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segunda-feira, outubro 14, 2024

DISCURSO PRELIMINAR SOBRE O ESPÍRITO POSITIVO 1/4

DISCURSO PRELIMINAR SOBRE O ESPÍRITO POSITIVO

Augusto Comte

ÍNDICE
BIOGRAFIA DO AUTOR
DISCURSO SOBRE O ESPÍRITO POSITIVO
OBJETO DESTE DISCURSO
PARTE I SUPERIORIDADE MENTAL DO ESPÍRITO POSITIVO
Capítulo I – Lei da Evolução Intelectual da Humanidade ou Lei dos Três Estados.
Capítulo II – Destino do Espírito Positivo.
Capítulo III – Atributos Correlatos do Espírito Positivo e do Bom Senso
PARTE II SUPERIORIDADE SOCIAL DO ESPÍRITO POSITIVO
Capítulo I –Organização da Revolução
Capítulo II – Sistematização da Moral Humana
Capítulo III – Surto do Sentimento Social
PARTE III CONDIÇÕES DO ADVENTO DA ESCOLA POSITIVA
(Aliança dos Proletários e dos Filósofos)
Capítulo I – Instituição de um Ensino Popular Superior
Capítulo II – Instituição de uma Política Especialmente Popular
Capítulo III – Ordem Necessária dos Estudos Positivos
CONCLUSÃO – APLICAÇÃO AO ENSINO DA ASTRONOMIA
NOTAS

BIOGRAFIA DO AUTOR
Comte, cujo nome completo era Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier Comte, nasceu em 19 de janeiro de 1798, em Montpellier, e faleceu em 5 de setembro de 1857, em Paris. Filósofo e auto-proclamado líder religioso, deu à ciência da Sociologia seu nome e estabeleceu a nova disciplina em uma forma sistemática.

Foi aluno da célebre École Polytechnique, uma escola em Paris fundada em 1794 onde se ensinava a ciência e o pensamento mais avançados da época. De família pobre, sustentou seus estudos com o ensino ocasional da matemática e oportunidades no jornalismo.

Um de seus primeiros empregos foi o de secretário do Conde Henri de Saint-Simon, o primeiro filósofo a ver claramente a importância da organização econômica na sociedade moderna, e cujas idéias Comte absorveu, sistematizou com um estilo pessoal e difundiu.

Comte foi apresentado ao filósofo, então diretor do periódico Industrie, no verão de 1817. Saint-Simon, um homem de fértil, mas tumultuada e desordenada criatividade, então quase sessenta anos mais velho que Comte, foi atraído pelo jovem brilhante que possuia a capacidade treinada e metódica para o trabalho que lhe faltava. Comte tornou-se seu secretário e colaborador próximo, na preparação de seus últimos trabalhos. Quando Saint-Simon experimentou problemas financeiros, Comte permaneceu sem pagamento tanto por razões intelectuais como pela esperanças da recompensa futura.

Os esboços e os ensaios que Comte escreveu durante os anos da associação próxima com Saint-Simon, especialmente entre 1819 e 1824, mostram inequivocamente a influência do mestre. Esses primeiros trabalhos já contêm o núcleo de todas suas idéias principais, mesmo as mais tardias. Em 1824 Comte desentendeu-se com Saint-Simon por questões de autoria legítima de ensaios que Comte devia publicar. A solução, que Comte considerou injusta, foi que cem cópias do trabalho saíram sob o nome de Comte, enquanto mil cópias, intituladas Catechisme des industriels indicavam a autoria de Henri de Saint-Simon. Outra causa do rompimento foi, ironicamente, Comte desdenhar a idéia de um paradigma religioso no projeto de Saint Simon, ele, Comte, que depois haveria de adotar essa idéia proclamando a si mesmo como sumo sacerdote da Humanidade.

Em fevereiro 1825 Comte se casou com Caroline Massin, proprietária de uma pequena livraria, uma moça que ele já conhecia. Comte a achava forte e inteligente, mas depois taxou-a de ambiciosa e desprovida de afetividade. O casamento foi sempre tumultuado por motivos financeiros, uma vez que Comte não conseguia uma posição com salário fixo e contava apenas com os rendimentos das aulas particulares e alguma renda adicional por colaborações a jornais, mais freqüentemente para o Producteur, um jornal fundado pelos filhos espirituais de Saint-Simon após a morte do mestre.

Depois de se afastar de Saint Simon, a principal preocupação de Comte tornou-se a elaboração de sua filosofia positiva. Não tendo nenhuma cadeira oficial da qual expor suas teorias, decidiu oferecer um curso particular que os interessados subscreveriam adiantado, e onde divulgaria sua Summa do conhecimento positivo. O curso abriu em abril, 1826, com a presença de alguns curiosos ilustres como Alexander von Humboldt, diversos membros da academia das ciências, o economista Charles Dunoyer, o duque Napoleon de Montebello, e Hippolyte Carnot, filho do organizador dos exércitos revolucionários e irmão do cientista Sadi Carnot, e vários estudantes da École Polytechnique.

Comte deu apenas três aulas e foi obrigado a interromper o curso devido a um colapso nervoso. Seu mal foi diagnosticado como ” mania ” no hospital do famoso Dr. Esquirol, autor de um tratado sobre a doença. Ele próprio submeteu Comte a um tratamento com banhos de água fria e sangrias. Apesar de não receber alta, Comte foi levado para casa por Caroline

Após o retorno para casa, Comte caiu em um estado melancólico profundo, e tentou mesmo o suicidio jogando-se no rio Sena. Somente em agosto 1828 logrou sair de sua letargia. O curso das conferências foi recomeçado em 1829, e Comte ficou satisfeito outra vez por encontrar na audiência diversos nomes de grandes das ciências e das letras.

Durante os anos 1830-1842, quando escreveu sua obra prima, Cours de philosophie positive, Comte continuou a viver miseravelmente à margem do mundo acadêmico. Todas as tentativas de ser apontado de para uma cadeira no École Polytechnique ou para uma posição na Academia das ciências ou na faculdade de França foram infrutíferas. Controlou somente em 1832 a ser apontado assistente de “analyse et de mecanique” no École; cinco anos mais tarde foi dado também as posições do examinador externo para a mesma escola. A primeira posição trouxe valiosos dois mil francos e o segundo um pouco mais. Mas era pouco para as despesas que tinha com a esposa e por isso continuou com as aulas particulares para escapar da faixa de pobreza.

Durante os anos da concentração intensa quando escreveu o Cours, Comte foi incomodado não somente por dificuldades financeiras e as frustradas tentativas de emprego acadêmico. Também sofreu críticas do mundo científico por parte de importantes figuras que o ridicularizavam pela sua pretensão de submeter ao seu sistema todas as ciências. A mágoa agravou seu estado psicológico. Por razões “de higiene cerebral”, decidiu-se, em 1838, a não ler mais uma linha de qualquer trabalho científico, limitando-se à leitura de ficção e poesia. Em seus últimos anos o único livro que haveria de ler repetidamente seria o “Imitação de Cristo”. Sua vida matrimonial, que sempre fora tempestuosa, também se desfez. Comte teve várias separações de Caroline, que não suportava os seus fracassos e terminou por deixá-lo definitivamente em 1842.

