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sábado, março 23, 2024

Inseminação Artificial Homóloga

Trata-se de estudo dirigido sobre os efeitos do reconhecimento da paternidade presumida nos casos de inseminação artificial homóloga após a morte do pai e as possíveis soluções para a problematização sucessória não abordada pelo legislador.

1 INTRODUÇÃO

A ciência se desenvolveu ao ponto de dizer à morte que ela não mais limita o homem de procriar, produzindo, com isso, situações jurídicas inacreditáveis aos legisladores, que não têm condições de acompanhar a rapidez das evoluções tecnológicas.

Exatamente por isso, o estudo relacionado à inseminação artificial homóloga post mortem e o direito hereditário de seu fruto é de extrema importância para a sociedade. Apesar de não estar na mídia a todo instante como a violência nos centros urbanos, os efeitos causados pela utilização de técnicas de reprodução assistidas após a morte do doador genético podem ocorrer a qualquer instante e em grandes proporções, pois essas técnicas estão à disposição daqueles que podem pagar pelo tratamento.

Em decorrência disso, o objetivo do presente estudo é analisar as consequências jurídicas que envolvem a fecundação póstuma, principalmente quanto ao direito sucessório, trazendo possíveis soluções para a problemática, uma vez que não existem normas jurídicas que englobem essa situação.

Para tanto, procurar-se-á, primeiramente, explicar as técnicas de reprodução artificiais mais utilizadas pelos médicos através de conceitos breves, destacando seus procedimentos e diferenças.

Demonstrar-se-á, em síntese, que o Código Civil de 2002 dispôs que os filhos concebidos, a qualquer tempo, após a morte do pai terão sua paternidade reconhecida, ou seja, a criança nascida através de inseminação artificial homóloga post mortem será considerada filha do doador do material genético, por força de lei. E, ainda, tecer-se-á comentários sobre as consequências que esse reconhecimento trará para os herdeiros necessários e testamentários nascidos ou já concebidos no momento da morte do doador do material genético.

Além disso, a ausência de norma específica fez com que a doutrina não chegasse a um consenso sobre a solução mais ética e humana que amparasse o caso concreto sem que fosse necessária a violação da Constituição. Em decorrência disso, a doutrina se divide em três correntes com objetivo de amenizar as discussões sobre o tema. A primeira corrente nega qualquer direito ao filho póstumo, por essa razão foi batizada de restritiva. A segunda corrente, chamada de parcialmente restritiva, reconhece a filiação presumida, porém nega o direito à sucessão testamentária ou legítima. A última corrente, além de reconhecer a paternidade garante o direito sucessório à prole advinda dessas técnicas. Todavia, ela também encontrou dificuldade em harmonizar o seu entendimento, dividindo-se em duas subcorrentes, uma que assegura somente a sucessão testamentária e outra que assevera o direito a parte legítima.

Por fim, tentar-se-á encontrar uma solução plausível para a ausência de normas sobre a inseminação póstuma, respeitando a supremacia da Constituição Federal e o bom senso para reconhecer o direito à sucessão legítima dos nascidos através da inseminação artificial homóloga post mortem.

2 PRINCIPAIS MÉTODOS DE INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL E AS DISTINÇÕES ENTRE INSEMINAÇÃO HOMÓLOGA E HETERÓLOGA

Desde 1978, quando nasceu o primeiro bebê de proveta, a ousadia de conceber um ser humano de forma diversa do natural é palco de grandes dilemas éticos, morais e religiosos. Por isso, antes de adentrar as questões conflituosas do tema, faz-se necessário entender os conceitos que envolvem a inseminação artificial.

A palavra inseminação é formada pela junção de duas expressões latinas que compõem a terminologia inseminatio: in, que significa dentro e semen, que significa grão de semear. (HOUAISS, 2001, p. 2541).

Inseminação Artificial, portanto, é o processo não natural, onde o óvulo é fecundado por espermatozoide através de um dos métodos de fertilização, desenvolvidos pela medicina.

A respeito desse conceito, Sérgio Ferraz entendeu por inseminação artificial “o processo pelo qual se insere no gameta feminino, seja in vitro, seja no aparelho genital da mulher, sêmen previamente recolhido”. (FERRAZ, 1991, p. 41).

2.1 Principais Métodos de Inseminação Artificial

A concepção é um fenômeno natural e espontâneo, que nem sempre acontece conforme o esperado. O surgimento de técnicas de fertilização veio suprir a necessidade de procriação de milhões de casais inférteis pelo mundo.

Os métodos de fertilização mais utilizados pelos médicos e que garantem os melhores resultados são a Fertilização In Vitro (FIV), Transferência Intratubária de Gametas (GIFT), Transferência Intratubária de Zigotos (ZIFT) e Injeção Intracitoplasmática de Espermatozoide (ICSI).

2.1.1 Fertilização In Vitro – FIV

A Fertilização In Vitro – FIV é um tratamento complexo consistente em quatro etapas. Os óvulos, primeiramente, são coletados por aspiração direta com agulhas através de imagens de ultra-som endovaginal. Após esse procedimento, os óvulos são colocados em um meio de cultura especial por, aproximadamente, duas a seis horas. O sêmen, antes de ser colocado no meio da cultura com o óvulo, é lavado, processado e incubado. (SERAFINI. et al. 2000, p. 105).

Na etapa seguinte, os espermatozoides e os óvulos são unidos para a fertilização e colocados em estufas que simulam as mesmas condições que seriam encontradas dentro do organismo. Por fim, depois de três a cinco dias, os melhores embriões serão selecionados e através de um cateter fino e flexível serão transferidos para o útero materno. (ROGER, 1999).

Assim, segundo lições de Diniz (2008, p. 520), FIV “consiste na retirada de óvulo da mulher para fecundá-lo na proveta, com sêmen do marido ou de outro homem, para depois introduzir o embrião no seu útero ou no de outra”.

2.1.2 Transferência Intratubária de Gametas – GIFT

Gametha Intra Fallopian Transfer – GIFT é o procedimento pelo qual transfere-se os gametas (células sexuais masculinas e femininas) para a trompa de Falópio. É o que Diniz (2008, p. 520) chama de manipulação interna de gametas.

