p. 02) destacam que “para as filhas e esposas dessa burguesia ascendente, igualdade e fraternidade só entre sí. Liberdade, só entre os muros do espaço doméstico e, mesmo assim, vigiada. Direito? Os de boa filha, boa esposa, boa mãe.”

Desse modo, a forjada participação social proferida através do ideal liberal de igualdade, provocou, gradativamente, à subversão, isto é, as mulheres, principalmente as de classe média, despertaram para a situação de exploração, inferioridade e opressão a que estavam submetidas, tornando-se alavanca para o aparecimento do movimento feminista. (COSTA e SARDENBEG, 2008)

Assim, as manifestações emergem acopladas as contradições do capitalismo, ou seja, às ideologias que sustentam esse sistema, as quais se fizeram presentes em toda a história do movimento feminista, uma vez que foram realizadas interpretações sobre a participação da mulher nas relações de produção e as condições necessárias para a sua emancipação a luz do mesmo, provocando a divisão do feminismo em duas tendências, sendo a primeira denominada de feminismo burguês ou sufragista e a segunda nomeada como feminismo socialista.

A corrente do movimento feminista internacional sufragista que se desenvolveu nos países avançados, Inglaterra e Estados Unidos, caracterizou-se pela moderação e reformismo, porém incorporando algumas vezes práticas violentas. Limitava-se a reivindicar reformas jurídicas em prol do status da mulher, tendo em vista que a igualdade legislativa solucionaria os problemas de cunho discriminatório sobre as mulheres.

Esta corrente sufragista não conseguiu analisar os dois limiares do mecanismo capitalista na inclusão das mulheres nas relações de produção. Em outras palavras, isso significa que as contradições entre a inserção da mulher no mercado de trabalho e as conseqüências da dupla jornada de trabalho (se tornou condições reais para a manifestação) não foram bem interpretadas pelas mesmas, implicando na ausência de idéias transformistas para a estrutura e superestrutura da sociedade e, em específico para o papel da mulher, pois ao alcançarem o direito ao voto, à falta de analise das contradições ocasionaram à retomada das mulheres as antigas atividades impostas pela sociedade.

A corrente das feministas socialistas desenvolveu-se em diversos países, porém com mais intensidade na Alemanha, tendo como atuante Clara Zetkn e Rosa de Luxemburgo. Emergiu após a publicação do “Manifesto Comunista” dos autores Marx e Engels que faziam parte do movimento proletariado, de onde o feminismo atuava. A partir deste momento começaram a se desenvolver correntes de teorias, não só pelas feministas, mas também por historiadores, antropólogos, sociólogos, dentre eles tais autores que tentaram explicar as causas da subalternidade da mulher nas sociedades modernas, com a concepção de que a condição de dependência da mulher é fruto de um processo histórico que se encontra relacionado ao desenvolvimento das forças produtivas e como conseqüência deste a evolução da família. (CASTELLS, 2000)

É na perspectiva da propriedade privada e do papel que se desenvolve de reprodução da família para garantir a paternidade dos filhos e assim transmitir riquezas aos seus descendentes que se fundamenta o marxismo clássico.

Entretanto, esta concepção se deparou com uma série de críticas realizadas pelas teóricas feministas e por aqueles que utilizavam a teoria marxista para análise social. Dentre elas destaca-se: a) a afirmação sobre a existência de um matriarcado, o que não foi encontrado nenhuma pesquisa que indicasse uma organização familiar desse nível, sendo o que se apresentava era uma matrilinearidade. a) a divisão natural do trabalho apresentado por Marx e Engels, os quais assinalam que a primeira divisão do trabalho na família ocorre através do ato sexual e da procriação, considerando como uma divisão “natural” “[…] como se o trabalho doméstico fosse algo inerente à condição feminina, como se fosse um fato da “natureza” e não como o resultado das relações sociais de produção, o qual desvaloriza, esquecendo que através do trabalho doméstico, a mulher é responsável pela reprodução diária da força de trabalho que abrange a conservação e transformação dos alimentos que não se encontram prontas para serem consumidas ou tro
cadas pelo salário do trabalhador, bem como pela manutenção do vestuário e do lar. Para Marx a reposição da força de trabalho era competia à mulher. (CASTELLS, 2000)

A última premissa contrapõe-se com o próprio materialismo histórico, o qual apreende que o homem é resultado do processo de produção de bens matérias, ou seja, considera que não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência.

Esta corrente acreditava que a opressão feminina era conseqüência do surgimento da propriedade privada e ao lutarem por uma sociedade sem classes sociais, estaria garantindo uma sociedade sem desigualdades, inclusive para outras categorias como o sexo, a raça etc.

Isto é, acreditavam que com o surgimento da sociedade socialista, com a socialização dos meios de produção e a erradicação da exploração do trabalhador, surgiria, automaticamente, uma sociedade mais igualitária, em todos os sentidos. (COSTA e SARDENBRG, 2008, p.05)

Assim, defendiam a incorporação da mulher na produção social, pois acreditavam que dessa forma promoveriam as bases para a libertação, a independência econômica e principalmente, o rompimento com os laços de dominação do homem e da família, e então inserem a mulher na luta do proletariado. Mas, as feministas socialistas enfrentaram preconceitos do próprio partido devido ao medo da concorrência, negando a participação feminina nos sindicatos. Esse acontecimento induziu a organização das mulheres em sindicatos independentes. (COSTA E SARDENBERG, 2008)

A consciência de que o marxismo não podia responder a todas as demandas e questionamentos da problemática feminina vieram à tona na medida em que as feministas requeriam mais que mudanças nas relações de produção. Assim, foram em busca de outras concepções que pudessem suprir essa carência, sendo a teoria do patriarcado mais um passo nessa busca.

A primeira teórica feminista que buscou conceitos sobre o poder e dominação patriarcal foi Kate Millett, defendendo a concepção de que na relação estabelecida entre homens e mulheres são relações cuja política se encontra engendrada. É “[…] uma instituição revestida de aspectos ideológicos e biológicos que têm a ver com a divisão social, os mitos, a religião, a educação e a economia”. (LUMA apud CASTELLS, 2000, p. 29)

As feministas que defendiam essa linha eram tidas como radicais, definiam o patriarcado como um sistema sexual do poder, como a organização hierárquica masculina da sociedade que se perpetua através do matrimônio, da família e da divisão sexual do trabalho, fundamentando-se mais na biologia que na economia ou na história.

