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sábado, dezembro 14, 2024

INDUSTRIAS CRIATIVAS E A VIRADA CULTURAL

Autor: Pedro F. Bendassolli e Thomaz Wood Jr.

Resumo
As indústrias criativas apresentam-se hoje como um novo e promissor campo econômico. Seu potencial de crescimento, sua contribuição na geração de renda dos países e na composição do emprego vêm sendo atestados em diversos estudos, governamentais e acadêmicos, ao redor do mundo nestas últimas décadas. As indústrias criativas referem-se à convergência de três campos anteriormente mantidos separados: as artes, as indústrias culturais e as novas tecnologias digitais de informação. Estima-se que tais indústrias tenham agregado à economia mundial um valor de aproximadamente US$ 2,2 trilhões, tomando o ano de 1999 como referência. Isso implica em uma participação de 7,5% do PIB mundial. E a estimativa futura de crescimento deste setor é de 10% ao ano. No Brasil, embora não haja estudos consolidados sobre o tema, estima-se que tais indústrias respondam por algo em torno de 1% do PIB.

Palavras-chaves: industrias criativas, industrias culturais, ….

INTRODUÇÃO
Em agosto de 2004, reunidos na Cidade do México, ministros e outras autoridades da área da cultura redigiram a “Declaração do México” (referência?). Com o selo da Organização dos Estados Americanos, o documento afirma que a cultura pode constituir força na reversão do crônico processo de exclusão e marginalização social na América Latina. O documento traz ainda referências ao papel-chave que a cultura desempenha no desenvolvimento econômico e na consolidação dos recursos culturais das Américas. Além disso, afirma que os governos devem estimular, apoiar e fomentar o desenvolvimento das indústrias culturais e criativas, na medida em que elas “constituem um dos setores mais dinâmicos de nossas economias e são geradoras de emprego e riqueza, além de abrirem espaços fundamentais para a construção e transformação das identidades culturais e disporem de enorme potencial para consolidar a comunidade cultural das Américas” (p. 3). Os Ministros da Cultura estabelecem também, como prioridade, a criação de indicadores que nos possibilitem “avaliar o impacto social e econômico da atividade cultural e vincular com maior força as políticas culturais às políticas econômicas, comerciais, sociais e fiscais” (p. 2).
A incidência de observações sobre cultura, como essas da Declaração do México, somam-se no sentido mais geral de garantir-lhe destaque como tema central de discussão no âmbito governamental, social e, agora, econômico.

Mutação do conceito: de indústrias culturais a indústrias criativas
A cultura é um termo que, na história das idéias e das ciências humanas e sociais, presta-se a inúmeras interpretações e uso. De acordo com a perspectiva iluminista do século dezoito, por exemplo, cultura surge ligada ao cultivo do espírito, das artes, letras e ciências. Já na passagem do século dezenove para o vinte, surge o conceito (antropológico) de cultura, que a reconhece como sendo o estudo do modo de vida de uma determinada comunidade. Aqui são importantes elementos como valores, crenças, rituais e símbolos. A cultura, de acordo com Robert Williams, importante precursor dos estudos culturais, também se presta a outros sentidos e apropriações, como de um tipo de “documento” pelo qual pensamento e experiência humanos são guardados e repassados às gerações; como hábito mental e individual; como conjunto das artes (tradição); estrutura de sentimento; e como produção coletiva de significados.
Mas as fronteiras da cultura parecem mover-se indefinidamente; em particular, a cultura tornou-se, a partir da industrialização e da dominância do vocabulário econômico na descrição de nossas sociedades (ou “economias”), um tipo de recurso ao qual é possível associar indicadores de desempenho, lucratividade e crescimento. Os teóricos da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer, foram os pioneiros em captar essa nova sensibilidade industrial endereçada à cultura, sensibilidade à qual batizaram de indústrias culturais.
Mais recentemente, porém, com a emergência de novas retóricas e com mutações nas relações sócio-econômicas, sobretudo dos países desenvolvidos, como “nova economia”, “economia do conhecimento”, “sociedade em rede” e “sociedade da informação”, a cultura parece estar sendo re-apropriada mediante sua conversão em “código”, “informação”, mediante sua característica “imaterial”. Especialmente no bojo da chamada “economia da criatividade”, a cultura aparece em uma nova fronteira: cultura é produção individual e coletiva de significados – o termo que, ao que parece, está rebatizando a nova sensibilidade em relação à cultura é o de indústrias criativas.
O termo surgiu no âmbito de reavaliações e redefinições da relação do Governo (notadamente do governo britânico próximo ao final da década de 1990) com o universo da cultura. Refletindo determinadas políticas culturais e a captação dos impactos das chamadas tecnologias da informação, a expectativa agora é associar cultura a processos denominados de “criativos”. A criatividade, em sentido amplo, pode ser definida como a capacidade, detida por indivíduos ou grupos, de manipular símbolos e significados com o intuito de gerar algo inovador. Transposta ao campo da cultura, a criatividade chama a atenção para processos de produção de bens que captem ou utilizem o cabedal de recursos da localidade em que o indivíduo está inserido. Mais importante, a criatividade é tratada como uma nova espécie de “insumo produtivo”, cujo resultado final se materializa na forma de propriedade intelectual – e esta, naturalmente, em valor econômico.
Quase dez anos após seu lançamento, o conceito de Indústrias Criativas é hoje tema de interesse de um público mais amplo, entre eles acadêmicos e agentes envolvidos com questões de cultura. Por emergir no contexto de uma retórica pretensamente pós-moderna, que enfatiza relações e circulação de informações em uma perspectiva próxima à idealista (todos têm acesso à informação; a criatividade é algo “acessível” a todos etc.), ela própria sujeita a diversas críticas e fragilidades, as indústrias criativas já nascem como um tema polêmico.

Objetivos e estrutura
De que forma elas podem, ao mesmo tempo, captar recursos individuais, criativos, apropriar-se de recursos culturais, e transformá-los em valor econômico? Quais seus contornos, enquadres e limitações? Como o Brasil se situa neste contexto?
Este ensaio trata das indústrias criativas. Nosso propósito é, a partir de uma definição destas indústrias, entender como podem contribuir de fato com a geração de valor econômico.
Neste ensaio, nosso objetivo é apresentar e discutir, sumariamente, o conceito de indústrias criativas. Para tanto, vamos dividir esta seção em quatro partes: na primeira, trataremos da emergência do termo IC; na segunda, descrevemos as principais definições presentes na literatura acerca dessas indústrias, bem como alguns pontos críticos que julgamos o conceito levantar; na terceira, descrevemos algumas das principais características econômicas e institucionais das IC; e na quarta e última parte fazemos um balanço crítico dessas indústrias à luz de uma discussão sobre a problemática da apropriação mercadológica da cultura e de sua utilização ideológica em países em desenvolvimento como o Brasil, colocando em perspectiva suas potencialidades e definindo os limites de sua manipulação como objeto de estudo.