Nesse procedimento, o lavado do esperma e os óvulos maduros são apenas misturados e introduzidos dentro de uma ou ambas as trompas de Falópio. Após, espera-se que a fertilização ocorra como na atividade reprodutora normal. O GIFT é indicado, em princípio, a mulheres que apresentam trompas funcionalmente normais. (SERAFINI, et ali, 2000, p. 111).

Na GIFT, a fertilização ocorre dentro do corpo da mulher enquanto que na FIV a fertilização ocorre numa placa de laboratório chamada proveta.



2.1.3 Transferência Intratubária de Zigotos – ZIFT

Zibot Intra Falloption Transfer – ZIFT ou PROST/TETE consiste na transferência de pronúcleo ou zigotos para as trompas de Falópio. Para a realização desse método, os óvulos são colhidos por aspiração transvaginal e fertilizados em tubos de ensaios. Os óvulos fertilizados no estágio de pronúcleos (indicadores laboratoriais de que ocorreu a fertilização normal) ou zigotos (óvulo fertilizado antes da divisão celular embrionária) são transportados para a trompa de Falópio, através da videomicrolaparoscopia ou laporoscopia convencional. (SERAFINI. et al. 2000, p. 111).

O ZIFT difere-se do GITF porque neste a fertilização ocorre na trompa de Falópios, enquanto naquele ocorre em tubos de ensaios no laboratório. Ambos diferem-se do FIV porque os gametas ou óvulos fertilizados são transferidos para a trompa ao invés de para o útero.



2.1.4 Injeção Intracitoplasmática de Espermatozoide – ICSI.

A Injeção Intracitoplasmática de Espermatozoide – ICSI utiliza-se de microagulhas feitas de tubos capilares de vidro com espessuras interna de 6 (seis) microns, chamada de micropipeta, que transporta um único espermatozoide para o óvulo. Uma pipeta especial, por meio de sucção, imobiliza o óvulo enquanto a ponta da agulha força a membrana externa do óvulo até atingir o seu núcleo. No núcleo da célula, a micropipeta injeta o espermatozoide no interior do óvulo, sendo retirada em seguida. Após, espera-se a fecundação, ocorrendo esta transfere-se o embrião para o útero materno. (ROGER, 1999).

Esse procedimento é similar ao FIV, passando por todos os procedimentos previstos nele. Entretanto, difere-se pela utilização de microagulhas para fecundar diretamente o óvulo com apenas um gameta masculino.

2.2 Distinções entre Inseminação Artificial Homóloga e Heteróloga

Ressalta-se, após o prévio conhecimento dos métodos supracitados, a existência de dois tipos de inseminação artificial: a inseminação pelo sêmen do marido e a inseminação com o uso de sêmen de doador. A primeira, conhecida como homóloga, caracteriza-se pelo uso de material genético dos cônjuges, ou seja, serão utilizados para a formação do embrião o espermatozoide do marido e o óvulo da esposa. Já a segunda, chamada de heteróloga, o material genético utilizado não pertence a um dos cônjuges, mas a uma terceira pessoa estranha ao relacionamento. Nesse sentido, o mestre Venosa (2009, p. 229) denomina “homóloga a inseminação proveniente do sêmen do marido ou do companheiro; heteróloga, quando proveniente de um estranho”.

A respeito da questão aventada, Séguin (2005, p. 104) expôs:

A reprodução assistida pode ser HOMÓLOGA, quando os doadores formam um casal, e HETERÓLOGA, ou extraconjugal. A primeira é socialmente aceita, sendo entendimento corrente que não fere os princípios da Moral e do Direito. A segunda gera mais polêmica por afetar várias pessoas simultaneamente.

Diante da polêmica gerada em torno da inseminação heteróloga, o presente trabalho fomentará apenas a forma homóloga.

3 INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM FRENTE AO DIREITO CIVIL

Inseminação artificial Post Mortem homóloga é a utilização do material genético criopreservado do marido (na forma de espermatozoide ou embrião) após sua morte para conceber uma criança. Impreterivelmente, temos a explicação de Silva (2008, p. 1741) sobre o tema: “a fecundação ou inseminação artificial post mortem é aquela realizada com o embrião ou sêmen conservado por meio de técnicas especiais, após a morte do doador do sêmen”.

O questionamento que surge através dessa afirmação é se a criança concebida de pai pré-morto terá direito ao reconhecimento de sua paternidade genética e, principalmente, de participar da sucessão legítima.

3.1 Considerações sobre a Presunção de Filiação à Luz do Código Civil Brasileiro e da Inseminação Artificial post mortem

O Código Civil de 2002 dispõe, no art. 1.597, que presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; os nascidos 300 (trezentos ) dias após à dissolução da sociedade conjugal; os havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; os havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga e os havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. (BRASIL, 2002, art. 1.597, inc. I, II, II, IV e V).

Frisa-se que das cinco formas de presunção de filiação, as que importam no momento são as que tratam sobre forma de reprodução assistida homóloga.

Com base nos avanços científicos, a possibilidade de gerar um filho é tão real que o homem mesmo falecido há certo tempo ainda poderá ser pai. O Código Civil, então, trouxe, no artigo 1.597, em dois incisos distintos, a presunção de filiação àqueles nascidos através de técnicas de reprodução artificiais, por meio das expressões “mesmo que falecido o marido” (BRASIL, 2002, art. 1.597, inc. III) e “a qualquer tempo” (BRASIL, 2002, art. 1.597, inc. IV). Com isso, o legislador não deixou dúvidas quanto a sua intenção de proteger e não discriminar os nascidos por meio dessa técnica, garantindo a eles o direito de obter registro de nascimento com pai civil.

Assim, conforme Silva (2008. p. 1741), na fecundação homóloga considera-se, por presunção, filho do marido aquele concebido após a sua morte, bem como os filhos concebidos, a qualquer tempo, tratando-se de embriões excedentários.

Apesar disso, ao admitir a presunção de paternidade dos filhos post mortem, o legislador não solucionou as questões subsequentes que surgem com a possibilidade do registro desse filho em relação aos outros herdeiros necessários, bem como ao seu direito à herança.

Nesse momento, cumpre citar César Fiuza (2009, p. 983):

Quanto a eventuais efeitos sucessórios desses filhos, o Código não os regulamentou. É do caso concreto e das circunstâncias que o envolvem, que há de se extrair a melhor solução, que pode ser complicada, principalmente se já houver se consumado a partilha, e se os bens já se houverem dissipado.