Para Shulamith Firestone a função reprodutiva da mulher é à base da opressão “(…) o desequilíbrio sexual do poder esta fundamentado biologicamente”, portanto, somente com a libertação da mulher das cadeias da maternidade, através dos progressos na tecnologia da reprodução, deixaria de existir esse desequilíbrio (FIRESTONE apud CASTELLS, 2000)

Apesar da contribuição realizada pelas feministas radicais na construção da teoria do patriarcado, estas passaram por uma série de críticas, sendo presidida por Scott (1999), pontuando que o patriarcalismo não explica a relação das desigualdades de gênero e outras desigualdades e que a sua análise se baseia apenas nas diferenças físicas, o que impede uma análise histórica.

Embora existam importantes críticas dirigidas às teorias do patriarcado, é inegável sua contribuição para a construção do pensamento feminista, não só no sentido de trazer para a cena novos elementos de análise que possibilitaram às feministas socialistas avançar nos parâmetros da concepção materialista da opressão feminina, incorporando outras dimensões da vida humana e, posteriormente na construção do conceito de gênero, o qual será tratado mais adiante.

As duas tendências feministas internacionais dominaram por um século, passando por momentos turbulentos, de efervescência e uma quase desarticulação – na conquista do direito ao voto -, quando emergiu, nos anos 60 movimentos de contestação de padrões, comportamentos e práticas da sociedade, emergiu também um ”novo” feminismo, que reaparece influenciado pelo movimento negro, movimento hippie e por todos os movimentos de contestação social, motivados pelos acontecimentos em 1986 – crise econômica-, contribuindo para uma nova face e história do movimento, bem como luta e a busca por uma identidade coletiva. Referente à aglutinação dos movimentos sociais salienta-se:

O feminismo tanto como crítica teórica quanto como movimento social, associado aos grandes movimentos sociais identificados com o ‘1968’ buscava visibilizar novas identidades racionais, étnicas, sexuais, etc., e, nesse intento, contribuiu substantivamente para negar as desigualdades sociais e reconhecê-las como pluralidade. (HALL, apud, DIAS, 2003, p. 27)

Vale lembrar que os movimentos sociais possuem determinação concreta advindas das relações de exploração e dominação capitalista, gerando relações antagônicas entre capital e trabalho, expressão das desigualdades sociais, sendo a mola propulsora dos movimentos sociais que ao se unirem formam vozes coletivas com identidade que lutam contra a barbárie capitalista, especificamente pelas demandas sócio-culturais impostas pelo sistema. Se diferenciam da luta entre as classes sociais na medida em que luta por mudanças culturais, por direitos, desigualdade, preconceito e por um Estado legitimador, enquanto a classe operária possui um objetivo único, a tomada de poder.

Como referido acima à denominação “novo feminismo” foi estimulada em virtude da proposta de uma atuação diferente do movimento feminista anterior.

Trata-se, hoje, de um movimento que questiona o papel da mulher na família, no trabalho e na sociedade, luta por uma transformação nas relações humanas e pela extinção das relações baseadas na discriminação social (…) a partir do questionamento tanto das relações sociais da produção material, quanto das relações efetivas e sexuais entre os seres humanos, propõe-se a luta por mudanças históricas. (COSTA E SARDENBERG, 2008, p 07)

Essa é uma característica peculiar, desenvolvida por feministas americanas contemporâneas, ganhando um sentido revolucionário que utiliza estrategicamente a troca de experiências das mulheres, além da reflexão coletiva para constatar que os problemas vivenciados enquanto sujeito do seu cotidiano, obtém relação o social que requer soluções coletivas. Desse pensamento que passa a existir a conotação “o pessoal é político” para se referir que não existe separação entre a esfera privada e a esfera pública, pois, as relações familiares são relações sociais de poder entre os sexos e não biologicamente determinada como difunde a ideologia dominante – patriarcal. “São construídas socialmente e, portanto, são historicamente determinadas” (COSTA E SARDENBERG, 2008, p 08)

Portanto, nota-se que o intuito de construção histórica do feminismo é:

(…) clarificar a divisão social, cognitiva, afetiva e política que se dá na relação entre homens e mulheres, problematizada a partir de uma diferença, que é biológica, centrada na anatomia do aparelho reprodutor, ou seja, no corpo. E seu grande mérito está em deslocar o foco da discussão para a esfera subjetiva e portanto simbólica, na compreensão de como os processos de dominaçãp e subordinação, baseados nessa diferença, se dão. (DIAS, 2003, p. 28)

Entrelaçado a história e a conjuntura universal da sociedade, o movimento feminista brasileiro teve sua estréia no século XIX, liderada por Nísia Floresta Brasileiro Augusta , que publicou diversas obras literaturas, as quais despertaram a sociedade para uma consciência crítica sobre as condições femininas, a exemplo da “A mulher” (1856), “Conselhos a minha filha” (1842), e em seguida pela Imprensa Feminina: O Jornal das “Senhoras” (1852), “A Mensageira” (1889), O Sexo Feminino.

Enquanto nos Estados Unidos e na Europa vivia uma revolução ligada ao modo de produção que ali se instalava, atingindo toda amplitude da vida social, em contrapartida, no Brasil e nos demais países da America Latina ainda se atenuava o regime colonial (advindo de Portugal), escravista e patriarcal. Uma sociedade agrária, em que a maior parte da população se encontrava concentrada na zona-rural, fundada na Casa Grande de onde o “Senhor de Engenho”, que também imperavam nas cidades (burguesia), ordenava um exército de escravos, bem como toda a família.

Entretanto, na Casa Grande ou nos sobrados burgueses, a situação da mulher brasileira era bastante precária, conforme Costa e Sardenberg (2008, p. 11) salientam:

[…] a família patriarcal se estabelecia segundo as ‘Ordenações de Portugal’, dando ao marido não só amplos poderes, mas ainda o cruel direito de castigar fisicamente sua mulher. Ademais, nas classes dominantes, a mulher era confinada no interior da casa sob as ordens de um marido (ou pai) distante e autoritário, rodeado de escravos e concubinas. Seu papel principal era o de reprodutora. Casava-se relativamente jovem e gerava muitos filhos […]

Nessa época não se encontrou nenhum registro de manifestações, questionamentos ou insubordinação, nem ao menos em pequenos grupos. Mas, houve mulheres com o comportamento considerado atípico, porém individualizado como Joana Angélica, Maria Quitéria, etc. Assim, nota-se que o sistema patriarcal na colônia permaneceu indubitável.

Em meados do século XIX uma série de mudanças de ordem econômica, política, social e ideológica do Brasil, passando de um regime colonial, a caminho do processo de industrialização, tornara mais evidente as desigualdades entre machos e fêmeas.