Só e isolado, continuou a atacar os cientistas que se recusaram a reconhecê-lo. Queixou-se de seus inimigos aos ministros do Rei, escreveu cartas delirantes à imprensa e atormentou a paciência de seus poucos restantes amigos. Criando demasiado inimigos na École Polytechnique, sua nomeação como o examinador não foi renovada em 1844. Perdeu com isto a metade de sua renda. (iria perder também a posição de assistente na École em 1851.)

Contudo apesar de todos estas adversidades, Comte começou lentamente a adquirir discípulos. E mais importante para ele foi que, além de encontrar alguns discípulos franceses notáveis, tais como o eminente intelectual Emile Littre, era o fato de que sua doutrina positiva havia atravessado o Canal e recebera considerável atenção na Inglaterra. David Brewster, um físico eminente, saudou-o nas páginas do Edinburgh Review em 1838 e, o mais gratificante de tudo, John Stuart Mill transformou-se em seu admirador, citando-o em seu System of Logic (1843) como um dos principais pensadores europeus. Comte e Mill se corresponderam regularmente, e serviu a Comte não somente para refinar seus pensamentos como também para desabafar com o filósofo inglês as tribulações de sua vida conjugal e as dificuldades de sua existência material. Mill arrecadou entre admiradores britânicos de Comte uma soma considerável em dinheiro e lhe enviou como socorro para suas dificuldades financeiras.

No mesmo ano de 1844, Comte conheceu Clotilde de Vaux, por quem se apaixonou. Ela era uma mulher de trinta anos abandonada pelo marido, um funcionário público do baixo escalão, que havia fugido do país depois de se apropriar de fundos do governo. Um irmão de Clotilde que havia sido aluno de Comte na Escola Politécnica, e o convidou a ir à casa de seus pais, onde lhe apresentou a irmã.

Comte ficou inteiramente seduzido por ela. Sua paixão teve, porém, um desdobramento inusitado. Clotilde estva impedida pela lei de casar-se achando-se o seu marido foragido. Auguste Comte tinha então quarenta e sete anos, e havia se separado três anos antes de sua mulher. Acabara de concluir seu monumental Cours de philosophie positive, e se preparava para escrever o que pretendia que seria sua principal obra, o Système de politique positive, da qual ele considerava o Cours de philosophie como apenas uma introdução. Entusiasmado com a própria paixão, Auguste Comte afirma que nada pode ser mais eficaz para o bem pensar que o bem querer, e se tornou um abrasado feminista. Afirmava que a mulher encarnava o sentimento e portanto, em última análise, a própria Humanidade. Buscou então seriamente associar o sexo feminino, na pessoa de Clotilde, à obra de renovação social e moral que se impôs completar. Clotilde tentou colaborar, através de um romance filosófico, Wilhelmine, que ela se pôs febrilmente a escrever. Mas adoeceu de tuberculose e veio a falecer em 1846.

Comte devotou o resto de sua vida à memória do “seu anjo”. O Système de politique positive, que tinha começado a esboçar em 1844 e no qual completou sua formulação da sociologia, iria transformar-se em um memorial a sua amada. Cinco anos mais tarde, em 1851, ao publicar essa obra, dedicou-a a Clotilde, dizendo esperar que a humanidade, reconhecida, haveria de lembrar sempre seu nome junto ao dela.

No Système de politique positive, Comte, voltando-se contra a doutrina do mestre Saint-Simon, defendeu a primazia da emoção sobre o intelecto, do sentimento sobre a racionalidade; e proclamou repetidamente o poder curativo do calor feminino para a humanidade dominada por tempo demasiado pela aspereza do intelecto masculino. Por outro lado, maquiou a proposta de disciplina eclesiástica de Saint-Simon criando a Religião da Humanidade.

Quando o Système apareceu entre 1851 e 1854, Comte escandalizou e perdeu a maioria dos seguidores racionalistas que ele havia conquistado com tanta dificuldade nos últimos quinze anos. John Stuart Mill e Emile Littre não aceitaram que o amor universal fosse a solução para todas as dificuldades da época. Tão pouco aceitariam a Religião da Humanidade da qual Comte se proclamou agora o sumo sacerdote. A observação dos rituais múltiplos segundo o calendário anual, os detalhes da elaborada liturgia indicavam que o antigo profeta do estágio positivo havia regressado às trevas do estágio teológico. Comte passou a assinar suas circulares – aos novos discípulos que conseguiu reunir – como “fundador da religião universal e sumo sacerdote da humanidade”. Tentou converter o Superior Geral dos Jesuítas à nova fé e comparou suas circulares aos discípulos com as epístolas de São Paulo. Fundou a Societé Positiviste, que se transformou no centro principal de seu ensino. Os membros se cotizaram para assegurar a subsistência do mestre e fizeram os votos de espalhar sua mensagem. As missões se instalaram, na Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, e na Holanda. Cada noite, das sete às nove, exceto nas quartas-feiras quando a Societé Positiviste tinha sua reunião regular, Comte recebia seus discípulos em sua casa em Paris: políticos, intelectuais e operários, que lhe votavam grande respeito e veneração. Comte estava longe do entusiasmo republicano e libertário de sua juventude. O moto da Igreja Positiva era amor, ordem e progresso. O jovem estudante de passeata agora pregava as virtudes do amor, da submissão e a necessidade da ordem para o progresso social.

Em 1857, Comte, após alguns meses de enfermidade, faleceu a cinco de setembro. Um grupo pequeno de discípulos, de amigos, e de vizinhos seguiu seu esquife ao cemitério de Pere Lachaise. Seu túmulo transformou-se no centro de um pequeno cemitério positivista onde estão sepultados, perto do mestre, seus discípulos mais fiéis.

Pensamento. A contribuição principal de Comte à filosofia do positivismo foi sua adoção do método científico como base para a organização política da sociedade industrial moderna, de modo mais rigoroso que na abordagem de Saint Simon. Em sua Lei dos três estados ou estágios do desenvolvimento intelectual, Comte teorizou que o desenvolvimento intelectual humano havia passado historicamente primeiro por um estágio teológico, em que o mundo e a humanidade foram explicados nos termos dos deuses e dos espíritos; depois através de um estágio metafísico transitório, em que as explanações estavam nos termos das essências, de causas finais, e de outras abstrações; e finalmente para o estágio positivo moderno. Este último estágio se distinguia por uma consciência das limitações do conhecimento humano. As explanações absolutas consequentemente foram abandonadas, buscando-se a descoberta das leis baseadas nas relações sensíveis observáveis entre os fenômenos naturais.