Corroborando com esse entendimento, Dias (2008, p. 116) expôs:

A lei faz referência às técnicas de reprodução assistida exclusivamente quando estabelece presunções de filiação. De forma injustificável, não há qualquer previsão dos reflexos do uso desses procedimentos no âmbito do direito sucessório. O legislador, ao formular a regra contida no art. 1.798, não atentou para os avanços científicos na área da reprodução humana, ao se referir somente às pessoas já concebidas.

Consoante se vê, o Código Civil não regulamentou de forma completa a inseminação artificial post mortem, restringindo-se a instituir a presunção de filiação no art. 1.597. No entanto, essa carência pretende ser suprida através do Projeto de Lei nº 1.184/03 , que chegou até a sugerir proposta de proibição do uso das técnicas após a morte do doador genético.

3.2 Sucessão Legítima: herdeiros necessários e o filho póstumo

A sucessão será considerada legítima quando a herança for transferida aos herdeiros em decorrência única de lei. E isso ocorre quando o de cujus é intestado; quando, apesar de ter deixado testamento, não dispuser da totalidade da herança ou não tiver disposições patrimoniais; quando o testamento for anulado ou caducar; bem como quando houver herdeiros necessários.

Herdeiros necessários são os descendentes, os ascendentes e o cônjuge (BRASIL, 2002, art. 1.845) e são também esses os diretamente afetados pelo reconhecimento do inseminado post mortem do hereditando, pois a lei reserva cinquenta por cento dos bens da herança a esses herdeiros, ou seja, dessa porcentagem o autor da herança não poderá dispor ao seu bem querer.

Nesse contexto, Veloso (2008, p. 2032) preleciona:

Quem tem herdeiro necessário possui liberdade testamentária limitada, restrita. Só pode decidir sobre a quota ou porção disponível – metade dos bens, como enuncia o art. 1.789, pois a outra metade pertence, de pleno direito, aos herdeiros necessários, constituindo a legítima. Legítima, então, é a porção dos bens que a lei reserva aos herdeiros obrigatórios ou forçados: descendentes, ascendentes e cônjuge sobrevivente. São de ordem pública as normas que regulam o direito do herdeiro necessário à legítima.

Por sua vez, o Código Civil de 2002 traz uma ordem preferencial entre os herdeiros necessários do autor da herança, a essa ordem o legislador deu o nome de ordem de vocação hereditária. A Lei nomeou os descendentes, em virtude da existência de proximidade afetiva e da presunção de hipossuficiência, os maiores privilegiados, dando a eles uma posição bem mais vantajosa em relação aos demais herdeiros necessários na vocação hereditária. Para Diniz (2005, p. 109) “os descendentes são herdeiros por excelência, pois são chamados em primeiro lugar, adquirindo os bens por direito próprio (CC, art. 1.845, I)”.

O surgimento, portanto, de um descendente consangüíneo de primeiro grau gera efeito diretamente no quinhão dos herdeiros necessários, uma vez que os ascendentes somente se habilitam como herdeiros na ausência daqueles e o cônjuge sobrevivente herda, em regra, em concorrência com descendentes , apesar de que neste caso, por tratar-se de inseminação homóloga, as consequências não seriam necessariamente objeto de altercação. Afeta, também, a quota parte dos filhos nascidos ou já concebidos no momento da abertura da sucessão, tornando ainda mais complexo se existir filho pré-morto e os netos herdaram, por representação ou não, neste último, porque os mais próximos excluem os mais remotos. (BRASIL, 2002, art. 1.833).

Nesse diapasão, a falha da legislação em não dispor sobre tema pode gerar acaloradas disputas familiares no âmbito judicial, principalmente se a partilha consumada estiver.



3.3 Efeitos do Herdeiro Necessário Post Mortem na Sucessão Testamentária

Quanto ao herdeiro testamentário, este não sofre, a princípio, efeitos com a chegada do filho póstumo, porque o testador, ao destinar em um documento válido a quota parte do patrimônio não reservada aos herdeiros necessários, assevera o seu direito de receber a herança.

Imperioso salientar, nessa ocasião oportuna, o pensamento de César Fiuza (2009, p. 1040):

Sucessão Testamentária é aquela que se dá em obediência à vontade do de cujus […]. O fundamento da sucessão testamentária é, de um ponto de vista mediato, a dignidade humana, da família e de seus membros, principalmente da descendência. De um ponto de vista imediato, o testamento é ato de autonomia privada, em que o testador, dentro dos limites impostos pela Lei, cria normas de condutas a serem observadas após sua morte. Seu fundamento imediato é, pois, a autonomia privada.

Conforme se vislumbra, o testamento é a vontade expressa do autor da herança, que as declara, exatamente, porque deseja que os efeitos desse ato sejam verificados após a sua morte, devendo, assim, ser respeitado.

Todavia, nos casos em que o testador dispõe da totalidade do seu patrimônio por não possuir descendentes, ascendentes ou cônjuge ou por ser casado em um dos regimes de bens em que o cônjuge não constitui seu herdeiro, o nascimento de um herdeiro necessário provocaria o rompimento de todas as disposições testamentárias (BRASIL, 2002, arts. 1.973 e 1.974), deixando de produzir as conseqüências esperadas. Isso acontece em virtude da presunção de que se o testador soubesse dessa realidade teria disposto de modo diferente. É o que a doutrina chama de revogação presumida, ficta ou legal.

No entendimento de Dias (2008, p. 471), a aplicação do instituto da ruptura é perfeitamente cabível no caso do nascimento de filho advindo de concepção post mortem:

A adoção post mortem dispõe do mesmo efeito (CC 1628). Também leva a ruptura o nascimento que resulta do uso das modernas técnicas de reprodução assistida. Quer se trate de concepção homóloga, quer heteróloga (CC 1957 III, IV e V), nascendo o filho depois de elaborado o testamento ou depois da morte do testador, ocorre a sua rupção.