Esse processo foi marcado por mudanças significativas, que em sumo destaca-se a vinda da família real ao Brasil em 1808, a abertura dos postos ao comércio estrangeiro, a construção de ferrovias, o desenvolvimento do sistema bancário-financeiro, o crescente sentimento de identidade nacional da população, concentrada agora nas cidades, aliada às idéias liberais que promoveu a nova ordem econômica, jurídica e política no país através da Independência do Império (1822). E na segunda metade desse século, as campanhas abolicionistas, culminando no fim do regime escravista em 1888, a Proclamação da República e a promulgação de uma nova Constituição de 1891. (COSTA E SARDENBERG, 2008)

É importante enfatizar que tal Constituição não realizava referências aos direitos da mulher, e sim assegurava aos cidadãos brasileiros que todos eram iguais perante a lei, mesmo excluindo a classe trabalhadora não alfabetizada. Tal declaração suscitou inúmeras interpretações em que uma delas salienta a questão dos direitos políticos estarem na esfera legal com a afirmação “igualdade de todos”, mas na esfera real esse discurso não se fazia presente. Sendo assim, as primeiras manifestações feministas voltaram-se para a conquista do direito a educação e profissionalização da mulher.

Na primeira metade do século XX as feministas se dedicaram a conquista do voto feminino, já como luta organizada, tendo em vista que a Proclamação da Republica em 15 de novembro de 1889 demonstrava uma possibilidade de uma estrutura política mais fluída e aberta, o que impulsionou as feministas a favor do sufrágio.

Em 1910 algo significativo para luta feminista ocorreu, a fundação do Partido Republicano Feminista, tendo à frente Leolinda Dalto, criando campanhas de pressão mais próximas do político e passeatas de mulheres em 1917, no Rio de Janeiro, incorporando um estilo violento semelhante às sufragistas inglesas.

Embora esse partido tenha se dedicado, o surgimento da Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, em 1919, que depois modificou para Federação Brasileira para Progresso Feminino (FBPF) em 1922, se dedicou a lutar pelo sufrágio, ganhando mais vigor e estimulando a abertura de outras associações de mulheres no Brasil. Tendo sido caracterizada como a primeira entidade de mulheres e a principal responsável pela luta sufragista no Brasil.

Dessa forma, no ano de 1927 com o apoio do governador do Estado do Rio Grande do Norte, a FBPF alcançou sua primeira vitória, sendo ela o direito ao voto por meio de uma resolução aprovado pela Assembléia Legislativa desse Estado, mas tal resolução foi negada a nível Federal.

No entanto a luta pelo sufrágio feminino prosseguiu, até que em 1932 as reivindicações pelo direito ao voto foram concedidas pelo novo governo constituído com a chamada Revolução de 30 sobre o governo de Getúlio Vargas. Esta concessão estava engendrada em uma estratégia da dominação, sendo o atual presidente representante da burguesia industrial, que buscava apoio popular para empoderar o seu projeto classista, em luta com a burguesia agrária que se demonstrava a única força controladora da economia e do aparelho do Estado. Essa busca de apoio popular se consolidou por meio de uma série de medidas sociais tomadas por Vargas, a exemplo da criação do Ministério do Trabalho, o salário mínimo, o sufrágio universal e então o direito ao voto pelas mulheres.

Todavia as feministas brasileiras repetiram o mesmo ato das feministas inglesas, isto é, se sustentaram nas ideologias liberais e no reformismo como estratégia política, cujas defesas se limitavam ao combate às leis discriminatórias, preconceitos e tradições. Mas, é importante destacar a contribuição da FBPF para a construção atual da situação legal da mulher no Brasil e, sobretudo a emancipação do movimento feminista.

Paralelo ao movimento feminista burguês desenvolveu-se, no Brasil o Partido Comunista (PCB) que em particular apoiava a mobilização de mulheres das classes populares que lutavam pelas causas gerais da sociedade, atuando na perspectiva do partido, além de manter um vínculo com feministas socialistas da Europa, recaindo sobre tais o aspecto conservador. Pode-se dizer que se preocupavam mais com a política e a conjuntura para interesse da política mundial stalinista do que para interesse das mulheres. Logo, não assumiu características de um movimento feminista socialista, ao passo que não conseguindo romper com os limites ideológicos e políticos da sociedade classista, não demandaram transformações no social. Reforçava estereótipos tradicionais como: a mulher dona de casa e mãe, e o incentivo a continuidade desses papéis.

Somente após alguns anos o PCB reconheceria o erro em que se gestava a sua concepção. Em relação à questão feminina, compreende que a opressão do capitalismo sobre o trabalho culminou na divisão de classes, tal qual é o divisor de águas na medida em que englobam outras formas de opressão como a da mulher, do negro, dos homossexuais, etc, que não se encontram diretamente determinadas por esta estrutura econômica, portanto não serão aniquiladas com mudanças na estrutura.

A partir do golpe militar na década de 60, tanto o movimento feminista burguês quanto o movimento feminista lideradas pelas organizações de esquerda, foram silenciadas igualmente a todos os outros movimentos populares do país.

Após a passagem da ditadura militar o movimento feminista ressurge no contexto dos novos movimentos sociais contestatórios dos anos 70, em torno da afirmação de que ‘o pessoal é político’, como usaram as feministas internacionais, mas segundo Costa (2005) não era mais uma bandeira de luta mobilizadora e sim questionamento acerca dos conceituais imbuídos na palavra “político”.

Ao afirmar que “o pessoal é político” as feministas trazem para o espaço da discussão política a questão tratadas como específicas do privado, rompendo com a dicotomia público-privado fruto de um pensamento liberal, o qual tenta separar as especificidades da política e do poder político (as formas em que é exercida) das relações sociais.

Os novos movimentos sociais, incluindo o movimento feminista, cumpriram um importante papel no processo de construção de novas concepções e no questionamento sobre os paradigmas ditados pela tradição liberal que, no período, impedia o exercício da plena autonomia nas esferas individuais e sociais. Juntos perceberam que as reivindicações de um movimento se associava a demanda de outros movimentos, assim desenvolveram uma política pautada na transformação do cotidiano, com estratégias de luta e superação da participação e da cidadania, contribuindo para melhores condições no nível micro-social e na busca pelo bem-estar coletivo. (CHRISTO, 1998)

De acordo com Costa (2005), esta interação entre as organizações coletivas seguiu ampliando em que novos movimentos se uniram as feministas para proclamar seus direitos específicos dentro da luta geral, a exemplo dos negros, os homossexuais, os grupos comunitários, os sindicatos, clubes de mães e partidos políticos começaram a enfocar temas referentes à questão de gênero. Este último causou polêmica, principalmente com os de esquerda, pois as feministas que pregavam o princípio da autonomia não aceitam a tutela dessas organizações, tampouco a divergência na condução das lutas das mulheres.

Para Christo (1998) as vinculações entre os partidos políticos e movimentos sociais não deve negligenciar a autonomia, considerando que os novos movimentos sociais consiste em formas de luta e de cidadania sem os limites impostos pelas organizações partidárias, na perspectiva de romper com as práticas autoritárias.