Comte tentou também uma classificação das ciências; baseada na hipótese que as ciências tinham desenvolvido da compreensão de princípios simples e abstratos à compreensão de fenômenos complexos e concretos. Assim as ciências haviam se desenvolvido a partir da matemática, da astronomia, da física, e da química para a biologia e finalmente a sociologia. De acordo com Comte, esta última disciplina não somente fechava a série mas também reduziria os fatos sociais às leis científicas e sintetizaria todo o conhecimento humano.

Embora não fosse de Comte o conceito de sociologia ou da sua área de estudo, ele ampliou seu campo e sistematizou seu conteúdo. Dividiu a Sociologia em dois campos principais: Estática social, ou o estudo das forças que mantêm unida a sociedade; e Dinâmica social, ou o estudo das causas das mudanças sociais.

Dando nova roupagem às idéias de Hobbes e Adam Smith, afirmou que os princípios subjacentes da sociedade são o egoísmo individual, que é incentivado pela divisão de trabalho, e a coesão social se mantém por meio de um governo e um estado fortes.

Como Saint Simon, queria a administração real do governo e da economia nas mãos dos homens de negócios e dos banqueiros, porém deu um toque pessoal seu, com origem em sua paixão por Clotilde, dizendo que a manutenção da moralidade privada seria competência das mulheres como esposas e mães.

Dando ênfase à hierarquia e obediência, rejeitou a democracia, sustentando que o governo ideal seria constituído por uma elite intelectual. Seu conceito de uma sociedade positiva está no seu Système de politique positive (“Sistema de Política Positiva”).

Como Saint-Simon, ele veio a adotar a idéia de que a organização da igreja católica romana, divorciada da teologia cristã, podia fornecer um modelo estrutural e simbólico para a sociedade nova, idéia que, no entanto, fora uma das causas alegadas para seu rompimento com o mestre. Comte substituiu a adoração a Deus por uma “religião da humanidade”; um sacerdócio espiritual de sociólogos seculares guiaria a sociedade e controlaria a instrução e a moralidade pública. Comte viveu para ver sua obra comentada extensamente em toda a Europa. Muitos intelectuais ingleses foram influenciados por ele, e traduziram e promulgaram seu trabalho. Seus devotos franceses tinham aumentado também, e mantinha uma correspondência volumosa com sociedades positivistas em todo o mundo.

A habilidade particular de Comte era como um sintetizador das correntes intelectuais as mais diversas. Tomou idéias principalmente dos filósofos modernos do século XVIII. De Saint-Simon e outros reformadores franceses menores Comte tomou a noção de uma estrutura hipotética para a organização social que imitaria a hierarquia e a disciplina existente na igreja católica romana. De vários filósofos do Iluminismo adotou a noção do progresso histórico e particularmente de David Hume e Immanuel Kant tomou sua concepção de positivismo, ou seja, a teoria de que o Teologia e a Metafísica são modalidades primárias imperfeitas do conhecimento e que o conhecimento positivo é baseado em fenômenos naturais e suas propriedades e relações como verificado pelas ciências empíricas, tese Kantiana por excelência.

O mais importante realmente provém de Saint-Simon, que havia enfatizado originalmente a importância crescente da ciência moderna e o potencial da aplicação de métodos científicos ao estudo e à melhoria da sociedade.

De Saint-Simon é originalmente a idéia de que a finalidade da análise científica nova da sociedade deve ser amelhorativa e que o resultado final de toda a inovação e sistematização na nova ciência deve ser a orientação do planeamento social. Comte também pensou que era necessário implantar uma ordem espiritual nova e secularizada a fim de suplantar o sobrenaturalismo ultrapassado da teologia cristã.

Comte seguiu Saint-Simon quando considerou a necessidade de uma ciência social básica e unificadora que explicasse as organizações sociais existentes e guiasse o planeamento social para um futuro melhor. Na sua hábil sistematização Comte chamou esta nova ciência “Sociologia”, pela primeira vez.

Temerariamente, porém, foi mais adiante que seu mestre quando afirmou que os fenômenos sociais poderiam ser reduzidos a leis da mesma maneira que as órbitas dos corpos celestes haviam sido explicadas pela teoria gravitacional quase trezentos anos antes.

DISCURSO SOBRE O ESPÍRITO POSITIVO
OBJETO DESTE DISCURSO

1. O conjunto dos conhecimentos astronômicos não deve mais ser considerado isoladamente, como até aqui, mas constituir de ora avante apenas um dos elementos indispensáveis do novo sistema indivisível de filosofia geral que hoje atingiu finalmente sua verdadeira maturidade abstrata, depois de ter sido gradualmente preparado pelo concurso espontâneo dos grandes trabalhos científicos dos três últimos séculos. Em virtude desta íntima conexidade, ainda pouco compreendida, a natureza e o destino deste Tratado não poderão ser devidamente apreciados se este preâmbulo imprescindível não for consagrado sobretudo à definição conveniente do verdadeiro e fundamental espírito desta filosofia, cuja instalação universal deve ser, no fundo, o objetivo precípuo de semelhante ensino. Como ela se distingue principalmente pela continua preponderância, a um tempo lógica e científica, do ponto de vista histórico ou social, devo antes de tudo, para melhor caracterizá-la, lembrar de modo sumário a grande lei que estabeleci, em meu Sistema de Filosofia Positiva, sobre a evolução total da Humanidade, lei à qual os nossos estudos astronômicos hão de recorrer com freqüência.

I PARTE
SUPERIORIDADE MENTAL DO ESPÍRITO POSITIVO
CAPÍTULO I
LEI DA EVOLUÇÃO INTELECTUAL DA HUMANIDADE OU LEI DOS TRÊS ESTADOS

2. De acordo com esta doutrina fundamental, todas as nossas especulações estão inevitavelmente sujeitas, assim no indivíduo como na espécie, a passar por três estados teóricos diferentes e sucessivos, que podem ser qualificados pelas denominações habituais de teológico, metafísico e positivo, pelo menos para aqueles que tiverem compreendido bem o seu verdadeiro sentido geral. O primeiro estado, embora seja, a princípio, a todos os respeitos, indispensável deve ser concebido sempre, de ora em diante, como puramente provisório e preparatório; o segundo, que é, na realidade, apenas a modificação dissolvente do anterior, não comporta mais que um simples destino transitório, para conduzir gradualmente ao terceiro; é neste, único plenamente normal, que consiste, em todos os. gêneros, o regime definitivo da razão humana.