Para maior compreensão sobre o tema, faz-se imprescindível transcrever os ensinamentos de Veloso (2008, p. 2032):

A ruptura, rupção ou rompimento do testamento é também chamada revogação presumida, ficta ou legal […]. Basicamente, o testamento fica roto, cai completamente, não terá efeito algum, quando o testador não tem descendentes e lhe sobrevém um descendente sucessível, ou quando o testador tem descendentes, mas não sabia que tinha, e o descendente aparece. A rupção é denominada revogação ficta porque seu fundamento é a presunção de que o testador não teria disposto de seus bens, ou, pelo menos, não teria decidido daquele modo, se tivesse descendente, ou se não ignorasse a existência do que tinha. A superveniência dos descendentes sucessível só é causa do rompimento do testamento quando o testador não tinha qualquer descendente. Se o indivíduo já tem descendentes não determina a rupção do testamento (RTJ, 45/469). Seria o caso do testador que supõe ter um filho apenas, mas na realidade tem dois, ou lhe nasce outro depois.

Contingente, apesar de não pacificado entre os doutrinadores, Veloso defende que se o indivíduo ao testar já tinha um descendente herdeiro necessário e sobrevém outro que desconhecia ou não existia, não haverá a ruptura do testamento, devendo, neste caso, o filho póstumo requerer apenas à parte que lhe é reservada pela lei .

Teoricamente, então, o herdeiro necessário post mortem, teria direito de exigir a devolução dos bens testados pelo pai na ausência de herdeiros necessários, se não fosse pelo detalhe do art. 1.859, do Código Civil, que estipula prazo de 5 (cinco) anos para que seja impugnada a validade do testamento, a contar da data do seu registro, ordenado por mandado judicial (BRASIL, 1973, arts. 1.125 e 1.127).

Isso significa que, se a inseminação artificial homóloga ocorrer posteriormente a esse período, o testamento não poderá mais ser questionado, causando dano àquele que a lei presumiu ser filho do morto.



3.4 Posições Doutrinárias Acerca da Inseminação Post Mortem

Ante esses efeitos refletidos, a doutrina debate a possibilidade da prole nascida, após a morte do doador do material genético, através de técnicas de reprodução artificial, vir a sucedê-lo na atual conjuntura das leis de sucessão vigentes no mundo jurídico pátrio.

Nesse entrecho, os doutrinadores são extremamente divergentes em suas posturas, para tanto, eles desenvolveram três correntes com o intuito de justificar a aplicação ou não dos Direitos Sucessórios a essa espécie de filiação.

A respeito do assunto, Rodolfo (2009) destaca:

O tema não comporta unanimidade e três correntes discutem a impossibilidade ou a possibilidade de direitos sucessórios a essa espécie de filiação. A primeira corrente chamada de restritiva não concede nenhum direito a essa filiação, nem mesmo direito ao reconhecimento da paternidade. A segunda corrente chamada de parcialmente restritiva reconhece o direito ao reconhecimento da paternidade, mas não vê possibilidade de sucessão por tal procedimento ser vedado pelo próprio código civil. A terceira corrente na verdade se divide em duas, quais sejam: a que concede direito a paternidade e direito a sucessão via testamento desde que a inseminação tenha sido autorizada em vida e confirmada em testamento, que a mulher continue viúva e o nascimento aconteça no prazo de 2 anos da abertura da sucessão; a outra subcorrente diz que há o direito de reconhecer à paternidade e também o direito a sucessão legal, já que constitucionalmente é proibida a distinção entre filhos.

3.4.1 Corrente Restritiva

A primeira corrente foi batizada de restritiva porque não admite hipótese de filiação e, por consequência lógica, sucessão legítima aos concebidos após a morte do hereditando. A negativa em aceitar a presunção de filiação do art. 1.597, inc. III e IV, do Código Civil, resume-se no fato do casamento extinguir-se com a morte do cônjuge (BRASIL, 2002, art. 1.571, inc.I).

Desse modo, seria inaceitável a presunção de filiação e a inseminação post mortem homóloga injustificável, haja vista a inexistência de um casal capaz de conceber descendente herdeiro necessário. Nesse cerne, Diniz (2005, p. 526) afirma “de lege lata, o inseminado post mortem seria filho extramatrimonial e somente da mãe”.

Com o intuito de deixar claro seu posicionamento, a autora continua (DINIZ, 2005, p. 526):

Não há como aplicar a presunção de paternidade, uma vez que o casamento se extingue com a morte, nem como conferir direitos sucessórios ao que nasce por inseminação artificial post mortem, já que não estava gerado por ocasião da morte de seu pai genético (CC, art. 1.798). O “filho” póstumo não possui legitimação para suceder, visto que foi concebido após o óbito de seu “pai” genético e por isso é afastado da sucessão legítima ou ab intestato.

Acerca da questão supra, Leite (1995, p. 142) também se manifesta dizendo que a “criança concebida por inseminação post mortem, ou seja, criança gerada depois do falecimento dos progenitores biológicos pela utilização de sêmen congelado, é situação anômala, quer no plano do estabelecimento da filiação, quer no do direito das sucessões”.

Outro ponto que fortalece a posição desses doutrinadores é a regra disposta no art. 1.798, do Código Civil que legitima a suceder apenas os nascidos ou já concebido no momento da abertura da sucessão. Logo, “a criança não herdará de seu pai porque não estava concebida no momento da abertura da sucessão”. A única “solução favorável à criança ocorreria se houvesse disposição legislativa favorecendo o fruto de inseminação post mortem” (LEITE, 2005, p. 142), entretanto inexistente até o momento lei que ampare tal pretensão.

Percebe-se aqui que a corrente restritiva não admite nenhum reconhecimento para o filho póstumo, primeiro, pelo desfazimento do elo matrimonial e, segundo, por não subsistir no momento da abertura da sucessão, mas, além desses aspectos, essa corrente posiciona-se, fervorosamente, contrária a utilização de qualquer técnica de reprodução artificial post mortem, questionando os efeitos sócio-psicológicos e éticos que a futura criança e a mãe serão submetidas.