Costa (2005) prossegue afirmando que a defesa da autonomia pelo feminismo não significou uma prática isolacionista que impedisse a articulação com outros movimentos sociais, apenas a definição de um espaço autônomo para articulação, troca, reflexão, definição de estratégias.

No ano de 1975, em comemoração ao Ano Internacional da Mulher, promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU) foram realizadas várias atividades públicas em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, reunindo mulheres interessadas em discutir a condição feminina em nossa sociedade, partindo da afirmação de que “o pessoal é político” precedido pelo “novo” movimento feminista que neste momento se desenvolvia na Europa e Estados Unidos. Após esse encontro o movimento feminista passou a se proliferar através de novos grupos em todas as grandes cidades brasileiras, assumindo novas bandeiras como os direitos reprodutivos, a sexualidade e o combate à violência contra a mulher. (COSTA E SARDENBERG, 2008, p. 10)

No entanto, a violência contra as mulheres se tornou prioridade do movimento feminista, particularmente a violência domestica e familiar contra a mulher, sendo sistematizada, problematizada e questionada a fim de possibilitar a passagem desta da esfera privada para a esfera pública, uma vez que tal prática era considerada como um assunto privado e até normal.

E em 1985, o III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado em Bertioga (SP) que contou com a participação de mulheres de diversos Estados e países, bem como representantes de outros movimentos, evidenciando que os encontros feministas passaram permitir a participação de outros movimentos, o que segundo Costa (2005) as diferenciou do feminismo europeu, tendo em vista que o interesse era promover um projeto mais amplo de reforma social e subseqüente a este se realizavam os direitos da mulher em meios a formas organizativas que possibilitavam o envolvimento de setores populares. Durante os anos 80 buscou-se um conceito que pudesse abarcar, numa visão histórico-analítica, a relação desigual entre homens e mulheres e que ao mesmo tempo extinguisse o determinismo biológico implícito nas expressões “sexo” ou “diferença sexual”. Assim, expõe-se o melhor conceito de gênero construído por Joan Scott (1989, p. 04):

O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as construções sociais – a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens a das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre o corpo sexuado.

Numa perspectiva pós-estruturalista, Scott (1998) acrescenta a valorização aos símbolos culturais, como a linguagem que constitui um sistema de sentidos pelo qual as pessoas representam e compreendem o seu mundo e explicitam o sentido subjetivo de pertencer a uma classe de gênero, bem como conceitos normativos, a religião, político, jurídico.

Desde então a palavra gênero consiste num elemento constituído de relações sociais baseadas nas representações sobre os sexos, isto é, trata o indivíduo como um ser inserido nas múltiplas relações, o que é crucial para entender como é elaborado o gênero e como ocorre à mudança e assim poder concluir que as definições sobre o sexo são construídas socialmente. Aborda Silva (2005, p. 70):

[…] a forma como vivemos nossa identidade sexual é mediada por significados culturais sobre sexualidade que são produzidos por meio de sistemas dominantes de representação. A diferença é construída negativamente por meio da exclusão e da marginalização e não como proposta de heterogeneidade e diversidade.

Um passo importante foi dado em 1988 com a promulgação da Nova Constituição Federal, pois através dela as mulheres passaram a ser reconhecidas com o respaldo de uma legislação mais progressista, menos discriminatória e que valoriza especificidades da condição feminina, demonstrado na elaboração de políticas públicas, a criação dos Conselhos dos Direitos da Mulher, das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, de programas específicos de Saúde integral e de prevenção e atendimento às vítimas de Violência Sexual e Doméstica para o enfrentamento e superação das privações, discriminações e opressões vivenciadas pelas mulheres.

Mas, para que esse reconhecimento jurídico do direito da mulher à cidadania se torne efetivo é fundamental que na prática uma coletividade se mobilize, tendo posse de uma consciência crítica no que tange os avanços e significados da questão de gênero para assim exigirem o comprimento e a punição para os que violarem a mesma. Nesse sentido Christo (1998, p.05) destaca que:

Ter consciência sobre as desigualdades, sobre a concentração de poder e privilégios, sobre todas as formas de injustiças e seu fundamento, por si só não transforma a realidade. (…) Se a informação e a consciência estão acompanhadas de apatia e resignação não há perspectivas de mudanças, uma vez que, nestas condições, o indivíduo não influi na dinâmica social, nada de novo realiza e, por isso, permanece na mesma condição de objeto daquele que nenhuma consciência possui.

Cumpre assinalar que a luta feminista não se resume na conquista dos direitos constitucionais ou na denúncia das discriminações de gênero. Essa luta é muito mais ampla, assumindo formas variadas dentro das raízes sociais e culturais da sociedade e, portanto, para extinguí-las é necessária, além de uma transformação social, uma revolução nos costumes e práticas – uma revolução cultura.

3 O ADVENTO DA LEI MARIA DA PENHA PARA A DEFESA DAS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR E A SUA EFETIVIDADE NA REGIÃO METROPOLITANA DE SALVADOR

Neste capítulo pretende-se discutir as modificações ocorridas no trato a violência contra a mulher, comparando a Lei 9.099/1995, que criou os Juizados Especiais Criminais (Jecrims), com os avanços da Lei 11.340/2006 intitulada Lei Maria da Penha, apresentando mecanismos para assegurar o cumprimento dessas, tais como: medidas preventivas, medidas assistenciais, atendimento especial pela autoridade policial e medidas protetivas de urgência, o que requer uma ação continua e articulada dos órgãos União, Estados, Distrito Federal e Municípios para assegurar a aplicabilidade da lei e, conseqüentemente o exercício da cidadania pelas mulheres.

Em seguida, cumpre salientar que são realizadas análises de indicadores sociais extraídos na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher de Salvador com o objetivo de ponderar os principais fatores que dificultam a efetividade da Lei 11.340/2006.

Ao iniciar, colocam-se algumas questões para reflexão que devem nortear a leitura do presente trabalho: em que a lei avançou? Quais são os fatores externos e internos à Lei 11.340/2006 que têm dificultado a sua efetivação?

3.1 A LEI 9.099/1995 E OS AVANÇOS DA LEI MARIA DA PENHA

Na década de 1990 os atos de violência contra a mulher passaram a ser respaldados pela Lei 9.099/1995 que criou o Juizado Especial Cível e Criminal (Jecrim) previsto na Constituição Federal e denominado pelo Código Penal Brasileiro. Estes foram idealizados para substituir penas repressivas por penas alternativas (serviços comunitários, conciliações, etc) em infrações consideradas de menor potencial ofensivo, isto é, crimes que causam um dano menor a indivíduos, como as lesões corporais (de natureza) e as agressões físicas (surras, socos, pontapés, ameaça, constrangimento ilegal, dentre outro), sendo as mais registradas nas Delegacias cujas penas são inferiores a um ano, além de priorizar a informalidade e o efetivo acesso a justiça pelas vítimas de violência.