I. Estado teológico ou fictício

3. No seu primeiro surto, necessariamente teológico, todas nossas especulações manifestam de modo espontâneo uma predileção característica pelas mais insolúveis questões, pelos assuntos mais radicalmente inacessíveis a qualquer investigação decisiva. O espírito humano, numa época em que está ainda abaixo dos mais simples problemas científicos, por um contraste, que em nossos dias deve parecer-nos à primeira vista inexplicável, mas que, no fundo, se acha então em plena harmonia com a verdadeira situação inicial da nossa inteligência, procura avidamente, e de maneira quase exclusiva, a origem de todas as coisas, as causas essenciais, quer primárias, quer finais, dos diversos fenômenos que o impressionam, e seu modo fundamental de produção, em uma palavra, os conhecimentos absolutos. Esta necessidade primitiva se acha naturalmente satisfeita tanto quanto o exige tal situação é mesmo, de fato, tanto quanto o possa jamais ser, por nossa tendência inicial a transportar por toda a parte o tipo humano, assimilando quaisquer fenômenos aos que nós mesmos produzimos, os quais, por esta razão, começam a parecer-nos bastante conhecidos, em virtude da intuição imediata que os acompanha. Para compreender bem o espírito puramente teológico, proveniente do desenvolvimento, cada vez mais sistemático, deste estado primordial, cumpre não nos limitarmos a considerá-lo na sua última fase que se consuma, à nossa vista, nas populações mais adiantadas, mas que está longe de ser a mais característica: torna-se indispensável lançarmos uma vista de olhos verdadeiramente filosófica sobre o conjunto de sua marcha natural, a fim de apreciarmos sua identidade fundamental sob as três formas principais que lhe são sucessivamente próprias.

4. A mais imediata e a mais pronunciada destas formas constitui o fetichismo propriamente dito, que consiste sobretudo em atribuir a todos os corpos exteriores uma vida essencialmente análoga à nossa, quase sempre, porém mais enérgica, em virtude de sua ação, de ordinário, mais poderosa. A adoração dos astros caracteriza o grau mais elevado desta primeira fase teológica que, no começo, quase não difere do estado mental a que atingem os animais superiores. Ainda que esta primeira forma de filosofia teológica se manifeste com evidência na história intelectual de todas as nossas sociedades, ela já não domina diretamente hoje senão na menos numerosa das três grandes raças que compõem a nossa espécie.

5. Na sua segunda fase essencial, que constitui o verdadeiro politeísmo, muitas vezes confundido pelos modernos com o estado precedente, o espírito teológico representa claramente o livre predomínio especulativo da imaginação, ao passo que até então o instinto e o sentimento tinham sobretudo prevalecido nas teorias humanas. A filosofia inicial sofre nessa época a mais profunda transformação, que o conjunto do seu destino real pode comportar, por isso que nela a vida é enfim retirada dos objetos materiais, para ser misteriosamente transportada a diversos seres fictícios, habitualmente invisíveis, cuja intervenção ativa e contínua se torna daí por diante a origem direta de todos os fenômenos exteriores e mesmo em seguida dos fenômenos humanos. E durante esta fase característica, mal apreciada hoje, que convém principalmente estudar o espírito teológico, que nele se desenvolve com uma plenitude e uma homogeneidade impossível ulteriormente: esta época é, a todos os respeitos, a do seu maior ascendente, ao mesmo tempo mental e social. A maioria de nossa espécie não saiu ainda de semelhante estado, que persiste hoje na mais numerosa das três raças humanas, no escol da raça negra e na parte menos avançada da branca.

6. Na terceira fase teológica, o monoteísmo propriamente dito dá começo ao inevitável declínio da filosofia inicial. Esta, embora conserve por dilatado tempo grande influência social, contudo mais aparente ainda do que real, sofre desde então rápido decréscimo intelectual, como conseqüência espontânea desta simplificação característica pela qual a razão, unificando os deuses, restringe cada vez mais o domínio anterior da imaginação e permite desenvolver gradualmente o sentimento universal, ainda quase insignificante, da sujeição forçosa de todos os fenômenos naturais a leis invariáveis. Sob formas mui diversas e até radicalmente inconciliáveis, esta fase extrema do regime preliminar persiste ainda, com energia muito desigual, na imensa maioria da raça branca; mas ainda que seja assim mais fácil de ser observada, as próprias preocupações pessoais acarretam hoje um obstáculo muito freqüente à sua judiciosa observação, por falta de uma comparação suficientemente racional e justa com as duas fases precedentes.

7. Por mais imperfeita que possa parecer agora semelhante maneira de filosofar, muito importa ligar de modo indissolúvel o estado atual do espírito humano ao conjunto dos seus estados anteriores, reconhecendo convenientemente que ela devia ter sido, por muito tempo, tão indispensável como inevitável. Limitando-nos aqui à simples apreciação intelectual, seria por certo supérfluo insistir sobre a tendência involuntária que, mesmo hoje, nos arrasta todos às explicações de pura essência teológica, logo que queremos penetrar diretamente o mistério inacessível do modo fundamental de produção dos fenômenos, sobretudo daqueles cujas leis reais ainda ignoramos. Os mais eminentes pensadores podem então verificar a sua própria disposição natural para o mais ingênuo fetichismo, quando esta ignorância se acha combinada momentaneamente com alguma paixão pronunciada. Se, pois, todas as explicações teológicas, experimentaram crescente e decisivo desuso entre os modernos ocidentais, isto aconteceu porque as investigações misteriosas que elas visavam foram cada vez mais afastadas como radicalmente inacessíveis à nossa inteligência, que se habituou pouco a pouco a substitui-las de modo irrevogável por estudos mais eficazes e mais em harmonia com as nossas verdadeiras necessidades. Mesmo na época em que o verdadeiro espírito filosófico já tinha prevalecido em relação aos mais simples fenômenos e em assunto tão fácil como a teoria elementar do choque, o memorável exemplo de Malebranche lembrará sempre a necessidade de se recorrer à intervenção direta e constante dos agentes sobrenaturais, todas as vezes que se procure remontar à causa primeira de qualquer acontecimento. Ora, por outro lado, tais tentativas, por mais pueris que pareçam justamente hoje, constituíam sem dúvida o início meio primitivo de provocar as especulações humanas e determinar o seu progresso contínuo, libertando de modo espontâneo nossa inteligência do círculo vicioso em que a princípio se acha necessariamente envolvida pela oposição radical de duas condições por igual imperiosas. Se, de fato, os modernos tiveram de proclamar a impossibilidade de fundar qualquer teoria sólida a não ser sobre um concurso suficiente de observações adequadas, não é menos incontestável que o espírito humano não poderia jamais combinar, nem mesmo recolher, esses materiais indispensáveis, sem ser continuamente dirigido por algumas idéias especulativas previamente estabelecidas. Assim estas concepções primordiais só podiam, é claro, resultar de uma filosofia que prescindisse, por sua natureza, de qualquer preparo prolongado, sendo capaz, em uma palavra, de surgir espontaneamente, sob o impulso único de um instinto direto, por mais quiméricas que devessem ser, além disso, especulações tão desprovidas de todo fundamento real. Tal é o feliz privilégio dos princípios teológicos, sem os quais podemos assegurar que a nossa inteligência não poderia nunca sair do seu torpor inicial; a eles permitiram, dirigindo sua atividade especulativa, preparar gradualmente um regime lógico melhor. Esta aptidão fundamental foi, além disto, poderosamente secundada pela primitiva predileção do espírito humano pelas questões insolúveis, que atraíam sobretudo essa filosofia primitiva. Não podíamos avaliar nossas forças mentais, e, por conseguinte, circunscrever judiciosamente o seu destino, senão depois de exercitá-las suficientemente. Ora, este exercício indispensável não podia ser desde logo determinado, sobretudo nas mais débeis faculdades da nossa natureza, sem o enérgico estímulo inerente a tais estudos, nos quais tantas inteligências mal cultivadas ainda persistem em procurar a mais pronta e a mais completa solução das questões diretamente usuais. Para vencer suficientemente nossa inércia nativa, foi mesmo preciso durante muito tempo recorrer às poderosas ilusões que tal filosofia suscitava espontaneamente sobre o poder quase indefinido do homem para modificar ao seu sabor um mundo então concebido como feito para seu uso e que nenhuma grande lei podia ainda subtrair à arbitrária supremacia das influências sobrenaturais. Há apenas três séculos que, no escol da Humanidade, as esperanças astrológicas e alquímicas, último vestígio científico desse espírito primitivo, deixaram na realidade de servir para o acúmulo diário das observações correspondentes, como o indicaram respectivamente Kepler e Berthollet.