PANORAMA GERAL NO MUNDO E NO BRASIL
Indústrias criativas no mundo
Estima-se que, globalmente, as indústrias criativas tenham gerado, em 1999, uma receita ao redor de US $ 2,2 trilhões, respondendo por 7,5% do PIB mundial (Howkins, 2001, p. 116). Nos Estados Unidos, há uma estimativa de que, em 2001, tais indústrias tenham contribuído com 7,75% do PIB do país, por 5,9% do número nacional de empregos, e por US $ 88,97 bilhões em exportações (Mitchell et al., 2003, p. 20). Em cidades de vanguarda, como Londres, as indústrias criativas agora despontam como um setor econômico-chave, com mais de meio milhão de londrinos nelas diretamente trabalhando ou em ocupações em indústrias correlatas (London: cultural capital, 2003). Ainda no Reino Unido, vistas em conjunto, as indústrias criativas são responsáveis por £112.5 bilhões das riquezas do país, ou seja, 5% do PIB, e por empregar 1,3 milhões de pessoas. Em exportação, contribuem com £ 10,3 bilhões da balança comercial.
No biênio 1997-8, o crescimento deste setor, no Reino Unido, foi de 16%, contra 6% do restante da economia daquele país (Howkins, 2005; Landry, 2005; Creative industries mapping document, 1998; 2001). Nesta mesma linha, de acordo com uma estimativa da consultoria Price Waterhouse Coopers (apud ONU, 2005), as indústrias criativas têm um potencial de crescimento próximo a 10% ano, um valor superior aos 2% de crescimento médio do produto interno bruto observados nos últimos dez anos entre os países desenvolvidos (UNCTAD, 2005).
A preocupação dos diversos governos sensíveis a estas indústrias, entre eles os do Reino Unido, Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Hong Kong, Taiwan, Coréia e Singapura, direciona-se no sentido do aproveitamento dos potenciais das indústrias criativas para o desenvolvimento de suas cidades. Isso aconteceria de duas formas principais: por meio do desenvolvimento de estratégia de regeneração, como quando uma cidade perde uma indústria pesada; ou por estratégias generativas, quando, ao inverso, uma cidade nunca teve uma malha fabril forte. No entanto, as experiências que existem em relação ao desenvolvimento de cidades por meio da exploração de indústrias criativas, conforme menciona Flew (2005), são ainda pouco conclusivas. Mesmo assim, há pesquisadores que destacam também que as indústrias criativas podem contribuir para políticas de inclusão e desenvolvimento social, sobretudo em sua contribuição com a formação e educação dos indivíduos envolvidos (Banks, 1999; Hesmondhalgh, 2002) em espaços nas chamadas cidades criativas (Tay, 2005).

Indústrias criativas no Brasil
Voltando agora para o cenário nacional, podemos observar que os (poucos) dados seguem uma tendência discretamente distinta da dos indicadores apresentados anteriormente em relação a outros países. Os dados de que dispomos são oriundos de uma pesquisa que o Ministério da Cultura (MinC, 2005) encomendou recentemente à Fundação João Pinheiro para diagnosticar os principais indicadores da economia cultural do país.
Os resultados dessa pesquisa revelam que a produção cultural brasileira movimentou, em 1997, cerca de R$ 6,5 bilhões, o que corresponde a, aproximadamente, 1% do PIB brasileiro. Além disso, continua o relatório do MinC, para cada milhão de reais gasto em cultura, o país gerou 160 postos de trabalhos, diretos e indiretos. Neste ponto o relatório reconhece uma espécie de “dimensão oculta” na política brasileira em relação ao setor, que não consegue capitalizar (ou ao menos não conseguia) o potencial de geração de empregos contido nesta área.
Ainda com respeito a empregos, em 1994 havia 510 mil pessoas empregadas na produção cultural no país (MinC, 2005). Destas, 76,7% estavam no setor privado do mercado cultural, 13,6% como autônomos e 9,7% na administração pública. Este número de empregos é 90% maior do que o observado em setores como o de fabricação de equipamentos e material elétrico e eletrônico; 53% superior ao da indústria automobilística – quase um “ícone nacional” do emprego – e 78% maior do que o empregado em empresas ligadas a serviços de utilidade pública.
Outro dado que chama a atenção refere-se a quem investe em cultura no país. De acordo com a pesquisa do MinC, entre 1985 e 1995, a despesa total com cultura do Estado brasileiro, envolvendo todos os níveis de governo, alcançou a média de R$ 725 milhões/ano. De uma amostra de 111 empresas, representativas do universo de grandes empresas que investem em cultura no país, analisadas no período de 1990 a 1997, 53% optaram pelo marketing cultural como meio preferencial de ação de comunicação, totalizando R$ 604 milhões, em grande medida impulsionadas pelas leis de incentivo à cultura criadas no âmbito do governo federal (por exemplo, Lei Rouanet).
No cenário local merece igualmente destaque uma ação recente e notoriamente importante do Ministério da Cultura em parceria com a United Conference on Trade and Development (UNCTAD), da ONU. Trata-se da realização do primeiro Fórum Internacional das Indústrias Criativas, em Salvador, BA, em abril de 2005. O evento, que contou com a presença de ministros da educação de diversos países, perseguiu dois grandes objetivos. Primeiro, discutir o potencial econômico, os desafios e as expectativas para o desenvolvimento do país e de outros países por meio da exploração das indústrias criativas. Em segundo, discutir os aspectos institucionais para o estabelecimento de um Centro Internacional sobre Indústrias Criativas, com sede no Brasil.
O centro, que deverá estar em funcionamento ainda em 2006, terá como missão servir como um banco de conhecimento de políticas nacionais, regionais e internacionais sobre indústrias criativas, além de reunir e fomentar iniciativas bem-sucedidas neste setor, contribuindo, assim, para o aumento da riqueza do país e para a geração de empregos. O Centro estará também concernido com o desenvolvimento de parcerias internacionais entre empresas, artistas e governos com o intuito de incrementar o crescimento das indústrias criativas nos mais diversos países (ONU, 2005).

ANTECEDENTES
Nessa seção, mostraremos o termo industria criativa como reflexo, produto e retórica da época. É no seio de uma revalorização da “criatividade” e da “cultura” em seus desdobramentos econômicos que emerge o conceito de IC…. Inicialmente … em seguida, faremos uma síntese das principais definições encontradas na literatura especializada sobre o que significam tais indústrias.