Segundo Libardoni (2002) os juízes privilegiavam as conversas informais, a economia de documentos, audiências e papéis e, sobretudo a agilidade na decisão a fim de reparar os danos sofridos pela vítima por meio de penas que não correspondia à prisão e sim penas educativas ou a conciliação, tendo como propósito, em certa medida, desafogar a Justiça.

Os JECRIMs provocaram uma serie de mudanças nos atendimentos das Delegacias Policiais extraindo destas o papel de investigação e de mediação dos conflitos que compõem as queixas e, sobretudo nos registro de denúncias em que antes eram realizados os Inquéritos Policiais e após a lei 9.099/1995 foi substituído pelos chamados Termos Circunstanciados, os quais exigiam detalhes do ocorrido, a identificação do autor, da vítima, as possíveis testemunhas, e em seguida, se necessário, dava-se inicio as requisições de exames periciais e ao final o encaminhamento para o Juizado, com o autor do fato e a vítima para realização de audiência de conciliação e julgamento, dando um novo sentido à criminalização da violência contra a mulher.

De acordo com Libardoni (2002, p. 88) o último procedimento a ser realizado apresentava uma incompatibilidade, a saber:

Aqui há um descompasso entre a lei e a realidade, pois, na verdade, os Jecrims não funcionavam vinte e quatro horas, como funciona as Delegacias de Policia. Além disso, as próprias Delegacias não tinham viaturas e policiais para imediatamente encaminhar o termo circunstanciado, a vítima e o agente ao Juizado.

As audiências preliminares realizadas pelos juízes para ouvir a vítima e o agressor, tendo a presença do Ministério Público, valorizavam a conciliação, isto é, um acordo para decidir como reparar os agravos civis com uma indenização. Se caso houvesse um acordo, o processo, em dado momento, era considerado encerrado e a mulher não poderia mais apresentar a representação. Em outras palavras: a aceitação do acordo obtinha um significado peculiar de desistência. Quanto ao registro do agressor nada constaria, melhor dizendo “a sua ficha permanecia limpa” (grifos nossos).

O modelo de justiça conciliatória, como um fim em si mesmo, remetendo-se, simplesmente, as relações familiares não garantia segurança às mulheres em situações de desigualdade, como aborda Santos (2008, p. 18):

A conciliação é utilizada como um fim, não como um meio de solução do litígio. Através da promoção de um acordo com renúncia do direito de representação, ou da aplicação de penas alternativas, que resultam em geral na distribuição de cestas básicas ou prestação de trabalhos comunitários não relacionados à violência contra as mulheres, tal violência passa a ser banalizada e a justiça se torna questionável, dando azo à impunidade.

Nessa perspectiva, Aquino apud Gomes (2008) complementa o pensamento, afirmando que tal lei obtinha, com a conciliação entre as partes, aplicação de penas que não apresentavam nenhuma relação com o fenômeno da violência contra a mulher, iniciando pela “limpeza” da ficha do acusado, permanecendo como réu primário, a possibilidade do pagamento de multa – geralmente uma cesta básica a entidades assistenciais –, as limitações aos direitos que consistiam em prestação de serviços à comunidade, a restrição da liberdade nos fim de semana, como não sair de casa, voltar em certos horários etc, ou ainda limitações temporárias de certos direitos.

Esses elementos tiveram uma repercussão exacerbada no movimento feminista e de mulheres, pois para estas as punições não eram adequadas aos casos de violência doméstica, tendo em vista que tais possibilidades de acordo poderiam transformar a violência em algo rotineiro, ou seja, o agressor poderia continuar agredindo livremente a sua companheira, desde que pagasse o preço e as penas fixadas pelo Estado.

Dessa forma, a lei 9.099/95 contribuiu para uma reprodução da histórica banalização da violência contra a mulher, uma vez que tratou deste como algo de menor importância, resignificando as penas e por ventura ocasionando a recriminalização com efeitos de trivialização do problema. Tal abordagem da violência contra mulheres despertou a insatisfação das militantes feministas, pesquisadores e movimentos de mulheres que passaram a refletir, debater e produzir conhecimento sobre essa lei com o intuito de formular uma proposta de lei que pudesse substituir a competência dos Jecrims, abarcando os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Passada uma década de críticas e protestos feministas, surge assim a Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha.

Antes de examinar o teor da Lei Maria da Penha, torna-se pertinente inseri-la nos contextos políticos internacional e nacional que permitiram a sua promulgação propostas por feministas brasileiras. No âmbito internacional, a Conferência dos Direitos Humanos promovida pela Organização das Nações Unidas em 1993, em Viena, se configurou com um importante instrumento para o reconhecimento internacional da violência contra mulheres como uma violação dos “direitos humanos das mulheres”, sendo, posteriormente, aprovada pela Assembléia Geral da ONU. Em 1994, a Organização dos Estados Americanos aprovou a Convenção para a Eliminação, Prevenção, Punição e Erradicação da Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém de Pará, que define a violência contra mulheres como uma violência baseada no gênero e como uma violação dos direitos humanos. (SANTOS, 2008)

No âmbito nacional, em meados da década de 1990, o governo de Fernando Henrique Cardoso ratificou e incorporou as seguintes convenções, protocolos e planos internacionais relativos aos direitos das mulheres ao sistema jurídico-normativo nacional. Dentre eles destacam-se: a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), assinada pelo governo brasileiro em 1983, tendo sido adotada pela ONU em 1979; a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre as Mulheres, em 1995 e assinada pelo Brasil no mesmo ano; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ratificada pelo Brasil em 1995; a Convenção Americana dos Direitos Humanos, em 1992, o que contribuiu para o maior número de denúncias de violação de direitos humanos no Brasil e por fim o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, assinado em 2001. (SANTOS, 2008)

Embora a adoção destes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos das mulheres ter possibilitado as mobilizações jurídicas transnacionais por parte das organizações feministas no Brasil, o governo Cardoso, como mencionado anteriormente, obstruiu pouca atenção às demandas feministas. No entanto, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, por sua vez, criou condições favoráveis para que os movimentos feministas e de mulheres lograssem a aprovação de duas leis: a primeira sancionada em 2004 (Lei 10.886/2004), que alterou o Código Penal e introduziu o crime de violência doméstica, com pena de detenção de seis meses a um ano; a segunda refere-se à Lei Maria da Penha, sancionada dois anos depois, que criou mecanismos amplos para coibir, punir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Assim, nota-se que a conquista pela Le 11. 340/2006 foi fruto de um conjunto de acordos internacionais, em que o Brasil esteve presente, propagando campanhas internacionais a fim de que o governo nacional passasse a adotar medidas efetivas para o enfrentamento à violência doméstica e familiar e assim reconheceu como violação dos direitos humanos e a luta do movimento feminista que atuaram para que a problemática fosse adotada pelo âmbito público e social e conseqüentemente político e jurídicos, ampliando, portanto, o papel do Estado e alcançando transformações nas relações sociais. (GOMES et al, 2009)

A Lei n° 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha foi sancionada em 7 de agosto de 2006, representando um marco histórico frente aos processos de luta das mulheres, tendo como objetivo o reconhecimento da violência contra a mulher pelo Poder Público como violação dos direitos humanos; e um problema social, político e jurídico do país. Além de ser classificada como uma ação afirmativa, uma vez que se insere em um conjunto de políticas que compreende que, na prática, as pessoas não são tratadas igualmente, logo, não possuem as mesmas oportunidades, passando por um processo discriminatório marcadas por estereótipos que as consolidam socialmente como inferiores, incapazes, etc., alocando-as em situações de sub-cidadania e precariedade civil.