8. O concurso decisivo destes diversos motivos intelectuais seria além disso poderosamente fortalecido, se a natureza deste Tratado me permitisse assinalar aqui suficientemente a influência irresistível das altas necessidades sociais, que apreciei como convinha na obra fundamental mencionada no início deste Discurso. Pode-se assim, desde logo, demonstrar em toda a sua plenitude como o espírito teológico foi por muito tempo indispensável à constante combinação das idéias morais e políticas, ainda mais especialmente do que a de todas as outras, não só em virtude de sua complicação superior, mas também porque os fenômenos correspondentes, primitivamente muito pouco pronunciados, só podiam adquirir um desenvolvimento característico após o avanço muito prolongado da civilização humana. É uma estranha inconseqüência, apenas desculpável pela tendência cegamente crítica do nosso tempo, reconhecer a impossibilidade em que se achavam os antigos de filosofar sobre os assuntos mais simples a não ser de maneira teológica e, não obstante, desconhecer a insuperável necessidade que tinham sobretudo os politeístas de adotar um regime análogo para as especulações sociais Mas é preciso compreender, além disso, ainda que eu não o possa demonstrar aqui, que esta filosofia inicial não foi menos indispensável ao desenvolvimento preliminar de nossa sociabilidade do que ao de nossa inteligência, quer para constituir primitivamente algumas doutrinas comuns, sem as quais o laço social não teria podido adquirir nem extensão, nem consistência quer para suscitar espontaneamente a única autoridade espiritual que poderia então surgir.

II. Estado metafísico ou abstrato

9. Por mais sumárias que tenham sido aqui estas explicações gerais sobre a natureza provisória e o destino preparatório da única filosofia que convinha realmente à infância da Humanidade, elas permitem contudo perceber sem dificuldade que o regime teológico difere muito profundamente, sob todos os aspectos, do que veremos mais adiante corresponder à sua virilidade mental. Para que passagem gradual de um a outro pudesse operar-se originariamente, assim no indivíduo, como na espécie tornou-se indispensável o auxílio crescente de uma espécie de filosofia intermediária essencialmente limitada a este ofício transitório. Tal é a participação especial do espírito metafísico propriamente dito na evolução fundamental da nossa inteligência, que, antipática a toda mudança repentina, pode elevar-se assim, quase insensivelmente, do estado puramente teológico ao francamente positivo, se bem que, no fundo, esta situação equívoca se aproxime muito mais do primeiro do que do último. As especulações dominantes conservaram no estado metafísico o mesmo caráter essencial de tendência ordinária para os conhecimentos absolutos: apenas a solução sofreu nele notável transformação, própria a tornar mais fácil o surto das concepções positivas. Como a Teologia, a Metafísica tenta de fato explicar sobretudo a natureza íntima dos seres, a origem e o destino de todas as coisas, o modo essencial de produção dos fenômenos: mas, em vez de empregar para isso os agentes sobrenaturais propriamente ditos, substitui-os cada vez mais por entidades ou abstrações personificadas, cujo uso, verdadeiramente característico, amiúde permitiu designá-la sob a denominação de Ontologia. É facílimo observar hoje tal maneira de filosofar que, preponderante ainda em relação aos fenômenos mais complicados, oferece freqüentemente, mesmo nas teorias mais simples e menos atrasadas, tantos traços apreciáveis de seu longo domínio.(1) A eficácia histórica destas entidades resulta diretamente do seu caráter equívoco; porque, em cada um desses seres metafísicos, inerentes ao corpo correspondente, sem se confundir com ele, o espírito pode, à vontade, conforme esteja mais próximo ao estado teológico ou do positivo, ver uma verdadeira emanação do poder sobrenatural ou uma simples denominação abstrata da fenômeno considerado. Não é mais então a pura imaginação que domina e não é ainda a verdadeira observação; mas o raciocínio adquire nessa fase grande extensão e prepara-se confusamente para o verdadeiro exercício científico Deve-se aliás notar que sua parte especulativa se acha, a princípio, muito exagerada, em virtude desta obstinada tendência a argumentar em vez de observar que, em todos os gêneros, caracteriza habitualmente o espírito metafísico, mesmo em seus mais eminentes órgãos. Uma ordem de concepções tão flexível, que não comporta absolutamente a consistência por tão longo tempo peculiar ao sistema teológico, deve, além disso, atingir muito mais rapidamente a unidade correspondente, pela subordinação gradual das diversas entidades particulares a uma única entidade geral, a Natureza, destinada a representar o fraco equivalente metafísico da vaga ligação universal dos fenômenos operada pelo monoteísmo.

10. Para compreendermos melhor, sobretudo em nossos dias, a eficácia histórica de semelhante aparelho filosófico, importa reconhecer que, por sua natureza, ele não é suscetível espontaneamente senão de uma simples atividade crítica ou dissolvente, mesmo mental, e com mais forte razão social, sem poder jamais organizar nada que lhe seja próprio. Radicalmente inconseqüente, este espírito equívoco conserva todos os princípios fundamentais do sistema teológico, tirando-lhe, porém, cada vez mais o vigor e a fixidez indispensáveis à sua autoridade efetiva; é nesta alteração que consiste, de fato e a todos os respeitos, sua principal utilidade passageira, que se manifesta quando o regime antigo, por muito tempo progressivo, para o conjunto da evolução humana, atinge inevitavelmente aquele grau de prolongamento abusivo que tende a perpetuar de modo indefinido o estado de infância que ele dirigira antes com tanta felicidade. A Metafísica é, pois, realmente, em essência, apenas uma espécie de teologia enervada pouco e pouco por simplificações dissolventes, que lhe tiram espontaneamente o poder direto de impedir o desenvolvimento das concepções positivas, conservando-lhe, contudo, a aptidão provisória para entreter um certo exercido indispensável do espírito de generalização, até que este possa enfim receber melhor alimento. Em virtude de seu caráter contraditório, o regime metafísico ou ontológico acha-se sempre na inevitável alternativa de tender para uma vã restauração do estado teológico a fim de satisfazer às condições de ordem, ou de impelir a uma situação puramente negativa para escapar ao império opressivo da Teologia. Esta oscilação necessária, que só se observa agora em relação às teorias mais difíceis, existiu igualmente outrora a respeito mesmo das mais simples, enquanto durou sua idade metafísica, em virtude da impotência orgânica sempre peculiar a semelhante maneira de filosofar. Devemos sem temor assegurar que, se a razão pública não a tivesse afastado desde muito tempo, no que concerne a certas noções fundamentais, as dúvidas insensatas que ela suscitou, há vinte séculos, sobre a existência dos corpos exteriores, subsistiriam ainda essencialmente, porque na verdade ela nunca as dissipou por nenhum argumento decisivo. O estado metafísico pode, pois, ser afinal encarado como uma espécie de doença crônica naturalmente peculiar à nossa evolução mental, individual ou coletiva, entre a infância e a virilidade.