Virada cultural e nova retórica pós-moderna
A definição de indústrias criativas (IC), na literatura especializada dos últimos dez anos, pode ser compreendida à luz de uma discussão sobre os termos que entraram no debate sobre a “mutação de valores”, de ordem social e econômica, das sociedades ditas pós-industriais ou pós-modernas. No centro desse debate encontramos uma espécie de virada cultural (Bonnell & Hunt, 1999) pela qual novas relações econômicas são produzidas a partir de uma nova investida sobre a cultura. Vejamos os principais elementos do referido debate.
Um primeiro elemento é a insistência no fato de as sociedades de capitalismo avançado estarem hoje orientadas pelo que Inglehart (1999) denominou de valores pós-materialistas. Na classificação do autor, uma sociedade materialista gira em torno da satisfação de necessidades básicas e elementares, como o bem-estar econômico e a coesão social. Já os membros de uma sociedade pós-materialista interessam-se sobretudo pelo atendimento de necessidades de ordem estética, intelectual, de qualidade de vida e de envolvimento em processos de tomada de decisão autônomos no trabalho e no próprio sistema político.
Outro termo que avançou entre intelectuais e agentes econômicos a partir do início da década de 1990 é o de economia do conhecimento ou sociedade da informação (Castells, 2000), mas cujas raízes conceituais remontam às idéias de Bell (1976a; 1976b). Como no caso anterior, trata-se de uma distinção entre uma economia antiga, baseada no uso extensivo de capital e trabalho e orientada pela produção em escala de massa e sob a égide da administração científica, e uma “nova economia”. Nesta nova economia o capital torna-se “intelectual”, focando-se na pessoa e em seus recursos intelectuais, bem como na capacidade de formação de redes sociais nas quais há interação, troca e circulação de conhecimentos (intelectuais, lingüísticos, cognitivos etc.). Do ponto de vista prático, essa nova forma de descrever as sociedades e sua economia dependeram da abertura dos mercados nacionais, da crescente e sofisticada utilização de tecnologias da informação e de mutações significativas nos padrões de consumo da população.
Recentemente, a “economia da informação” vem sendo debatida à luz de um suposto novo vocabulário, a saber, o da “economia criativa”. Autores como Howkins (2001) foram decisivos nessa mudança semântica. Para ele, não é mais suficiente falar em “economia do conhecimento”, ou “economia da informação”. Howkins menciona que hoje “precisamos ser originais, céticos, argumentativos … criativos”. A propósito dessa mutação nos termos usados para descrever (nem sempre) novas dinâmicas sociais, Gay (2005) menciona tratar-se de um “discurso de época”, no qual a palavra de ordem é mudança, ruptura com os valores “antigos”, inovação e, para ficar com a mais “recente tendência”, criatividade.
Somando-se a esse discurso de época, outros autores a quem podemos considerar como precursores e representantes ideológicos das IC são Leadbeater (1999) e Florida (2002). Eles exploram as grandes transformações de nossa época em matéria de valores, preferências pessoais, estilos de vida e de trabalho, bem como de consumo. Para eles, vivemos em uma época na qual as pessoas parecem estar se desprendendo de antigas preocupações tais como salário pelo salário, consumo padronizado, trabalho duro e ao longo de toda a vida, submissão e resignação dando lugar a uma época na qual cada um deseja ser o dono integral pela própria vida.
Um outro aspecto importante da retórica de base das IC é a passagem de uma sociedade industrial, fordista, para a pós-industrial ou pós-fordista. Nesta passagem, conforme destacam Negri e Lazzarato (2001), o valor social e econômico atribuído à produção de bens e serviços sofre importante alteração. De acordo com esses autores, a produção é hoje uma produção de relação social, e a subjetividade, e tudo que lhe diz respeito, por exemplo a criatividade e as relações interpessoais, assume um papel de elevado destaque pois se torna diretamente produtiva ao ser imbricada na criação do produto e do próprio ato de consumo.
O processo de comunicação social envolvido nessa criação de valor econômico torna-se produtivo porque ele, como dizem Neri e Lazzarato, “produz” a produção. Assim, “aquilo que é ‘produtivo’ é o conjunto das relações sociais, e o processo de produção da comunicação tende a se tornar imediatamente um processo de valorização. Mas como se forma o processo da comunicação social? Como, nesse processo, se forma a subjetividade e esta subjetividade se torna produção e um valor econômico? A hipótese sustentada por Neri e Lazzarato é que a comunicação é hoje eminentemente um processo de valorização.
Enquanto no passado a comunicação era organizada primariamente por meio da linguagem, sem intermédio de formas tecnológicas, hoje ela é inteiramente investida pela produção industrial, e “é reproduzida por meio de formas tecnológicas específicas (tecnologia de reprodução do saber, do pensamento, da imagem, do som, da linguagem) e por meio de formas de organização e de management que são portadoras de um novo modo de produção” (Negri & Lazzarato, 2001, p. 48). Esse “novo modo de produção” é representado pelo que os autores chamam de “trabalho imaterial” e pelos novos “trabalhadores imateriais”, como aqueles ligados à publicidade, propaganda, ou àqueles que, direta ou indiretamente, oferecem materiais e “produtos” simbólicos, estéticos, com conteúdo reflexivo e relacional. Defendem esses mesmos autores que a insistência sobre a criatividade nos discursos ideológicos da “nova economia” realça um outro modo de capitalização econômica da subjetividade, do indivíduo e da cultura.

DEFINIÇÃO DE INDÚSTRIAS CRIATIVAS
Evolução histórica recente
O conceito de indústrias criativas foi pela primeira vez utilizado no âmbito político-governamental e não no acadêmico e empresarial. O conceito surge inicialmente na Austrália no início década de 1990, mas é com o impulso dado pelo governo inglês de Tony Blair que ele se populariza. De fato, o caso inglês é usado como referência mundial devido a seu pioneirismo e à integração do tema das IC na agenda política.
Tony Blair criou uma unidade inteiramente focada no estudo de políticas públicas para as IC da Inglaterra. Recentemente, seu governo criou um Ministério das Indústrias Criativas. A Inglaterra possui hoje um mapeamento relativamente detalhado dessas indústrias no país, sobretudo em termos de suas cadeias de valor, participação na geração de empregos e do PIB (Creative industries mapping document, 1998; 2001).
Para alguns analistas (e.g. O’Connor, 2006), o interesse pela popularização do termo IC ocorre fora do âmbito acadêmico porque neste as discussões têm polarizado em torno do conceito de Adorno e Horkheimer sobre indústrias culturais. Ou seja, com raras exceções, a produção acadêmica foca nas implicações sociais e culturais do consumo de massa e da comoditização da cultura. Para O’Connor, são as agências envolvidas com artes que têm, junto com alguns governos nacionais, popularizado o termo.
Para esse autor, isso possui aspectos positivos e negativos. Como não existe um consenso sobre quais são exatamente as fronteiras dessas indústrias, e considerando que o próprio termo “indústria” é empregado em sentido amplo no contexto inglês, elas podem ser usadas para as mais diversas finalidades – desde propagandas governamentais, como a do Governo Blair ao enfatizar o impacto dessas indústrias sobre a geração de emprego no contexto de uma economia estagnada como a européia (Jaguaribe, 2006), até justificativas para o embasamento de planos de ação para novas políticas.
Ainda no que se refere aos aspectos negativos, O’Connor menciona que o termo indústrias culturais foi usado, ao longo da década de 1980 na Inglaterra, como um apoio ideológico das agências de arte e das agências culturais das várias cidades inglesas para fortificar suas defesas contra os cortes financeiros e ataques ideológicos perpetrados pelo governo conservador. Só recentemente o termo foi substituído pelo de indústrias criativas. Em sua opinião, isso teve o efeito de arrefecer os problemas de definição terminológica e de dificultar as negociações entre políticas econômicas, de um lado, e políticas culturais, de outro.
No caso inglês, a responsabilidade por esse rebatizado semântico foi o Departamento de Cultura, Mídia e Esporte – que retomou a distinção original do Great London Conciul, do início da década de 1980, entre indústrias culturais como “artisticamente-centradas” e as indústrias criativas como aquelas baseadas em reprodução tecnológica e direcionada para o mercado de massa. Isso se deve a uma dificuldade intrínseca na popularização do termo “cultura”, ao passo que o de “criatividade” obtém uma mais ampla aceitação, o que, segundo ele, aponta para uma agenda orientada, predominantemente, por valores econômicos (geração de emprego e geração de PIB).
Em acréscimo, a palavra “criatividade” parece fazer eco a uma nova descrição semântica mais ampla: a da “economia criativa”. Contudo, a despeito das variações semânticas, subjaz à retórica da criatividade uma preocupação econômica central: a transformação de símbolos e significados (talvez o núcleo mesmo da cultura), em propriedade intelectual – portanto, em dinheiro. Propaganda, consumo, novos discursos e políticas públicas e novas pressões sobre os indivíduos são alguns dos aspectos implícitos na ascensão do termo criatividade como uma “indústria”.
No Brasil, o Ministério da Cultura define “economia criativa” e IC (MinC, 2006: s/p) da seguinte forma:
Como parte de um novo conceito mundial, a Economia Criativa é aquela que, independente de ter finalidade cultural, inclui a cultura, a criatividade e o conhecimento em seu processo de produção. Fazem parte da Economia Criativa, por exemplo, o artesanato, as publicações, a moda, a música, o audiovisual, o design, a web, o software, a fotografia, as indústrias do lazer e entretenimento e as indústrias culturais, entre outras.