Quanto a esse ponto, vale citar, novamente, os pensamentos de Leite (2005, p. 155):

Do ponto de vista ético, a inseminação post mortem desvia o sentido da procriação artificial, negando sua razão se ser: remediar as conseqüências da esterilidade e da hipofertilidade. Além disso, a medicina poderia contribuir ao nascimento de uma criança órfã, desejada como tal pela vontade dos pais? É este o papel da medicina? Tudo indica que não […]. A resposta negativa a um pedido dessa natureza se impõe. E isto, por diversas razões. Inicialmente, vale lembrar que tal pedido sai do plano ético reconhecido à inseminação homóloga; ou seja, se não há mais um casal solicitando um filho, nada mais há que justifique a inseminação. Num segundo momento, tal solicitação provoca perturbações psicológicas em relação à criança e em relação à mãe. Nada impede que nos questionemos se essa criança deixada pela mãe viúva não o é, antes de tudo, para preencher o vazio deixado pelo marido. Além disso, a viuvez e a sensação de solidão, vividas pela mulher podem hipotecar pesadamente o desenvolvimento psico-afetivo da criança.

Exatamente pela prática desses questionamentos éticos e morais que os doutrinadores, que defendem a corrente restritiva, desejam que a legislação brasileira adote o posicionamento de alguns países como a Alemanha, Suécia e França que vedam, expressamente, a utilização de técnica de inseminação artificial após a morte do doador do material genético. (DINIZ, 2005, p. 527).

No Brasil, o Conselho Federal de Medicina, órgão de atribuições constitucionais que fiscaliza e normatiza as práticas médicas, não faz recomendações contrárias ou favoráveis à utilização de técnicas após a morte, cabendo ao médico especializado na área agir de acordo com suas convicções éticas sobre o tema.

3.4.2 Corrente Parcialmente Restritiva

A corrente parcialmente restritiva difere-se da primeira ao reconhecer o direito de paternidade do filho advindo de técnicas de reprodução artificiais após a morte do pai. Essa corrente defende que a lei determinou a presunção de filiação dos póstumos, não tendo como afastar esse direito porque o legislador manifestou-se, expressamente, sobre essa intenção. Porquanto, ao nascido através da inseminação artificial post mortem será assegurado o registro civil com o nome do seu genitor falecido, mesmo estando este impossibilitado de manifestar sua vontade em concebê-lo.

A esse respeito, Gama discorre (GAMA apud III Jornada de Direito Civil, 2005, p. 396):

Nos casos de reprodução assistida post mortem, pressupondo a utilização de material genético deixado pelo marido (ou companheiro) falecido, deve-se considerar o estabelecimento da paternidade com atribuição do nome de família à criança, mas sem qualquer efeito patrimonial relativamente ao espólio ou aos herdeiros do de cujus.

No entanto, assemelha-se a corrente restritiva por negar ao inseminado post mortem o direito à sucessão sob o fundamento de que esse filho, apesar de reconhecido a paternidade pela lei, não estava sequer concebido no momento da abertura da sucessão, requisito esse fundamental para legitimação do futuro herdeiro (art. 1.798, CC/02). Nesse aspecto, Venosa (2009, p. 231) ressalta que “na inseminação após a morte o Código não tocou diretamente no direito hereditário dos seres assim gerados, pois para a sucessão continuam sendo herdeiros apenas aqueles vivos ou concebidos quando da morte”.

Gonçalves complementa esse posicionamento ao mencionar que “Não se pode falar em direitos sucessórios daquele que foi concebido por inseminação artificial post mortem, uma vez que a transmissão da herança se dá em consequência da morte (CC, art. 1.784) e dela participam as ‘pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão’”. (REGIS apud GONÇALVES, 2009, p. 291).

Como é notório, os doutrinadores que alicerçam essa corrente, baseiam-se a impossibilidade de suceder ao fato do herdeiro não está concebido no momento da morte do autor da herança. Contudo, existe uma discussão ético-moral em torno do momento que o espermatozoide e o óvulo deixaram de ser apenas gametas para passarem a ser indivíduo concebido.

Para alguns autores a concepção somente ocorre no útero, ou seja, mesmo que a fecundação do óvulo tenha sido in vitro somente considerar-se-á pessoa concebida após a transferência para o útero. Isso resta claro no Informe Warnock quando menciona que “só podem invocar direitos sucessórios os filhos que já estiverem, ainda que como embrião, no útero da mãe, à época da morte do pai”. (WARNOK apud FERRAZ, 1991, p.52).

Outros autores, porém, ponderam, inclusive para asseverar o direito à sucessão, a simples fecundação do óvulo, pouco importando se já estão no útero ou se estão criopreservados em algum laboratório, firmando esse entendimento no art. 1.597, inc. IV, do Código Civil, que considerou “concebidos os embriões excedentários, havidos a qualquer tempo, decorrentes de concepção artificial homóloga” (GOMES, 2008, p. 30). Ao consentir essa hipótese, emerge a dúvida quanto às formas de fertilização artificial em que o óvulo ainda não foi fecundado, mas será através do sêmen preservado do de cujus.

Para tanto, Mário Régis, na III Jornada de Direito Civil (BRASIL, 2005, p. 394), esclarece que:

Pela leitura fria dos textos legais, poderíamos principiar diferenciando as hipóteses em que a fertilização se deu quando já estava morto o doador do material fecundante, daquelas em que a fertilização se deu anteriormente, in vitro, e a implementação foi feita somente após a morte do pai. Na primeira hipótese, a solução lógica seria a de que o filho havido não teria direito sucessório algum porquanto ainda não era concebido à época da abertura da sucessão. Na segunda hipótese, considerando-se que a concepção já se teria verificado, mesmo fora do útero, ao filho assim havido deveriam ser assegurados todos os direitos sucessórios em igualdade de condições com os demais filhos. Ainda se poderia sustentar que também na primeira hipótese, o filho teria direito à herança, em face do estado de filiação reconhecido pelo Código Civil (art. 1.597) e do imperativo de igualdade posto no art. 227, §6º, da Carta Magna.

Consoante se vê, a corrente parcialmente restritiva esbarra-se em questões ético-morais sobre o início da concepção. Não basta apenas dizer que o direito é dado aos já concebidos, deve-se identificar o início do surgimento do concepturo para assegurar o seu direito à sucessão.