11. Não remontando as especulações históricas quase nunca, entre os modernos, além dos tempos politéicos o espírito metafísico deve parecer nelas quase tão antigo como o próprio espírito teológico, pois que ele presidiu necessariamente, ainda que de modo implícito, à transformação primitiva do fetichismo em politeísmo, a fim de substituir desde logo a atividade puramente sobrenatural, a qual, retirada assim de cada corpo particular, devia deixar ai, de modo espontâneo, alguma entidade correspondente. Como, todavia, esta primeira evolução teológica não pôde dar então lugar a nenhuma discussão real, a interferência contínua do espírito ontológico só começou a tornar-se plenamente característica na revolução seguinte, que operou a transformação do politeísmo em monoteísmo, da qual ele foi o órgão natural. Sua influência crescente devia parecer orgânica a princípio, enquanto se achava subordinada ao impulso teológico, mas sua natureza essencialmente dissolvente manifestou-se cada vez mais, quando tentou estender gradualmente a simplificação da Teologia além mesmo do monoteísmo vulgar, que constituía, sem nenhuma dúvida, a fase extrema realmente possível da filosofia inicial. Foi assim que, durante os últimos cinco séculos, o espírito metafísico secundou negativamente o. surto fundamental de nossa civilização moderna, decompondo pouco a pouco o sistema teológico, que se tornara enfim retrógrado ao terminar a Idade Média, em virtude de achar-se essencialmente esgotada a eficácia social do regime monotéico. Infelizmente depois de ter realizado, em cada gênero, esse oficio indispensável, mas passageiro, a ação demasiado prolongada das concepções ontológicas tendeu sempre a impedir igualmente qualquer outra organização real do sistema especulativo; de sorte que o mais perigoso obstáculo à instalação final da genuína filosofia, resulta, com efeito, hoje desse mesmo espírito que ainda se atribui muitas vezes o privilégio quase excluso das meditações filosóficas.

III. Estado positivo ou real
1o.- Seu principal caráter: a lei da subordinação constante da imaginação à observação

12. Esta longa sucessão de preâmbulos necessários conduz enfim nossa inteligência, gradualmente emancipada, ao seu estado definitivo de positividade racional, que deve ser caracterizado aqui de um modo mais especial do que os dois estados preliminares. Tendo tais exercidos preparatórios mostrado espontaneamente a inanidade radical das explicações vagas e arbitrárias próprias à filosofia inicial, quer teológica, quer metafísica, o espírito humano renuncia de ora em diante às pesquisas absolutas, que só convinham à sua infância, e circunscreve os seus esforços ao domínio desde então rapidamente progressivo, da verdadeira observação, única base possível dos conhecimentos realmente acessíveis, criteriosamente adaptados às nossas necessidades efetivas. A lógica especulativa tinha até então consistido em raciocinar, de modo mais ou menos sutil, segundo princípios confusos, que, não comportando nenhuma prova suficiente, suscitavam sempre debates sem resultado. Ela reconhece de ora em diante, como regra fundamental, que toda proposição que não é estritamente redutível à simples enunciação de um fato, particular ou geral, não nos pode oferecer nenhum sentido real e inteligível. Os princípios que ela emprega não passam em si mesmos de verdadeiros fatos, apenas mais gerais e mais abstratos do que aqueles cuja ligação devem formar. Qualquer que seja, aliás, o modo racional ou experimental, de os descobrir, é sempre da sua conformidade, direta ou indireta, com os fenômenos observados que resulta exclusivamente sua eficácia científica. A pura imaginação perde então de modo irrevogável a sua antiga supremacia mental e subordina-se necessariamente à observação, de maneira a constituir um estado lógico plenamente normal, sem deixar contudo de exercer, nas especulações positivas, um papel tão capital como inesgotável, para criar ou aperfeiçoar os meios de ligação, quer definitiva, quer provisória. Em uma palavra, a revolução fundamental que caracteriza o estado viril de nossa inteligência consiste em substituir por toda a parte a inacessível determinação das causas propriamente ditas, pela simples pesquisa das leis, isto é, das relações constantes que existem entre os fenômenos observados. Quer se trate dos menores ou dos mais sublimes efeitos, do choque e da gravidade, quer do pensamento e da moralidade, deles não podemos conhecer realmente senão as diversas ligações mútuas próprias à sua realização, sem nunca penetrar o mistério da sua produção.

2o. – Natureza relativa do espírito positivo

13. Nossas especulações positivas devem não só confinar-se essencialmente, sob todos os aspectos, à apreciação sistemática dos fatos existentes, renunciando a descobrir sua primeira origem e o seu destino final, mas importa também ainda compreender que este estudo dos fenômenos não deve tornar-se de qualquer modo absoluto, mas permanecer sempre relativo à nossa organização e à nossa situação. Reconhecendo sob este duplo aspecto, como são imperfeitos os nossos meios especulativos, vemos que, longe de podermos estudar completamente qualquer existência efetiva, não poderemos sequer garantir a possibilidade de conhecer, mesmo de modo muito superficial, todas as existências reais, das quais a maior parte talvez nos deva escapar totalmente. Se a perda de um sentido importante basta para nos ocultar uma ordem inteira de fenômenos naturais, é perfeitamente razoável pensar-se, reciprocamente, que a aquisição de um novo sentido nos descobriria uma classe de fatos dos quais não temos agora nenhuma idéia, a não ser que acreditemos que a acuidade dos sentidos, tão diferente entre os principais tipos de animalidade, se acha elevada em nosso organismo no mais alto grau que possa exigir a exploração total do mundo exterior, hipótese evidentemente gratuita e quase ridícula. Nenhuma ciência pode manifestar melhor do que a Astronomia a natureza necessariamente relativa de todos os nossos conhecimentos reais, pois não podendo realizar-se nela a investigação dos fenômenos senão através de um único sentido, muito fácil é serem aí apreciadas as conseqüências especulativas de sua supressão ou de sua simples alteração. Nenhuma astronomia poderia existir numa espécie cega, por mais inteligente que a supuséssemos, nem mesmo se somente a atmosfera através da qual observamos os corpos celestes permanecesse sempre e por toda a parte nebulosa. Todo este Tratado há de oferecer-nos freqüentes ocasiões de apreciarmos espontaneamente, da maneira menos equívoca, esta íntima dependência em que o conjunto de nossas condições próprias, tanto interiores, quanto externas, mantém inevitavelmente cada um dos nossos estudos positivos.