Conceito estrito de indústria criativa
O fato de as IC não disporem, ao menos até o momento, de uma definição formal na literatura não significa que não existam tentativas de sistematização e de descrição. Uma definição ampla de IC é a que imbrica as indústrias culturais clássicas e as artes criativas em um novo regime de associação com as tecnologias de informação (Caves, 2000; Hesmondhalgh, 2002; Howkins, 2005; Jaguaribe, 2006; Jeffcutt, 2000; Jeffcutt; Pick; & Protherough, 2000; Hartley, 2005; NOIE, 2002; O’Connor, 2006). Hartley (2005), por exemplo, apresenta a seguinte síntese:
“A idéia de indústrias criativas busca descrever a convergência conceitual e prática das artes criativas (talento individual) com as indústrias culturais (escala de massa), no contexto de novas tecnologias midiáticas (TIs) e no escopo de uma nova economia do conhecimento, tendo em vista seu uso por parte de novos consumidores-cidadãos interativos (p. 5).”
Em uma definição mais extensa, mas que julgamos sugestivo citar na íntegra dada a quantidade de pontos conceituais abordados, Jaguaribe (2006: s/p) observa que as IC:
“… produzem bens e serviços que utilizam imagens, textos e símbolos como meio. São indústrias guiadas por um regime de propriedade intelectual e que, na verdade, empurram a fronteira tecnológica das novas tecnologias da informação. Em geral, existe uma espécie de acordo que as indústrias criativas têm um coregroup, um coração, que seria composto de música, audiovisual, multimídia, software, broadcasting e todos os processos de editoria em geral. No entanto, a coisa curiosa é que a fronteira das indústrias criativas não é nítida. As pessoas utilizam o termo como sinônimo de indústrias de conteúdo, mas o que se vê cada vez mais é que a grande gama de processos, produtos e serviços que são baseados na criatividade, mas que têm as suas origens em coisas muito mais tradicionais, como o craft, folclore ou artesanato, estão cada vez mais utilizando tecnologias de management, de informática para se transformarem em bens, produtos e serviços de grande distribuição. Então, de uma certa forma, você tem esse grupo central destas indústrias criativas em uma fronteira móvel e que cada vez mais é permeável por coisas que antes eram atividades secundárias, mas que se transformam para entrar neste circuito de bens e serviços novos.”
Desse modo, as IC englobam, de um lado, a indústria da música, produção de software, audiovisual, multimídia, broadcasting e todos os processos de editoria em geral à escala de massa – considerados o “core” das IC; de outro, todas as atividades tradicionalmente classificadas como “arte” – artes visuais, craft, folclore, teatro, música teatral, concerto e representações, literatura, museus e galerias. Em um caso como no outro, as IC lidam antes de tudo com bens simbólicos ou “imateriais”: imagens, textos, símbolos, cujo valor econômico deriva, primariamente, de seu valor cultural (no escopo de uma “economia de criatividade”) dentro de um circuito de consumo e de relações público-privado específicos.
Adicionalmente, as IC teriam, como diferença em relação às Indústrias Culturais tradicionais o fato de estarem mais focadas na produção e não em outros aspectos da cadeia como distribuição e acesso. Seu foco prioritário, ao que parece em uma revisão da literatura, é sobre a geração de Propriedade Intelectual. Podemos ilustrar este ponto mediante a definição “oficial” do Departamento de Cultura, Mídia e Esporte do Governo Britânico, sobre o que são IC. Lemos no Creative industries mapping document (2005) que as IC constituem de “atividades que têm a sua origem na criatividade, competências e talento individual, com potencial para a criação de trabalho e riqueza através da geração e exploração de propriedade intelectual”. No mesmo documento, ainda lemos que “As indústrias criativas têm por base indivíduos com capacidades criativas e artísticas, em aliança com gestores e profissionais da área tecnológica, que fazem produtos vendáveis e cujo valor econômico reside nas suas propriedades culturais (ou intelectuais)”.
Essas definições amplas de IC definem a essência mesma do fenômeno das IC. Esquematicamente, são quatro os pontos que gostaríamos de discutir: primeiro, um (novo?) encaminhamento para a questão da sobreposição de fronteiras entre arte/cultura e mercado e das formas de produção de valor econômico; segundo, a “capilarização” ou “descentralização” da cultura, processo que ocorre mediante a disseminação de novas tecnologias de informação; terceiro, uma nova ênfase sobre processos “subjetivos” ou “qualitativos”, nos quais encontramos a questão do talento individual, da criatividade, do capital social ou capital intelectual; e quarto, uma redefinição do papel do “consumidor” na cadeia de valor do produto cultural e redefinição do circuito do consumo.