3.4.3. Corrente Permissiva ou Concessiva

A terceira corrente permite ao inseminado post mortem ser declarado filho do seu provedor genético e, ainda, assegura o direito de ser reconhecido herdeiro do de cujus. A base fundamental dessa corrente não vê empecilhos para o reconhecimento da paternidade do filho nascido por inseminação após a morte do autor da herança pelo fato de a lei ter disposto nesse sentido. Porém, quanto à sucessão, em que a lei é omissa, essa corrente dividiu-se em duas: sendo que uma concede a sucessão somente via testamento, desde que a inseminação tenha sido autorizada em vida e confirmada em testamento e a concepção aconteça no prazo de dois anos da abertura da sucessão de mãe viúva do de cujus. A outra subcorrente aborda que o direito a sucessão legal subsiste de pleno direito, já que é, constitucionalmente, proibida a distinção entre os filhos.

A primeira vertente impõe algumas condições indispensáveis para que o filho póstumo tenha direito a herança do de cujus. A existência de autorização prévia em vida para a inseminação post mortem e sua confirmação em testamento preceitua da analogia com o art. 1.799, inc. I, do Código Civil, que possibilita ao testador beneficiar os filhos não concebidos, de pessoas indicadas por ele e existente ao iniciar-se a sucessão.

A cerca do dispositivo supra, Queiroz (2001, p. 80) afirmou que “se o testador pode atribuir a sua herança à prole eventual de terceiro, também o pode, sem qualquer restrição à sua própria prole” .

Nesse caso, o proprietário do sêmen terá que expressamente deferir o seu consentimento para que a prole advinda de inseminação artificial homóloga após a sua morte tenha direito a sua herança.

Diniz (2005, p. 527), então, explica que o filho póstumo:

Poderia ser herdeiro por via testamentária, se inequívoca for a vontade do doador do sêmen de transmitir herança ao filho ainda não concebido, manifestada em testamento. Abrir-se-ia a sucessão à prole eventual do próprio testador, advinda de inseminação artificial homóloga post mortem.

Desse modo, a autorização em vida para que o material genético seja utilizado depois da sua morte e a sua confirmação em testamento são imprescindíveis, uma vez que ausente a autorização, essa linha de pensamento preceitua que, o herdeiro póstumo não teria capacidade passiva para suceder pelo simples fato de a lei não prever outra hipótese que lhe garanta o direito à sucessão. Portanto, “se não houver previsão testamentária para esses filhos, pelo princípio atual não serão herdeiros”. (VENOSA, 2005 p. 50).

Além desse requisito, a pessoa indicada no testamento deve ser a viúva do testador e continuar a ter este status até o nascimento do filho póstumo que deverá ser concebido no prazo máximo de dois anos. Se a esposa do de cujus contrair novo casamento, o filho nascido de inseminação, após o prazo de 300 (trezentos) dias (BRASIL, 2002, art. 1.597, inc. II), será considerado fruto desse novo casamento, eliminando, portanto, qualquer vínculo legal com o falecido, bem como a presunção de paternidade.

A esse respeito, o Enunciado 106 do Conselho de Justiça Federal estabelece que (BRASIL, 2009, p. 34):

Para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após sua morte.

Outrossim, o prazo de dois anos para a concepção é imposto pela própria lei, que determina que se decorrido esse prazo, contados após a abertura da sucessão, sem o cumprimento da disposição que beneficia o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrario do testamento, deverão retornar aos herdeiros legítimos.

Nesse contexto, Diniz (2009, p. 1275) explana:

Se decorrido dois anos após a abertura da sucessão, o herdeiro esperado não for concebido, a disposição testamentária tornar-se-á ineficaz, logo os bens que lhe foram destinados passarão aos herdeiros legítimos do autor da herança (CC, art. 1.829), salvo se o contrário estiver estipulado no testamento. Se o herdeiro não for concebido dentro do biênio previsto em lei, a verba testamentária caducará e a parte que lhe era cabível será devolvida aos herdeiros legítimos ou ao substituto testamentário, retroagindo, obviamente aquela devolução à data da abertura da sucessão.

Para Cesar Fiuza (2009, p. 1059), o fundamento legal do prazo é a segurança jurídica, a operabilidade e a função social da propriedade.

Diante disso, Castro (2008, p. 352), ao posicionar-se sobre inseminação artificial post mortem, mencionou que “a vocação hereditária deve ser reconhecida […] apenas se o nascimento vier a ocorrer no prazo de dois anos desde o falecimento (de modo a gerar sistema compatível com a passagem imediata dos bens e o art. 1.800, § 4°, do CC)”.

Conforme se vislumbra, essa subcorrente, apesar de admitir a sucessão aos nascidos por inseminação artificial post mortem, impõe diversos requisitos, que se ausentes impedem o nascido póstumo de beneficiar-se da herança daquele que foi reconhecido como seu pai pela lei.

A segunda subcorrente firma-se no princípio constitucional da igualdade entre os seres humanos para afiançar o direito à sucessão daquele que sequer era concebido no momento da abertura da sucessão, entendendo, ainda, ser incabível a imposição de quaisquer requisitos para que o filho póstumo seja herdeiro legítimo.

A respeito da questão aventada, Dias (2009, p. 117) expõe:

É difícil dar mais valor a uma ficção jurídica do que ao princípio constitucional da igualdade assegurada à filiação (CF 227 § 6°). Determinando a lei a transmissão da herança aos herdeiros (CC 1784), mesmo que não nascidos (CC 1798) e até a pessoas ainda não concebidas (CC 1799, I), nada justifica excluir o direito sucessório do herdeiro por ter sido concebido post mortem. Sob qualquer ângulo que se enfoque a questão, descabido afastar da sucessão quem é filho e foi concebido pelo desejo do genitor. Como bem observa Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho, existe uma interpretação equivocada em que se observam direitos de terceiros e se olvida o direito da criança engendrada nessas circunstâncias, em que é assegurado o reconhecimento da filiação.

O entendimento liberalista dessa linha reforça-se no art. 227, parágrafo 6° da Carta Maior para defender a sucessão dos inseminados após a morte. O artigo mencionado revela a intenção do constituinte em garantir o perfeito entendimento de igualdade ao manifestar-se, expressamente, que os filhos adotados ou extraconjugais terão os mesmos direitos e qualificações dos filhos gerados na relação do casamento, proibindo-se qualquer forma de discriminação entre eles. Assim, inexiste justificativa plausível para a exclusão do fecundado posteriormente a morte do de cujus.