A referida lei obteve esta nomenclatura – Lei Maria da Penha – devido aos vinte anos de luta de Maria da Penha Maia Fernandes, a qual foi ameaçada e agredida com tentativa de homicídio pelo marido, Marco Antônio Heredia Viveiros, atirando nas costas, deixando- a paraplégica. No primeiro julgamento, após nove anos do ocorrido, Viveros foi condenado a uma pena de 15 anos de reclusão, reduzida a 10 anos por se tratar de réu primário. Em 1996, a decisão do júri foi anulada e o réu, sendo submetido a novo julgamento, foi condenado a 10 anos e 6 meses de reclusão. Recorrendo da sentença diversas vezes o réu permaneceu em liberdade por dezenove anos, sendo preso em outubro de 2002, devido à pressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que recebera denuncias do caso em 1998.

Esta luta ganhou dimensões em 1983. O reconhecimento da CIDH somente foi possível após a articulação de Maria da Penha com as Organizações CEJIL-Brasil (Centro para a Justiça e o Direito Internacional) e CLADEM-Brasil (Comitê Latino-americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), que encaminharam à CIDH uma petição contra este Estado com base na Convenção de Belém do Pará, o que implicou, em 2001, a publicação da condenação do estado brasileiro por negligência e omissão no que tange a violência doméstica sofrida por Maria da Penha através da ineficácia do Judiciário. (CFEMEA, 2008)

O caso Maria da Penha Fernandes revelou o descaso do governo brasileiro diante das denúncias internacionais de violência doméstica contra mulheres, que apesar da criação das delegacias da mulher, havia a necessidade de se transformar o sistema de justiça criminal brasileiro e criar mecanismos mais eficazes de prevenção e coibição da violência doméstica contra mulheres. Assim, este “tornou-se um caso emblemático por reconhecer um padrão sistemático de violência doméstica contra as mulheres e por estabelecer a responsabilidade do Estado ao nível internacional em função da ineficácia do sistema judicial ao nível nacional”. (SANTOS, 2008, p. 25)

A Lei 11. 340/2006 com o enfoque para o tratamento dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher foi elaborada com a finalidade de criar “mecanismos para coibir e prevenir” (Art. 1°) tal violência, garantindo os direitos humanos das mesmas e o acesso à justiça como estratégia para que se geste uma igualdade entre homens e mulheres.

Para tanto a Lei 11.340/2006 incorporou, além de medidas punitivas aos agressores, medidas de proteção à integridade física e assistência integral à mulher em situação de violência doméstica e familiar, através de uma rede de atendimento jurídico, social e psicológico e, ainda, medidas de prevenção e de educação, a fim de que possa contribuir na luta contra a reprodução social baseada no comportamento de violência contra o gênero. (GOMES et al, 2008)

Em seu artigo 2 afiançar às mulheres uma vida com segurança, livre de violência, independente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, demonstrando assim, a preocupação com a diferença entre as mulheres. Relacionado a esse direito o artigo 3 § 1º compreende ao poder público desenvolver “políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Ao adotar a categoria “violência doméstica e familiar contra a mulher” que configura “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (Art. 5º), a Lei Maria da Penha demonstra avanços, visto que ao apreender a questão da violência contra a mulher inserida nessa categoria permite o tratamento em sua abrangência e significância, pois anteriormente se utilizavam diversos termos – violência conjugal, violência doméstica, violência de gênero, violência contra a mulher – e um emaranhado de interpretações, provocando complicações no tratamento pela esfera política e legal. Ao denominar “violência doméstica e familiar contra a mulher” a Lei situa tanto o espaço social (“âmbito da unidade doméstica” – Art. 5, Inciso I -, ou no “âmbito da família” – Art. 5, Inciso II) quanto os sujeitos que podem estar envolvidos na ação de violência, (“em qualquer relação íntima de afeto” – Art. 5, Inciso III) (GOMES, 2008).

“Esta definição é importante por considerar ‘violência doméstica e familiar’ situações de violência que ocorrem não apenas no espaço doméstico, desde que a violência tenha por base as relações de gênero.” (SANTOS, 2008, p. 27)

Nesse intento, a Lei Maria da Penha amplia o conceito de família, compreendendo como “a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa” (Art. 5º, inciso II) e no parágrafo único do artigo 5°, reconhece também as relações homoafetivas ao passo que anuncia que as relações pessoais tratadas neste artigo independem de orientação sexual, a Lei, segundo Gomes et al (2008) rompe com o conceito restrito de família como instituição jurídica constituída pelo casamento ou pela união estável entre um homem e uma mulher. E completa reconhecendo também como violência doméstica e familiar contra a mulher aquela ocorrida entre pessoas que mantêm ou tenham mantido uma relação de afeto, independentemente de coabitação (Art. 5º, inciso III).

Resta acentuar que a Lei Maria da Penha contempla e define as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher descrita no artigo 7º, como “a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal”; “a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento (…)”; “a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada (…)”; “a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”; e “a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”.

Dessa forma, Gomes et al (2008) comenta que a lei proporciona o esclarecimento, tanto para os setores envolvidos, quanto para o público alvo e a sociedade civil, as várias faces que envolvem a complexa questão da violência contra a mulher, ao tempo que inclui a violência sexual, psicológica, moral e patrimonial como formas de violência doméstica e familiar, explicitando, respectivamente, os danos à saúde psíquica, emocional, à honra, à imagem, aos bens materiais e imateriais que esse tipo de violência imprime à mulher decorrendo para algo além das evidências físicas.