Cultura, mercado e valor econômico
O conceito de IC traz consigo uma maneira peculiar de tratar a essência do substrato cultural. Jaguaribe (2006) comenta que o aspecto decisivo na questão das IC é uma nova forma de produzir e circular os bens simbólicos, uma forma “de fazer cultura cotidianamente”. Cultura é definida por essa autora menos como um “depositário de símbolos nacionais ou de tradição”, em definição clássica da Unesco (referência), e mais como um “conjunto de símbolos em movimentação”, em permanente processo de inovação pelos atores sociais em sua própria raiz.
Essa é uma definição que se aproxima muito da análise da relação cultura-economia desenvolvida por Lash e Urry (1994), autores emblemáticos nessa forma de abordar a cultura em uma “economia da informação”. Para Lash e Urry, em tal tipo de economia são criadas, e colocas em ampla circulação e movimentação, imagens, metáforas, bens simbólicos que atendem a desejos estéticos, de consumo, e de “gosto” que por sua vez revertem em valor econômico. São as “economias de signo e espaço”.
Adicionalmente, há também um pressuposto implícito nas discussões sobre IC, conforme destaca Hartley (2005), de que a arte é uma propriedade pública focada em questões de cidadania e liberdade, ao passo que “arte-como-negócio” é de domínio privado, algo orientado ao consumo e à satisfação de necessidades específicas dos consumidores. Essa mesma divisão, ao cair no campo das políticas públicas, ajuda na orientação de quais atividades financiar com recursos públicos e quais deixar à iniciativa privada.
Na base dessa distinção reside também a idéia de que a arte, no sentido de arte tradicional, não deve ser regida pura e simplesmente pela lógica de mercado – primeiro, porque há uma característica intrinsecamente insuficiente no mercado da cultura (como veremos mais à frente) e, segundo, porque a cultura, definida neste sentido amplo de arte, visa a um objetivo maior do que a satisfação de necessidades prioritariamente pecuniárias: daí o argumento favorável à intervenção do Estado e à regulação de acesso a determinados bens culturais, notadamente em vistas da garantia do interesse geral (Sebastián, 1999). Cremos que, no limite, é uma revisão mesma do conceito de cultura que deve ser levada a cabo para uma melhor compreensão de quais demandas/expectativas ou ideologias gerenciais são hoje a ela associadas (Eagleton, 2005; Hall, 1997).

Cultura e novas tecnologias
As IC parecem pressupor um tipo de “descentralização” da cultura na medida em que pequenos produtores ou criadores culturais (pequenas empresas ou mesmo pequenas comunidades de produtores) podem ter uma maior facilidade para disponibilizar suas obras. Do ponto de vista dos grandes conglomerados das indústrias culturais clássicas, esses pequenos produtores independentes teriam de enfrentar dificuldades imensas para a visibilização de seus produtos, já que aquelas indústrias norteiam-se, primordialmente, pelo retorno comercial esperado – de modo que não promovem “qualquer artista”.
Com as novas tecnologias de informação (sobretudo de distribuição digital), ainda que não possamos negar a tendência à formação de oligopólios do setor criativo (veja-se, por exemplo, o caso da Rede Globo, no Brasil, e de Holywood, no caso norte-americano), podemos considerar a possibilidade de existirem brechas aos produtores independentes e às experiências culturais “locais e cotidianas” (Jaguaribe, 2006). Naturalmente, não podemos deixar de registrar que o acesso às ditas tecnologias de informação, no Brasil, ainda é deficiente, fato observado não só pelo nível educacional geral da população quanto por problemas básicos de infra-estrutura. Essas são claramente limitações importantes no tipo de uso da tecnologia pelos setores criativos no país, para não mencionar as dificuldades conhecidas que enfrentam nossas pequenas e médias empresas.
Adicionalmente, um bom exemplo do modo como as novas tecnologias de informação vêm contribuindo o fenômeno das IC pode ser observado na área de produção de softwares. Conforme destaca Flew (2005), “o desenvolvimento de novas formas de software de computador envolve criatividade em sua produção, gera novas formas de propriedade intelectual e transporta significado simbólico aos usuários. Há uma grande parcela de criatividade incorporada no código de computador, e os programas de computador são, em geral, tanto um insumo quanto um resultado de artistas – pensando no trabalho artístico em um sentido amplo” (p. 345). O movimento denominado de free software (veja http://www.fsf.org), no qual o Brasil acumula algum avanço, é outra excelente evidência de uma possível descentralização na base do processo produtivo criativo, propiciada pelo uso de novas tecnologias.

Criatividade e individualidade
Como afirmamos anteriormente, a criatividade talvez seja o elemento central que define as IC por comparação às indústrias culturais clássicas. O background conceitual que ajuda a compreender o porquê de essa característica individual ter emergido para um plano elevado tem a ver com a concomitante mutação no modo de conceber a vida econômica e social na atualidade. De acordo com essa mutação, aspectos envolvidos com a dimensão simbólica, cognitiva, imagética e imaterial das experiências humanas passam a ser capitalizados mediante nova roupagem econômica, ao mesmo tempo em que isso representa novo processo de construção da subjetividade, dos estilos de vida e das identidades individuais (Thrift, 1999).
Mas o que significa criatividade? O fato de as IC terem, como matéria-prima básica, essa, por assim dizer, competência da alma, competência intuitiva, sensível, isso significa que os outros ramos industriais “tradicionais” não a possui? Como é possível capitalizar a criatividade, defini-la, mensurá-la e, mais importante, transformá-la em valor econômico, especificamente em valor de troca? E mais, de que modo ela está associada à cultura? Ao que tudo indica, essas perguntas constituem preocupações-chave na própria razão de ser das IC.
Em primeiro lugar, a criatividade, conforme nos lembram Hesmondhalgh (1999) e O’Connor (2006), está tradicionalmente ligada ao campo das artes criativas, com sua associação a figuras historicamente emblemáticas, como a do gênio criador. Nesse sentido, com o passar do tempo a imagem do artista como um ser excepcional e dotado de capacidades superiores tornou-se comum. Mas esse tipo de imagem obstrui o fato de que criatividade, definida especificamente como “a manipulação de símbolos para propósitos de entretenimento, informação e iluminação” (Hesmondhalgh, 1999), sempre esteve presente no empreendimento humano, variando apenas suas formas de institucionalização (Bourdieu, 1993; Williams, 1981): em um certo momento, como “arte”; em outro, como “mercado”; e, agora, vem assumindo ainda outras formas, tais como a de “economia criativa”.
Em segundo lugar, entendemos que a passagem de uma característica, ou “competência”, a princípio tão impalpável quanto a criatividade depende de mais do que meramente talento ou “dom” por parte do indivíduo: depende de um enquadre ao qual poderíamos denominar de sócio-institucional (Hartley, 2005; O’Connor, 2006). Nesse sentido, depende de redes sociais, de infra-estrutura, de uma boa rede de distribuição, de novos aparatos tecnológicos ou mídias, em suma, dependem de criação (que pode ser individual ou coletiva), produção (estrutura organizacional, capital, recursos, definição de processos, disponibilização de tecnologias) e distribuição (um canal para levar ou disponibilizar o produto criativo ao consumidor final).
Em terceiro lugar, uma observação mais de ordem psicológica. Criatividade é vista, de acordo com uma certa tradição psicanalítica (Winnicott, 1975), como a capacidade de o indivíduo em manipular objetos do mundo externo a partir de um desenvolvimento simultâneo de seus recursos pessoais, seu fantasias e seus desejos. Isso significa que ser criativo depende de intrincados processos psíquicos internos. Transferindo essa afirmação para o campo das IC, temos que em primeiro lugar, antes mesmo de falarmos de estrutura organizacional ou institucionalização de desenhos de negócio, de considerar que é o indivíduo ou grupos de indivíduos “criativos” que dá início ao processo de concepção do produto criativo, base do conceito de IC.