14. Para bem caracterizar a natureza necessariamente relativa de todos os nossos conhecimentos reais, importa reconhecer, além disso, do ponto de vista mais filosófico, que, se quaisquer de nossas concepções devem ser consideradas como outros tantos fenômenos humanos, tais fenômenos não são simplesmente individuais, mas também e sobretudo, sociais, pois resultam, com efeito, de uma evolução coletiva e contínua, cujos elementos e fases essencialmente se entrelaçam. Se, pois, sob o primeiro aspecto, reconhecemos que nossas especulações devem depender sempre das diversas condições essenciais de nossa existência individual, cumpre igualmente admitir, sob o segundo, que não se acham menos subordinadas ao conjunto da progressão social de modo a não poderem comportar jamais a fixidez absoluta que os metafísicos supuseram. Ora, a lei geral do movimento fundamental da Humanidade consiste, a este respeito, em que nossas teorias tendem cada vez mais a representar exatamente os objetos exteriores de nossas constantes investigações, sem que, contudo, a verdadeira constituição de cada um deles possa, em caso algum, ser plenamente apreciada, pois a perfeição científica deve restringir-se a aproximar-se desse limite ideal, tanto quanto o exijam nossas diversas necessidades reais. Este segundo gênero de dependência, peculiar às especulações positivas, manifesta-se tão claramente como o primeiro em todo o curso dos estudos astronômicos, quando consideramos, por exemplo, a série de noções cada vez mais satisfatórias, obtidas desde a origem da geometria celeste, sobre a figura da Terra, sobre a forma das órbitas planetárias, etc. Assim, posto que, de um lado, as doutrinas científicas sejam necessariamente de natureza bastante móvel de modo a evitar qualquer pretensão ao absoluto, suas variações graduais não apresentam, por outro lado, nenhum caráter arbitrário que possa motivar um ceticismo ainda mais perigoso. Cada mudança sucessiva conserva, aliás, espontaneamente, nas teorias correspondentes, uma aptidão indefinida para representar os fenômenos que lhes serviram de base, pelo menos enquanto não haja necessidade de nelas ultrapassar o grau primitivo de precisão real.

3o. – Destino das leis positivas: previsão racional

15. Depois que se reconheceu unanimemente que a primeira condição fundamental de toda especulação científica consiste em subordinar constantemente a imaginação à observação, uma viciosa interpretação induziu amiúde a exagerado abuso desse grande princípio lógico, para fazer a ciência real degenerar em uma espécie de acúmulo estéril de fatos incoerentes, sem oferecer essencialmente outro mérito senão o da exatidão parcial. Importa, pois, bem compreender que o genuíno espírito positivo se acha tão afastado, no fundo, do empirismo como do misticismo; é entre estas duas aberrações, igualmente funestas, que ele deve caminhar: a necessidade de semelhante reserva contínua, tão difícil como importante, bastaria, além disso, para verificar, de acordo com as nossas explicações iniciais, quanto a verdadeira positividade deve ser maduramente preparada, e não pode, de forma alguma, convir ao estado nascente da Humanidade. É nas leis dos fenômenos que consiste realmente a ciência, à qual os fatos propriamente ditos, por mais exatos e numerosos que sejam, só fornecem os materiais indispensáveis. Ora, considerando o destino constante dessas leis, podemos dizer, sem nenhum exagero, que a verdadeira ciência, muito longe de ser formada por simples observações, tende sempre a dispensar, tanto quanto possível, a exploração direta, substituindo-a pela previsão racional, que constitui, a todos os respeitos, o principal caráter do espírito positivo, como o conjunto dos estudos astronômicos no-lo mostrará claramente semelhante previsão, conseqüência necessária das relações constantes descobertas entre os fenômenos, jamais permitirá confundir a ciência real com a vã erudição que acumula maquinalmente fatos sem aspirar a deduzi-los uns dos outros. Este grande atributo de todas as nossas sãs especulações importa tanto à sua utilidade efetiva como à sua própria dignidade; porque a exploração direta dos fenômenos ocorridos não seria suficiente para permitir-nos modificar-lhes a realização, se não nos conduzisse a convenientemente prevê-la. Assim, o genuíno espírito positivo consiste em ver para prever, em estudar o que é, a fim de concluir o que será, segundo o dogma geral da invariabilidade das leis naturais. (2)

4o. – Extensão universal do dogma fundamental da invariabilidade das leis naturais.

16. Este princípio fundamental de toda a filosofia positiva, que ainda está longe de ser suficientemente estendido ao conjunto dos fenômenos, vai-se tornando, felizmente, desde três séculos, por tal forma familiar, que, em virtude de hábitos absolutos anteriormente enraizados, se tem quase sempre desconhecido até aqui a sua verdadeira origem, tentando-se pelo emprego de uma vã e confusa argumentação metafísica representá-lo como uma espécie de noção inata, ou pelo menos primitiva, quando certamente resultou de gradual e lenta indução, ao mesmo tempo coletiva e individual. Nenhum motivo racional, independente de qualquer exploração exterior, nos sugere de antemão a invariabilidade das relações físicas; pelo contrário, é incontestável que o espírito humano experimenta, durante sua longa infância, um pendor muito vivo para desconhecê-la, mesmo nos seres onde uma observação imparcial haveria de manifestá-la, se ele não fosse então arrastado por sua tendência necessária a referir todos os acontecimentos, especialmente os mais importantes, a vontades arbitrárias. Existem, sem dúvida, em cada ordem de fenômenos, alguns bastante simples e bastante familiares para que a sua observação espontânea tenha sugerido sempre o sentimento confuso e incoerente de uma certa regularidade secundária de sorte que o ponto de vista teológico não pôde nunca ser rigorosamente universal. Mas esta convicção parcial e precária limita-se por muito tempo aos fenômenos menos numerosos e mais subalternos, que ela não pode mesmo, de nenhum modo, preservar então das freqüentes perturbações atribuídas à interferência preponderante dos agentes sobrenaturais. O princípio da invariabilidade das leis naturais só começou realmente a adquirir certa consistência filosófica quando os primeiros trabalhos verdadeiramente científicos puderam manifestar a sua exatidão essencial relativamente a uma ordem inteira de grandes fenômenos, o que não podia resultar, de maneira satisfatória, senão da fundação da astronomia matemática, durante os últimos séculos do politeísmo. Em virtude desta introdução sistemática, este dogma fundamental tendeu, sem dúvida, a estender-se, por analogia, a fenômenos mais complicados, antes mesmo de poderem suas leis próprias ser de qualquer modo conhecidas. Mas, além da sua esterilidade efetiva, esta vaga antecipação lógica tinha então muito pouca energia para resistir convenientemente à ativa supremacia mental que as ilusões teológico-metafísicas ainda conservavam. Um primeiro esboço especial do estabelecimento das leis naturais em relação a cada ordem principal de fenômenos tornou-se em seguida indispensável para proporcionar a semelhante noção a força inabalável que começa a apresentar nas ciências mais avançadas. Esta convicção não poderia tornar-se mesmo bastante firme, enquanto tal elaboração não fosse de fato estendida a todas as especulações fundamentais, pois a incerteza deixada pelas mais complexas devia afetar, então, mais ou menos, cada uma das outras. Não se pode desconhecer esta tenebrosa reação, mesmo hoje, quando, em virtude da ignorância ainda habitual relativa às leis sociológicas, o princípio da invariabilidade das relações físicas se acha algumas vezes sujeito a graves aliterações até nos estudos puramente matemáticos, nos quais vemos, por exemplo, preconizar-se diariamente um pretenso cálculo das probabilidades, que supõe implicitamente a ausência de toda lei real a respeito de certos acontecimentos, sobretudo quando o homem neles intervém. Mas, quando essa universal extensão se acha convenientemente esboçada, condição agora preenchida pelos espíritos mais avançados, este grande principio filosófico adquire logo uma plenitude decisiva, ainda que as leis efetivas da maior parte dos casos particulares devam ficar sempre ignoradas; porque uma irresistível analogia aplica então previamente a todos os fenômenos de cada ordem o que não foi verificado senão para alguns dentre eles, contanto que tenham uma importância conveniente.