Torna-se pertinente destacar que a Lei 11.340/2006 reúne três eixos de ação, tais como: punição, proteção e prevenção e educação. O primeiro eixo, criado na tentativa de reverter à situação criada pela aplicação da lei 9.099/1995 aos casos de violência doméstica, denúncia como discriminatória a violência baseada no gênero, empregando procedimentos como a retomada do inquérito policial; aplicação de medidas de prisão em flagrante; a proibição da aplicação de penas alternativas e a restrição da representação criminal para determinados delitos, isto é, a restrição a manifestação própria juntamente com provas para a denúncia.

No segundo eixo encontram-se medidas de proteção da integridade física e dos direitos da mulher que se executam através de um conjunto de medidas de urgência para a mulher aliado a um conjunto de medidas que se voltam para o agressor. Integram-se também esse eixo as medidas de assistência, ou seja, a atenção à mulher vítima de forma integral, contemplando o atendimento psicológico, jurídico e social.

E por fim, o terceiro eixo, que são as medidas de prevenção e de educação, compreendidas como estratégias possíveis e necessárias para coibir a reprodução social do comportamento violento e a discriminação baseada no gênero.

A articulação desses três eixos induz, em certa medida, mudanças no campo político, jurídico e cultural, constituindo-se um desafio para o Estado brasileiro, pois para a efetivação de tais eixos é necessário que as políticas públicas atuem de modo articulado e integrado. Em outras palavras: torna-se proeminente o desenvolvimento de ações tanto na esfera governamental – União, Estados, Distrito Federal e Municípios – e não-governamental, bem como na esfera operacional, ou seja, aqueles que estão diretamente envolvidas na execução da Lei – Poder Judiciário, Defensoria Pública, Ministério Público, além dos setores de Segurança Pública, Assistência Social, Saúde, Educação, Trabalho e Habitação.

Desse modo, faz-se necessário enfatizar as medidas de prevenção, proteção e assistência e de punição dispostas na Lei Maria da Penha com o propósito de proporcionar às mulheres acesso aos direitos, o exercício da cidadania e autonomia para superar a situação de violência vivenciada.

a) Medidas de prevenção

Dentre as medidas de prevenção previstas na Lei Maria da Penha pontua-se: a promoção de pesquisas, a fim avaliar a eficácia das medidas adotadas; a implementação de programas visando à erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher; campanhas educativas relacionadas à temática, bem como aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça e etnia, “o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimam ou exarcebam a violência doméstica e familiar”, dentre outras. Além desses, compreende outros mais específicos, como “a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher” e “a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia ”. (Art. 8°, incisos IV e VII)

A delineação dessas ações torna evidente a importância da participação articulada dos setores citados acima, além de considerar necessário que os profissionais diretamente envolvidos compreendam as questões que envolvem as relações de gênero, raça e etnia, para que o processo de prevenção e combate à violência contra as mulheres obtenha êxito. (GOMES, 2008)

b) Medidas de proteção e assistência

As medidas de proteção e assistência requerem a ação na área social, de saúde, jurídica e de segurança para oferecer um serviço à mulher vítima de violência de modo integral, como explanado no Artigo 9°:

A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.

De acordo com esse pressuposto, a Lei contempla aspectos de fundamental importância para assegurar a integridade física e psicológica, e a sobrevivência da mulher em situação de violência, assinalando as medidas protetivas de urgência que garantem à mulher o direito fundamental de ir e vir, de continuar trabalhando, de permanência no lar, a inclusão da mulher em situação de violência nos programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal – Bolsa Família, Fome Zero, Inclusão Produtiva, dentre outros, atendendo especialmente aquelas mulheres que dependem financeiramente do agressor, a garantia da manutenção do vínculo trabalhista por até seis meses, quando for necessário seu afastamento do trabalho ou a remoção para outra repartição, se for funcionária pública.

No campo da justiça, vale ressaltar a assistência judiciária que garante à mulher em situação de violência doméstica e familiar “o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado” (Art. 28).

No que se refere aos procedimentos e atendimento da vítima pelas autoridades policiais, disposto no Capítulo III da Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006 -, descreve as providências que devem ser tomadas pela autoridade policial para garantir de imediato a segurança e o acesso à justiça da mulher que procura a unidade policial, especialmente, as Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher – DEAMs -, as quais mantêm uma estreita relação com o Poder Judiciário e o Ministério Público, mas não prescindem de outros serviços que devem fazer parte desta rede de atendimento à mulher, tais como: Defensoria Pública, Instituto Médico Legal, serviços de saúde e assistência social, e ainda dos serviços previstos no artigo 35, como centros de atendimento integral e multidisciplinar e casas-abrigos. Esta medida também engloba a assistência ao agressor, propondo a criação de centros de educação e de reabilitação para os mesmos.

Um elemento importante assinalado pela Lei Maria da Penha foi à proibição da “retirada das queixas”, o que era objeto de preocupação das feministas durante a permanência da Lei 0.099/1995. A partir da apreensão da noção de gênero como uma relação de poder, proposta por Joan Scott e o debate acerca do vitimismo versus a culpabilização das mulheres que exercitam o seu poder na apresentação e negociação da retirada das queixas, as feministas puseram em cena tal inquietação, sendo atendidas com a lei acima referida. (SANTOS, 2008)

Outra questão que merece destaque diz respeito à criação de Juizados específicos (Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher) para a retirada da competência dos JECRIMs, com competência cível e criminal , independentemente da pena que lhe for atribuída que “poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher” (Artigo 14).

Desse modo, cria um espaço especializado no Poder Judiciário para atender especificamente os casos decorrentes de violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como cria novas regras e procedimentos específicos para julgar tais casos, podendo ser aplicadas, as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil, do Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como o Estatuto do Idoso que não conflitarem com o estabelecido dessa Lei (Artigo 13).

A inclusão de uma equipe multidisciplinar atuando junto aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher representa mais um avanço na tocante Lei Maria da Penha, na medida em que agrega outros profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde (Artigo 29) para oferecer atendimento qualificado na resolução dos casos, tendo como atribuição:

Fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes. (Artigo 30)

c) Medidas de Punição

As medidas de punição previstas na Lei Maria da Penha alteram o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal para que se tornassem compatíveis com os crimes de violência física, psicológica, sexual, moral e patrimonial das mulheres, como pode ser visto no artigo 42 da Lei que altera o artigo 313 do Código de Processo Penal, o qual trata da prisão preventiva, sendo acrescentado um inciso para os crimes que envolvem violência doméstica e familiar contra a mulher em que o Juiz pode decretar a prisão provisória do agressor para garantir o cumprimento das medidas protetivas de urgência. (GOMES et al, 2008)

O artigo 43 da Lei Maria da Penha modifica o artigo 61 do Código Penal, incluindo a violência contra a mulher como mais uma forma de agravamento da pena. O artigo 44 da Lei Maria da Penha altera o artigo 129 do Código Penal que trata de lesão corporal, passando a vigorar com as seguintes alterações:

§ 9° Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. A pena será ainda aumentada em um terço, caso a lesão corporal na modalidade de violência doméstica for cometida contra pessoa portadora de deficiência (Art. 44 da LMP, alterando o § 11 ao artigo129, do Código Penal). (GOMES et al, 2008, p. 33)

A Lei ainda determina como medida punitiva, a obrigatoriedade do comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação encaminhado pelo juiz (artigo 45, alterando o artigo 152 da Lei de Execução Penal), medida essa que pode contribuir para prevenção ou para diminuição da reincidência desse tipo de violência.