Nesse ponto, Dias (2009, p. 117) explica que a “norma constitucional que consagra a igualdade da filiação não traz qualquer exceção. Assim, presume-se a paternidade do filho biológico concebido depois do falecimento de um dos genitores. Ao nascer, ocupa a primeira classe dos herdeiros necessários”.

Com o intuito de esclarecer seu posicionamento, a autora continua (DIAS, 2009, p. 118):

Mesmo quem reconhece o direito sucessório ao filho concebido mediante fecundação artificial póstuma se inclina em estabelecer o prazo de dois anos para que ocorra a concepção, fazendo analogia ao prazo para a concepção da filiação eventual (CC 1800 § 4°). Esta limitação não tem qualquer justificativa. Não se pode descriminar o filho havido post mortem concebido com sêmen do pai pré-morto, depois do prazo de dois anos. A tentativa de emprestar segurança aos demais sucessores não deve prevalecer sobre o direito hereditário do filho que vem a nascer, ainda que depois de alguns anos.

Assim, essa vertente defende que após a Constituição Federal de 1988, os concebidos por técnicas de inseminação através de material criopreservados de pessoa falecida, independentemente de prazo ou de quaisquer condições, terão os mesmos direitos dos demais filhos vivos ou concebidos do hereditando.



4 POSSIBILIDADE JURÍDICA À SUCESSÃO LEGÍTIMA DOS NASCIDOS POST MORTEM

O presente trabalho abordou até o momento uma gama de informações sobre inseminação artificial homóloga post mortem relacionado com o direito sucessório brasileiro, principalmente seus conceitos e contradições doutrinárias, o que contribui para formação de um posicionamento que seria o mais perto do eticamente aceitável.

Os estudos sobre reprodução assistida post mortem, apesar de polêmicos e divergentes, devem ser conduzidos, primordialmente, em defesa do ser humano que nascerá de pai pré-morto e, ainda, por ser este pessoa menor, hipossuficiente e inocente na questão ora debatida.

Nessas circunstâncias, o que se pretende defender é a superioridade da pessoa humana em relação aos interesses patrimoniais surgidos no momento da abertura da sucessão. Por essa razão que é fácil discordar de pensamentos como o de Castro (2008, p. 352) que entende que “não há que se falar em discriminação contra quem não existia. Não herdou porque não existia e, se não existia, não foi discriminado”.

O fato é que a própria Carta Magna estabeleceu como direito e garantia fundamental à igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (BRASIL, 1988, art. 5°, caput). E mesmo não sendo necessário, reafirmou esse princípio no art. 227, parágrafo 6°, quando igualou os filhos extraconjugais ou adotados com aqueles nascidos dentro do relacionamento matrimonial. O que demonstra que a intenção sempre foi desestimular qualquer forma de discriminação, o que inclui os filhos póstumos.

Com essa inteligência, Delfim (2009) explana:

Por esse motivo não concordamos com a regra da cisão dos direitos, que reconhece a presunção de filiação, mas excluiu o direito sucessório. O filho resultante da inseminação artificial homóloga post mortem deve ter exatamente os mesmos direitos que são assegurados ao seu irmão biológico concebido ou nascido antes da morte do pai. A interpretação é consentânea com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade entre os filhos, do planejamento familiar etc.

Considerando a igualdade entre os filhos nascidos e/ou já concebidos no momento da abertura da sucessão e entre os que ainda serão concebidos através de algumas das técnicas de reprodução assistidas depois da morte do pai, tem-se reconhecido a capacidade passiva para suceder à legítima dos póstumos.

A razão para tanto é simples, no caso de inseminação artificial homóloga o material genético é fornecido pelo próprio casal, demonstrando a sua intenção de ter o filho. O tratamento diferenciado nessa situação estaria, no final, discriminando o próprio filho biológico, que um dia foi desejado por ambos os cônjuges e por uma fatalidade o sonho não pôde ser realizado.

A autorização prévia e posterior confirmação em testamento, defendida por alguns doutrinadores, é relativamente desnecessária, haja vista que o procedimento para o recolhimento do material genético já exige a autorização para a manipulação dos gametas, conforme preceitua a Resolução 1358/92, do Conselho Federal de Medicina . Assim, se o doador autorizou o recolhimento para o tratamento de reprodução assistida homóloga, a intenção em gerar o filho com sua esposa é clara, o que injustifica a exigência de confirmação testamentária ou outra autorização para a utilização após a morte.

Importante ressaltar que a elaboração de testamento não é culturalmente praticada no Brasil, sendo, portanto inviável a sua exigência nessa situação. Entretanto, devido à ausência de lei específica sobre o tema é altamente recomendável a disposição testamentária autorizando a utilização do material após a morte, bem como incluindo o filho póstumo na sucessão e declarando curador para os bens devidos a essa prole, evitando, desse modo, futuras disputas familiares no âmbito judicial.

A questão temporal, do mesmo modo, é largamente discutida pelos estudiosos do Direito e envolve vários princípios tais como: a dignidade da pessoa humana, o livre planejamento familiar e a segurança jurídica. Os que defendem o prazo máximo de dois anos para que seja concebido o filho póstumo, alegam, além da previsão legal, que os demais herdeiros não podem ser prejudicados por algo incerto com tempo indeterminado para acontecer, o que geraria insegurança jurídica em relação à propriedade dos bens.

Todavia, a Constituição Federal mais uma vez refuta essa defesa, a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1°, inc. III, juntamente com o art. 227, § 7°, assevera que a decisão de ter um filho é exclusiva do casal, competindo ao Estado somente “propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”. (BRASIL, 1988).

Dessa forma, por ter o princípio da dignidade da pessoa humana um aspecto mais elevando em comparação a segurança jurídica do processo de partilha, o prazo do artigo 1.800, § 4°, Código Civil Brasileiro não pode ser exigido da viúva do de cujus, que deseja submeter-se as técnicas de reprodução assistida homóloga, pois estaria privando a sua faculdade de decidir o momento apropriado para a concepção do seu fruto e formação de sua família.

Alcançado esse ponto, importante dispor que é essencial que a futura mãe de filho póstumo continue a ser considerada viúva do de cujus, para evitar qualquer confusão quanto à paternidade, mesmo não tendo o Código Civil mencionado a respeito do estado de viuvez.