Cultura e consumo
Na década de 1960, as explicações correntes para o fenômeno das indústrias culturais tinham no horizonte o argumento da “sociedade da afluência” (Galbraith, 1998). De acordo com este, os padrões de consumo estavam se alterando no sentido de incluir o consumo de lazer, entretenimento e bens culturais. Isso aconteceria porque, uma vez as necessidades básicas tivessem sido atendidas, os indivíduos poderiam começar a se preocupar com “necessidades supérfluas” ou com “luxúrias”, adjetivos associados ao consumo daqueles bens (O’Connor, 2006).
No entanto, outras perspectivas que foram surgindo durante as décadas seguintes sobre o consumo insistiam na transformação dos hábitos de consumo de massa das décadas de 1950 a 1960 para o consumo de nicho nas décadas de 1970 a 1980. Em termos gerais, essas perspectivas foram reunidas em descrições mais gerais sobre as mudanças de uma sociedade fordistas para sociedades pós-fordistas, nas quais as empresas rapidamente mudaram suas estratégias com o intuito de captar as novas e voláteis demandas de seus diversos mercados. Nas décadas posteriores, isto é, 1990 em diante, novos termos e novas técnicas mercadológicas foram sendo desenvolvidas, sobretudo com a ajuda dos novos instrumentais tecnológicos.
O aspecto mais interessante a observar é que, como mostraram essas novas técnicas de marketing, “grandes áreas de consumo estavam se tornando cada vez mais culturais e posicionais” (O’Connor, 2006, p. 7). Teve então início uma transformação do que Bourdieu (1984) chamou de “culturas de gosto tradicionais”. Bourdieu identificou um novo padrão de gosto no que ele denominou de “novas classes médias”: uma nova classe de serviços urbana que combinava capital cultural e capital econômico, alta cultura e cultura popular. Central nesse processo, menciona o sociólogo francês, era uma nova preocupação com o corpo e uma abordagem mais auto-consciente ou reflexiva (no sentido dado a este termo por Giddens, 1991) da construção social da identidade por meio do consumo.
O consumo material foi se tornando cada vez mais cultural, além de central na construção do sentido e da identidade, no âmbito de um processo que Featherstone (1991) denominou de “estetização da vida cotidiana”. Mas, como lembra O’Connor (2006), o crescimento no consumo de cultura não significa apenas aumento no volume de compra de bens culturais, mas novos usos para esses bens na construção daquela identidade. Esse seria o motivo para a cultura ter sido elevada a valor econômico, e o fenômeno teria ido além das indústrias culturais clássicas, como vimos, atingindo inclusive outros campos como o da eletrônica, computação e demais equipamentos usados no processo de valorização cultural.
Uma outra observação sobre essa mutação no circuito do consumo é que este passa a depender de um tipo de reconstrução mercadológica do consumidor como alguém relativamente “ativo” no ato mesmo de consumir. As implicações políticas, sociais e psicológicas dessa afirmação são extensas. Apesar de aqui não ser o lugar para uma discussão extensa sobre este ponto crítico, julgamos apropriado pontuar que a reconstrução do sujeito do consumo se faz no seio de um regime de construção político-econômico da subjetividade e da identidade pessoal.
Nesse regime, cuja elucidação poderia muito bem ser encontrada, por exemplo, já nos trabalhos de Foucault, o consumidor é imbricado nos circuitos da geração de valor econômico mediante a própria constituição de si mesmo. No lazer, no entretenimento, nas novas preocupações estéticas, nos novos regimes de “distinção” simbólica, na preocupação com a saúde e a forma etc., o que vemos é mais do que produtos ou serviços sendo vendidos; vemos também – ou sobretudo – o engrendramento da auto-identidade (Baudrillard, 2000; Bauman, 2001; Dufour, 2005; Eagleton, 2005; Lipovetsky, 2004; Foucault, 1969; 1971; Gay, 1996; 1997; Rose, 1990; Sennett, 2006).

Aspectos econômicos e estruturais
As indústrias criativas apresentam alguns problemas a uma análise econômica, em relação a seus modos típicos de organização, de estrutura e modos de produção. Nesta seção, faremos uma revisão de alguns autores-chave dentro do campo administrativo e econômico que se dedicaram a uma apreciação desses problemas a partir de uma compreensão da natureza intrínseca da produção criativa ou cultural.