Torna-se pertinente ressaltar que a Lei Maria da Penha proíbe a aplicação de penas de cesta básica ou de prestação de serviço a comunidade, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa (artigo 17), o oposto da Lei 9.099/95 que permitia a prática continua dessas ações. Assim, no Artigo 41 a Lei Maria da Penha declara explicitamente a não aplicabilidade da lei 9099/1995 nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

A necessidade de traçar os eixos e medidas propostos pela Lei Maria da Penha em comparação a Lei 9.099/1995, a priori, pretendeu-se pontuar as inovações legislativas, que propõem mecanismos que visam desde a prevenção dos crimes, às medidas protetivas de urgência e o desenvolvimento de atividades sócio-educativas dirigidas ao acusado, o que envolve a análise de aspectos culturais e sociais no que tange ao enfrentamento da violência, possibilitando, sobretudo a mudança de comportamento do agressor.

Mas, existem desafios que gira em torno de promover a efetiva implementação dessa lei, pois apenas uma “políticas de Estado” não garante, por si só, mudanças significativas nos recursos financeiros para a operacionalização da mesma, melhorias no funcionamento dos serviços em termos de infra-estrutura, capacitação continuada e, principalmente transformações na esfera social. É necessária a articulação do movimento feminista e movimento de mulheres junto a outros movimentos para pressionar o Estado no cumprimento das suas responsabilidades como representante da sociedade, bem como um diálogo, priorizando a participação popular na elaboração de políticas para as mulheres e na politização e materialização do discurso dos “direitos humanos das mulheres”, contribuindo para a promoção de algumas mudanças legais e políticas relativo à questão da violência doméstica contra as mulheres.

No entanto, o desafio maior que se apresenta para o movimento feminista e de mulheres é tornar a Lei Maria da Penha conhecida por todas as mulheres e por todos os homens, ou seja, é a construção coletiva de uma interpretação unificada da Lei e assim, garantir recursos para sua efetiva concretização para o cumprimento da cidadania pelas as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.

3.2 LEI MARIA DA PENHA: A REALIDADE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER EM SALVADOR

O desenvolvimento do estágio supervisionado na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, no período de agosto de 2007 a agosto de 2009, foi o cenário que contribuiu para a elaboração da referida problemática, sendo iniciadas pesquisas em março de 2008 sob o subsídio da investigação documental, descritiva, bibliográfica e a coleta de dados com base nas pesquisas quantitativas e qualitativas.

Os dados coletados tiveram o intermédio de fontes primárias e secundárias. A primeira, correspondeu a um questionário aplicado com 15 mulheres vítimas de violência doméstica e familiar atendidas na DEAM e 1 entrevista desenvolvida com a representante da instituição, citada acima.

Os critérios de seleção da amostra documental, ou seja, os dados secundários basearam-se na existência de informações, tanto na DEAM quanto em outras instituições relacionadas com a questão, a exemplo de dados estatísticos sobre a violência contra a mulher ocorrida nos anos: 2005, 2008 e 2009 e sobre os processos judiciais da Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, a fim de criar condições para que se possa refletir sobre o fenômeno, pois, como cita Amaral et al, (2001, p. 141) “(…) as estatísticas ajudam a vizibilizar ao máximo as reais dimensões do problema assim como se constituem em instrumentos de sensibilização e convencimento da população e do poder público quanto à gravidade e complexidade do fenômeno e necessidade de intervenção do Estado”.

Vale ressaltar que o intuito de incluir nesta pesquisa o ano de 2005, devido este ser o ano que antecede a promulgação da Lei Maria da Penha, e por apresentar dados da lei anterior que proporciona realizar comparações com os primeiros anos de desenvolvimento da Lei 11.340/2006.

Aproveitando o ensejo, expõe-se também a restrição do universo empírico, isto é, os dados coletados foram, apenas, de uma DEAM de Salvador, na qual existe duas. A segunda não foi inclusa devido ao período que foi inaugurada (18/11/2008), uma vez que já havia iniciado as investigações.

Os eixos que norteiam esta análise de dados dividem-se em quatro aspectos: I – Identificação da vítima; II – Condição socioeconômica e cultural da vitimizada e III – Indicadores sociais da violência em Salvador; IV – As inovações da Lei Maria da Penha e a participação da esfera estatal, com base na entrevista com a Delegada Titular da DEAM. Este destaque se faz presente pela necessidade de conhecer o perfil dos entrevistados, compreender como os fatores socioeconômicos e culturais interferem na aplicabilidade da Lei Maria da Penha que possui por objetivo assegurar assistência fundada pela Constituição Federal que preconiza igualdade e a defesa dos valores democráticos.

Cabe aqui, realizar uma breve identificação da DEAM de Salvador, sendo inaugurada em 1986, sediando primeiramente no Complexo de Delegacias, localizado nos Barris, o qual dividia-se o espaço fisco com outras duas delegacias. Atualmente possui sede própria, localizada no bairro Engenho Velho de Brotas – Rua Padre Luis Figueiras, s/ n°.

Os dados discutidos e analisados a seguir apresentam a interferência dos fatores externos à efetividade da Lei Maria da Penha, somado a fragilidade do Estado em atender eficazmente a necessidade da categoria feminina.

De acordo com a Superintendência de Políticas Para as Mulheres – SPM/Salvador -, segundo dados disponibilizados pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -, a população feminina estimada de Salvador atualmente consiste em 1.545.137 mulheres, das quais cerca de 1.273.193 são negras ou pardas.

Com base nessa estatística disponibilizada pelo órgão supramencionado, inicia-se esta analise, primeiramente discutindo a identificação da mulher vitimizada no período de 2005 e 2008, como pode ser visto no Gráfico 1 e 2, em que dentre as 15 mulheres entrevistadas 5% possuem o ensino fundamental e em 2008 (Gráfico 2) esse quantitativo aumenta para 8%, demonstrando um percentual significativo de mulheres que foram excluídas do sistema educacional no que tange ao ensino médio, em virtude de incorporar a idéia construída no imaginário social que considera a mesma um ser incapaz, passivo, delicado, devido ao poder da maternidade, atribuindo-lhes as atividades no âmbito privado, como esposa, mãe e educadora (ambiente doméstico) e exaurido-a das atividades públicas.

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