CAPÍTULO II
DESTINO DO ESPÍRITO POSITIVO

17. Depois de haver considerado o espírito positivo relativamente aos objetos exteriores de nossas especulações, cumpre acabar de caracterizá-lo, apreciando também seu destino interior, para a satisfação contínua de nossas próprias necessidades, quer sejam concernentes à vida contemplativa, quer à vida ativa.

I. Constituição completa e estável da harmonia mental, individual e coletiva: sendo tudo referido à Humanidade

18. Ainda que as necessidades puramente mentais sejam, sem dúvida, as menos enérgicas de todas as inerentes à nossa natureza, sua existência direta e permanente é contudo incontestável em todas as inteligências: elas constituem o primeiro estimulo indispensável aos nossos diversos esforços filosóficos, muitas vezes atribuídos especialmente aos impulsos práticos, que, na verdade, os desenvolvem muito, mas não os poderiam fazer surgir Estas exigências intelectuais, relativas, como todas as outras, ao exercício regular das funções correspondentes, reclamam sempre uma feliz combinação de estabilidade e de atividade, de onde resultam as necessidades simultâneas de ordem e de progresso, ou de ligação e extensão. Durante a longa infância da Humanidade, só as concepções teológico-metafísicas podiam, conforme nossas explicações anteriores, satisfazer provisoriamente a esta dupla condição fundamental, ainda que de modo extremamente imperfeito. Mas quando a razão humana se acha bastante amadurecida para renunciar francamente às especulações inacessíveis e circunscrever com sabedoria sua atividade ao domínio verdadeiramente apreciável por nossas faculdades, a filosofia positiva proporciona-lhe, por certo, uma satisfação muito mais completa, a todos os respeitos, e também mais real, destas duas necessidades elementares. Tal é evidentemente, com efeito, sob este novo aspecto, o destino direto das leis que ela descobre sobre os diversos fenômenos e da previsão racional delas inseparável. Em relação a cada ordem de fenômenos, tais leis devem, a este respeito, ser distinguidas em duas modalidades, conforme ligam por semelhança os que coexistem, ou por filiação os que se sucedem. Esta indispensável distinção corresponde essencialmente, para o mundo exterior, à, que ele sempre nos oferece espontaneamente entre os dois estados correlatos de existência e de movimento; donde resulta, em toda ciência real, uma diferença fundamental entre a apreciação estática e a apreciação dinâmica de qualquer assunto. Os dois gêneros de relações contribuem igualmente para explicar os fenômenos, e conduzem de modo semelhante a prevê-los, ainda que às leis de harmonia pareçam a princípio destinadas sobretudo à explicação e as leis de sucessão à previsão. Quer se trate, com efeito, de explicar ou de prever, tudo se reduz sempre a ligar: toda ligação real, estática ou dinâmica, descoberta entre dois fenômenos quaisquer, permite ao mesmo tempo explicá-las e prever um pelo outro, porque a previsão científica, convém evidentemente ao presente, e mesmo ao passado, assim como ao futuro, pois consiste sempre em conhecer um fato independentemente de sua exploração direta, em virtude de suas relações com outros já conhecidos. Assim, por exemplo, a assimilação demonstrada, entre a gravitação celeste e a gravidade terrestre conduziu, em virtude das variações pronunciadas da primeira, a prever as fracas variações da segunda, que a observação imediata não podia descobrir suficientemente, ainda que as tenha em seguida confirmado; assim também em sentido inverso, a correspondência observada antigamente entre o período elementar das marés e o dia lunar ficou explicada logo que se reconheceu ser em cada ponto a elevação das águas resultante da passagem da lua pelo meridiano local. As nossas verdadeiras necessidades lógicas convergem, pois, essencialmente para este comum destino: consolidar, tanto quanto possível, por nossas especulações sistemáticas, a unidade espontânea do nosso entendimento, estabelecendo a continuidade e a homogeneidade de nossas diversas concepções e fazendo-nos achar de novo a constância no meio da variedade, de modo a satisfazer igualmente às exigências simultâneas da ordem e do progresso. Ora, é evidente que, sob este aspecto fundamental, a filosofia positiva possui necessariamente, para os espíritos bem preparados, uma aptidão muito superior à que jamais pôde oferecer a filosofia teológico-metafísica. Considerando esta mesmo nos tempos do seu maior ascendente, tanto mental como social, isto é, no estado politéico, a unidade intelectual achava-se então certamente constituída de maneira muito menos completa e menos estável do que há de permitir em breve a universal preponderância do espírito positivo, quando for habitualmente estendido às mais eminentes especulações. Então, com efeito, reinará por toda a parte, sob diversos modos e em diferentes graus, esta admirável constituição lógica, da qual só os estudos mais simples nos podem dar hoje justa idéia, em que a ligação e a extensão, ambas plenamente garantidas, se acham, ademais, espontaneamente solidárias. Este grande resultado filosófico não exige, aliás, outra condição necessária a não ser a obrigação permanente de restringir todas as nossas especulações aos casos verdadeiramente acessíveis, considerando estas relações reais, quer de semelhança, quer de sucessão, como capazes apenas de constituir, para nós simples fatos gerais, que cumpre procurar reduzir ao menor número possível, sem que o mistério de sua produção jamais possa ser penetrado de modo algum, conforme o caráter fundamental do espírito positivo. Mas se somente esta constância efetiva das ligações naturais é, na realidade, apreciável por nós, também só ela basta plenamente às nossas verdadeiras necessidades, quer de contemplação, quer de direção.

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