Depois de sanadas as peculiaridades acima, restou ainda problematização da partilha dos bens. O processo de partilha não pode prolongar-se por um período demasiadamente longo a espera do nascimento incerto, porém a doutrina quedou-se nesse aspecto. Diante disso, uma possível solução encontrada seria a analogia ao artigo 1.800, caput e § 4° do Código Civil, onde a parte que caberia ao herdeiro póstumo seria confiada, após a liquidação ou partilha, a curador, de preferência à viúva, se não houver cláusula testamentária em sentido contrário, até a opção futura desta de gerar a prole esperada ou contrair novo casamento ou, ainda, se sobreviesse renúncia expressa ao tratamento ou mesmo o fim de sua fertilidade.

Não ocorrendo o nascimento do filho pela renúncia expressa ao direito em questão, por infertilidade irreversível comprovada por perícia médica ou por alcançar o estágio de não ovulação (menopausa ) ou, ainda, por ter a viúva contraído novo casamento, os bens retornariam aos herdeiros nascidos ou já concebidos à época da morte do autor da herança, conforme o disposto no art. 1.800, caput e § 4° do Código Civil.

No entanto, tal solução não esgotaria a discussão em torno do problema causado aos nascidos ou já concebidos no momento da morte do autor da herança, visto que ao se considerar que a técnica de criopreservação é utilizada para preservar não um, mas vários embriões e que todos eles, potencialmente, teriam chances de nascer, a analogia proposta se tornaria falha, uma vez que prolongar-se-ia ainda mais a espera dos herdeiros pela finalização da partilha em decorrência da multiplicidade de gestações que a criopreservação pode proporcionar.

Tem-se, então, que o direito ao póstumo, teoricamente, poderá ser reconhecido com base nas atuais normas pertinentes citadas, mas o que definirá a certeza desse direito será a análise do caso concreto.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ausência de norma legal que ampare o póstumo fez com que à doutrina debatesse o tema em busca de soluções viáveis para o conflito advindo dessas situações tão excepcionais. No entanto, mesmo após tantos anos de convívio com essas técnicas e de constatação de seus frutos, a doutrina não alcançou um posicionamento firme e unânime sobre os direitos da criança concebida artificialmente, através de reprodução assistida após a morte do progenitor biológico.

Uma das vertentes defendida pela doutrina, é que a prole concebida posteriormente a morte do genitor não alcançaria o status de filho daquele, tendo em vista que o casamento extingue-se com a morte e o fecundado póstumo seria filho extramatrimonial e somente da mãe, pois o pai não exprimiu o seu desejo de concepção no momento da fecundação do embrião. Desse modo, não acarretaria direitos a herança do doador do material genético.

Apesar de o Código Civil dispor que o casamento se extingue com a morte do cônjuge, essa corrente não pôde prevalecer, pois o próprio Código prevê o reconhecimento presumido de filiação aos nascidos de inseminação artificial homóloga, a qualquer tempo, depois da morte do de cujus, em seu art. 1527, inc.III e IV.

Isso fez germinar outra corrente, admitindo que o inseminado póstumo é filho biológico e cível do falecido por determinação legal. No entanto, apoiou-se na ausência de norma e no fato da lei legitimar a suceder apenas as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão para negar-lhe esse direito.

Contrariamente a essas vertentes, a terceira corrente admite o direito à herança de duas formas diversas. Uma parte posiciona-se, em analogia ao art. 1.799, inc. I, do Código supra, para garantir a sucessão dos póstumos, consentindo o direito apenas se o de cujos autorizar a inseminação artificial após a sua morte e confirmá-la em testamento, a concepção acontecer no prazo de dois anos e a mãe continuar a ser a viúva do pai póstumo. A outra, em síntese, defende que o direito a sucessão legítima foi assegurada, constitucionalmente, no art. 227, § 6°, da Carta Maior, ou seja, subsiste de pleno direito.

Após essa análise, concluiu-se que, apesar da ausência de norma legal que preveja a sucessão, seria possível garantir a prole póstuma o seu direito a parte legítima da herança.

A Constituição Federal, expressamente, dispôs que não haverá quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação entre os filhos conjugais, extraconjugais ou adotados, demonstrando que o constituinte não desejou que os filhos póstumos, biologicamente pertencentes aos cônjuges, fossem tratados diferentes dos demais, o que implica dizer que, obrigatoriamente, deverá ter reservado sua parte na herança legítima deixado por seu pai.

Apesar de a Constituição asseverar a igualdade entre os filhos, o estudo sobre o tema acarretou a necessidade de apoiar a exigência de que o cônjuge sobrevivente, que pretenda utilizar-se das técnicas de reprodução artificial após a morte do outro, permaneça no estado de viuvez até o nascimento da prole póstuma para evitar confusão quanto à paternidade do inseminado.

Distintamente desse ponto, a exigência de autorização prévia para a inseminação post mortem e a sua confirmação por testamento são dispensáveis, pois a Resolução 1358/92, do Conselho Federal de Medicina, antever a concordância dos cônjuges para prática da inseminação.

A questão temporal foi debatida por meio dos princípios da dignidade da pessoa humana e do livre planejamento familiar ao defender que a imposição de prazo para a mulher realizar a concepção póstuma ocasionaria a perda da faculdade de planejar o momento adequado para construir sua família.

Por fim, foi sugerida uma possível analogia ao artigo 1.800, caput e § 4° do Código Civil, buscando solucionar a insegurança jurídica na partilha, onde os bens pertencentes ao inseminado póstumo seriam confiados a um curador até o seu nascimento. Não ocorrendo o esperado por comprovação de infertilidade irreversível ou ter a viúva contraído novo casamento ou, ainda, renunciado expressamente ao tratamento, os bens retornariam aqueles que fariam jus a herança no momento da abertura da sucessão.

Face o exposto, a ponderação mais adequada ao tema é que os nascidos de técnicas artificiais de reprodução, em que o material genético foi fornecido por um casal, mas a inseminação somente ocorreu após o falecimento de um deles, não encontra norma legal amparadora no Direito Sucessório e que, por isso, somente o caso concreto poderá certificar o direito a sucessão legitima, mesmo tendo a Constituição Federal de 1988, ao proibir práticas discriminatórias entre os filhos, garantido, em tese, esse direito aos nascidos póstumos.

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