Recentemente, Caves (2000) realizou um dos mais penetrantes estudos sobre os aspectos econômicos, as estruturas organizacionais e contratuais das indústrias criativas. O autor analisou as formas pelas quais atividades criativas como teatro, música, dança, filme, literatura e artes visuais são organizadas, por que os contratos são estruturados da forma como são nesses setores e por que alguns são determinados internamente nas próprias firmas (como nas operações de algumas orquestras sinfônicas) ao passo que outros contratos dependem do mercado (como na produção de filmes de cinema e televisão).
Adicionalmente, o autor está interessado em discutir qual a especificidade dos bens culturais. Por que estes são considerados “diferentes” de outros bens? Alguns economistas culturais, para responder à questão, focam nas qualidades intrínsecas dos bens artísticos – por exemplo, sua singularidade, seu conteúdo criativo, sua capacidade de expressar significados simbólicos e no fato de a demanda por tais bens basear-se em uma adição racional. Caves dedica atenção particular à natureza do processo de produção que dá às atividades criativas sua característica distintiva. Em particular, ele identifica seis características centrais dessas atividades.
Em primeiro lugar, do ponto de vista da demanda, o autor denomina de ninguém sabe a característica de imprevisibilidade e incerteza associada à demanda pelo produto criativo. Os produtores e gestores de produtos culturais têm uma capacidade limitada de prever qual o sucesso comercial que terão, tendo em vista que novos produtos não se beneficiam de experiências anteriores, sobretudo com produtos conhecidos e de comercialização consolidada. Portanto, o risco é um componente presente na comercialização de produtos criativos.
Em segundo lugar, a variedade infinita dos produtos criativos. Os produtos criativos podem diferir significativamente uns dos outros em termos de qualidade, estilos e características, mesmo que os consumidores vejam-nos como idênticos. É difícil saber de antemão qual será o resultado da aplicação das energias criativas, pois as possibilidades são virtualmente infinitas. A variedade infinita em implicações sobre a organização das atividades criativas – por exemplo, quando há uma grande quantidade disponível de um determinado produto criativo, os consumidores podem ficar indiferentes.
Em terceiro lugar, a arte pela arte. Isso significa que, do ponto de vista da produção do produto criativo, é possível observar a existência de um ou de vários autores, cada um com a tendência de defender seu próprio ponto de vista, capacidades e valores estéticos, muitas vezes a despeito da própria racionalidade econômica como relação custo versus retorno. Além disso, a diferença de opiniões, gostos e preferências pode levar a conflitos e choques de prioridades, com efeitos sobre o resultado final perseguido. Essa é uma característica paradoxal, pois ao mesmo tempo em que a obra criativa depende de intuição pessoal – uma característica por si só irreproduzível e singular –, ela também depende de esforço e coordenação coletivos baseados em princípios econômicos como o de retorno sobre o investimento. Tal fato varia em intensidade, na medida em que algumas atividades demandam apenas um artista, ao passo que outras exigem diversos deles. Por fim, essa característica torna ainda difícil a mensuração de desempenho dos profissionais criativos.
Em quarto lugar, a propriedade denominada por Caves de lista A / lista B. Os produtos criativos são verticalmente diferenciados: os artistas competem para alcançar o status de lista-A enquanto que são os distribuidores que determinam quem vai ser bem ou mal sucedido. Tais distribuidores têm seus próprios interesses econômicos na promoção de um ou outro artista. Um exemplo são os art dealers que promovem artistas depois de reunir suas obras a fim de obter ganhos de capital e os disk-jockeys que são recompensados por tocar uma gravação de um artista, elevando sua visibilidade. Assim, o problema do “suborno” (payola) domina as indústrias criativas parcialmente porque as externalidades legítimas existem entre diferentes atividades.
Em quinto lugar, a demanda por trabalhos de equipes múltiplas. Dada a natureza dessas atividades, o processo de produção criativa exige coordenação de competências, especialidades e recursos. A realização de um filme, por exemplo, exige várias equipes trabalhando ao mesmo tempo e cujo desempenho afeta toda a produção. Caves explora também a questão do pagamento de royalty aos autores, e a dificuldade de determinar o valor a ser pago a cada agente envolvido.
Em sexto lugar, a perenidade dos produtos criativos, ao que Caves denomina de propriedade ars longa: eles freqüentemente são duráveis, fazendo com que os benefícios a eles associados continuem sendo obtidos mesmo muito tempo depois de sua produção. Por essa razão, é difícil recompensar os produtores plenamente pelo valor produzido. Essa característica é agravada pela característica ninguém sabe, pois é difícil predizer quais produtos vão durar e quais não. Caves explora os mecanismos econômicos pelos quais os copyrights são administrados, particularmente tomando como referência a indústria fonográfica. Ainda em relação a este tópico, Caves explora as relações entre “cultura erudita” e “cultura popular”, discutindo a questão da introdução de arte nova e arte antiga.
De forma similar, Tremblay (1990), comentado por Cesnik e Beltrame (2005), investiga as características econômicas das indústrias culturais em termos de quatro dimensões: demanda, produção, funcionamento e remuneração da mão-de-obra.
Em relação à demanda, como os produtos culturais não respondem a uma utilidade imediata, com um valor de uso preciso e bem delimitado, os riscos assumidos com sua produção são grandes, em particular devido à imprevisibilidade de sua demanda. De acordo com Flichy (1980), é o produtor cultural quem determina o valor de uso do bem que está a produzir, e isso obviamente depende de seus próprios valores e visão de mundo. A atividade industrial deve fazer a ponte esse valor de uso apoiado na personalidade e no repertório de valores singulares do criador em um valor de troca capaz de atender a diferentes demandas no mercado. Flichy então destaca que a mercadoria cultural se caracteriza pela aleatoriedade de valorização econômica, de acordo com a qual são necessários vários experimentos – lançamentos, testes, lançamentos, modificações etc. – até que aconteça sua aceitação no mercado.
Em acréscimo, como realçam Cesnik e Beltrame (2005), a demanda por produtos culturais é inelástica, significando que tem poucas chances de crescer, sobretudo em um país como o Brasil, onde o nível de investimento em atividades de lazer e cultura são expressivamente reduzidos. A renda geral ganha pelo brasileiro médio desestimula-o a freqüentar teatros, cinema, adquirir livros e música, além de outras formas de cultura cujo acesso ainda é limitativo no país.
Quanto à produção, Tremblay (1990) destaca que são elevados, apoiando-se em uma baixa economia de escala e em ganhos de produtividade reduzidos. Os custos são altos porque os artistas recebem uma remuneração diferenciada, dependendo do setor e da atividade são necessários altos gastos com tecnologia, locações, transporte e outros. Contudo, Cesnik e Beltrame destacam que os custos variam dependendo da indústria, podendo ser elevados em uma e reduzidos em outras. Quanto aos baixos ganhos de escala, realçam ainda estes autores apoiando-se em Tremblay, isso acontece porque atividades como teatro e ópera, cinema, rádio ou televisão (dependendo do tipo de programa) não podem se beneficiar com as técnicas de padronização ou comoditização. São poucos os casos em que isso se aplica, talvez na chamada “indústria cultural clássica”, como gravação de discos, produção de livros e programas televisivos feitos para a massa.
O problema que enfrenta a produção criativa é sua restrição intrínseca de produtividade: o ritmo de produção, lembram ainda Cesnik e Beltrame, não pode ser acelerado a não ser às custas de uma baixa qualidade ou de uma descaracterização mesma da essência da obra cultural. Essa restrição esbarra em um problema mais amplo referente à unicidade e singularidade do produto cultural e aos limites de sua comercialização, entendendo esta última como uma comoditização da cultura.

De fato, trata-se de um problema de fronteira entre cultura e arte. Conforme lembra Hartley (2005), quando a cultura é vista como cultura erudita – artes clássicas, por exemplo –, sua associação com valores econômicos é entendida como problemática. Na medida em que a arte for realizada tendo em vista propósitos de consumo, com o consumidor ditando, sob pressão da moda, as regras da produção criativa, não mais estaremos falando em cultura propriamente, mas em uma mercadoria como outra qualquer, suscetível de afinar-se à racionalidade econômica capitalista. Hartley ainda nos lembra que essa é uma tradição costumeiramente européia de conceber arte como arte erudita, na perspectiva de uma abordagem Iluminista, esclarecida e aristocrática. Revista pelo crivo do consumo, no qual os Estados Unidos são o exemplo característico, a cultura se molda pelo crivo do consumo e do conforto e da popularização da arte, o que inclusive encontra ecos em artistas importantes daquele país, como Andy Warhol por exemplo.
Quanto ao funcionamento das indústrias culturais, Flichy (1990) e Cesnik e Beltrame (2005) observam que, mantidas as restrições sobre sua limitação de escala e escopo, a única forma de incrementar a rentabilidade é aumentando o número de consumidores. Para isso, as indústrias culturais apelam mais intensamente do que outras indústrias ao marketing como meio de aumentar seu público consumidor. Fora do âmbito estritamente econômico, as indústrias culturais fazem apelo às políticas públicas implementadas pelo Estado, implementadas para contrabalançar os interesses sociais que devem prevalecer na circulação do produto cultural e corrigir as ineficiências do mercado da cultura.
Por fim, no que diz respeito à remuneração de mão-de-obra, existem vários formatos dentro de um regime predominantemente informal. Nesse mercado as práticas de remuneração são inferiores quando comparadas ao setor industrial clássico, sobretudo considerando que o trabalho realizado é altamente individualizado, dificultando a escolha e estabelecimento de critérios comparativos. O modelo de trabalho é por projetos, dependendo, portanto, das oscilações de tempo, envolvimento e compromisso de cada projeto. Como conseqüência, há problemas de baixa remuneração, ausência de planos de carreira e insegurança. Pensando em pequenas empresas dedicadas à produção de bens culturais, o quadro é ainda mais grave.
Um outro estudo recente sobre estrutura e modelos organizacionais das indústrias criativas é o de Hartley (2005). Este autor, cujo livro é uma coletânea de artigos sobre essas indústrias, destaca que, pela sua novidade e pela escassez de estudos aprofundados sobre suas características, é tão-somente possível traçar alguns parâmetros gerais dessa indústria. Nesse sentido, ele apresenta sete horizontes amplos das indústrias criativas, contrapondo-os às indústrias tradicionalmente estabelecidas. Os horizontes são: indústria, organização, associação, estatísticas, pessoa, trabalhador e usuário. Vejamos sucintamente cada um desses parâmetros a seguir.
Quanto ao horizonte da indústria, Hartley (2005) destaca que as IC não se igualam aos modelos tradicionais. Esses modelos podem ser classificados de acordo com o que produzem essas indústrias: indústria automobilística, indústria aérea, indústria mineral e assim por diante. A dificuldade de classificação das IC resulta do fato de a criatividade não ser um “produto”, mas sim um tipo de “insumo”. Hartley menciona haver uma dificuldade de classificar a criatividade no setor primário, secundário ou de serviços. Para ele, os produtos e processos criativos podem ser encontrados em todos esses setores. Tampouco o setor terciário, onde mais provavelmente poderíamos inserir as indústrias criativas, é capaz de esgotar seu problema de identidade, na medida em que o valor gerado pelos produtos oriundos de criatividade não podem ser, na visão daquele autor, equiparados ao que fazem contadores, advogados ou outras profissões liberais.
As indústrias criativas também não podem ser identificadas ao nível da organização, ou seja, do modo como os produtos são gerados. Isso porque, como adverte Hartley, a criatividade é usada de diferentes maneiras dependendo do setor em questão. Não haveria, seguindo o argumento do autor, um modo de localizar ou situar a criatividade em um arranjo organizacional específico. Podemos encontrar o uso da criatividade em setores organizacionais tão díspares como na saúde, nas finanças, na educação e no setor público.
No que diz respeito à associação, não observamos entre as indústrias criativas formatos cooperativos como existem em outros setores industriais. Quer dizer, não há clusters de IC claramente formados em torno de cadeias comuns, visando a objetivos comuns. Aventamos a possibilidade de que tal formato de associação ainda não se observe no caso das indústrias criativas devido à própria dificuldade em defini-las e de demarcar suas cadeias produtivas, além de um desconhecimento do perfil das firmas atuantes no setor.
Um outro horizonte que agrava a compreensão das indústrias criativas é o que Hartley chama de estatístico: na maior parte dos países desenvolvidos, onde o termo ganhou maior visibilidade, não existem estatísticas que mapeiem, quantifiquem e identifiquem o setor da economia criativa. A maior parte das atividades relevantes aparecem sob uma série de outras categorias sobrepostas, tais como arte, lazer, esporte, cultura, serviços, mídia e semelhantes. Essa situação é agravada pela inexistência de critérios metodológicos comparativos para a classificação dessas indústrias.
Quanto ao horizonte pessoa, na designação de Hartley, o ponto crítico refere-se à dificuldade em entender como a criatividade, que é, em princípio, uma “propriedade” individual, converte-se em valor econômico. Na visão desse autor, isso acontece quando os indivíduos “criativos” encontram um ambiente institucional rico o suficiente para auxiliá-lo na transformação dessa criatividade em produtos criativos. Em particular, esses indivíduos dependem de infra-estrutura, capital, acesso a mercados consumidores, regulamentação pública, direitos de propriedade e de processos de ampla escala capazes de “monetarizar” a criatividade. Quer dizer, indivíduos criadores precisam contar com uma espécie de “organização social” da criatividade dentro de uma indústria com contornos institucionais e econômicos definidos.
Trabalhadores criativos é o sexo horizonte destacado por Hartley para descrever as IC. Esses trabalhadores compõem um quadro heterogêneo de competências e talentos aplicados em atividades como design, publicidade, escrita e artes. O elemento-chave, repete-se, é o manejo da criatividade e sua conversão em valor econômico. Como descaram outros autores, como Cesnik e Beltrame (2005), os trabalhadores criativos não têm segurança de trabalho, não formam uma categoria com “consciência coletiva” e objetivos comuns, não se beneficiam de estruturas formais e regulamentadas de pagamento e têm um poder de barganha muito baixo comparado a outras categorias sindicalizadas de trabalhadores. Conforme investigou McRobbie (2005), a força de trabalho “criativa” é caracterizada por seu aspecto casual, circunstancial, por projetos em formato de freelances e dependente de uma carreira tipo portifólio, pela qual o indivíduo assume vários “jobs” ou empregos temporários.
Por fim, o usuário é um outro horizonte das IC e de cuja compreensão depende o melhor delineamento das mesmas. O processo pelo qual a criatividade transforma-se em um produto com valor de troca é o reconhecimento perceptivo, por parte do consumidor, de que tal criatividade possa lhe ser útil ou usada de algum modo para atender a necessidades suas. A criatividade, enquanto insumo-base das indústrias criativas, depende portanto de reconhecimento e uso. Quer dizer, a relação entre as IC, seus processos produtivos e o consumo propriamente dito são decisivamente importantes e merecem estudos mais detalhados (Negri & Lazzarato, 2001).
O usuário desempenha, assim, um papel fundamental no sucesso mesmo do produto criativo. Porém, dada a natureza do processo criativo, sua participação pode acontecer somente a posteriori. Por exemplo, os produtores de um filme só saberão de sua receptividade ao público quando for ao ar; por outro lado, setores como o de software interativo e jogos podem contar, no processo mesmo de geração do produto, com a interferência direta do usuário – que instrui o criador de tal forma que o produto possa sair sob medida. Por fim, adverte Hartley, as indústrias criativas não podem ser reorganizadas ou então definidas ao nível do usuário tout court, pois isso implicaria em um cerceamento talvez crítico da criatividade individual. A relação entre produção/consumo assume então características marcadamente ambíguas.

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